sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Terremotos e civilizações

 

Nos últimos meses, fortes terremotos devastaram amplas regiões da Itália central. Se o primeiro evento sísmico, do dia 24 de agosto, foi amplamente noticiado pelos jornais brasileiros pela perda de elevado número de vidas humanas, os demais também graves tremores – ocorridos nos meses de outubro e novembro – foram informados muito rapidamente. Nenhum aceno foi feito à gravíssima perda do patrimônio histórico-cultural, social, artístico e religioso, que ocorreu e ainda está ocorrendo. Buscando superar este descaso, tentamos aqui ilustrar a importância das regiões atingidas para a tradição cultural do Ocidente, sobretudo para suas raízes cristãs.
A Itália dos Apeninos, região onde ocorreu o evento sísmico, é um conjunto de antigos vilarejos construídos em pedra nas colinas e nas montanhas que atravessam o centro da península de leste para oeste. Conhecida pela gastronomia (o mundo inteiro lembrou do espaguete amatriciana quando o terremoto atingiu a cidade de Amatrice), a região também foi uma terra de grandes místicos, santos e artistas.
Uma das cidades gravemente abaladas pelo terremoto é Núrsia. Núrsia é a pátria de São Bento, fundador da ordem monástica dos beneditinos; a Europa cristã começou a surgir na Idade Média, ao redor dos mosteiros fundados a partir da experiência dos beneditinos. Por isto, inclusive, São Bento foi proclamado padroeiro da Europa, por Paulo VI: com efeito, ele e seus monges levaram a cruz, os livros e o cultivo da terra, aos povos do Mediterrâneo até à Escandinávia, à Irlanda e à Polônia. A Europa nasceu, assim, por obra dos monges e evangelizadores que deixaram o cristianismo, a cultura e o avanço econômico e civil como legado, mostrando que a prosperidade econômica brota da vitalidade espiritual, algo totalmente renegado pela Europa contemporânea, a Europa das finanças e do niilismo.
A catedral que ruiu em Núrsia foi construída sobre os alicerces da casa paterna de São Bento e hospedava uma comunidade monástica beneditina que, recentemente, vinha se instalando ali, visando a retomar a experiência originária do ideal monástico. Um documentário em vídeo sobre a vida daquela comunidade está disponível neste link. O responsável da comunidade, padre Benedict, em carta de 26 de outubro de 2016, escreveu aos amigos contando que os monges se refugiaram nas montanhas após a queda do mosteiro e da catedral, e comenta que “após uma noite de tremores, acordamos às 3h30min para rezarmos as Vigílias: começamos aceitando, mais uma vez, que a nossa vida não é nossa e que Deus a mudara, uma vez mais, nosso caminho”.
O terremoto atingiu também as colinas de Assis e Gubbio, lugares da vida e da pregação de São Francisco; a cidade de Camerino onde foi fundada a Ordem dos Capuchinhos; a cidade de Cassia onde viveu Santa Rita e onde ainda se conserva seu corpo intacto na catedral.
Os montes chamados Sibilinos, onde o terremoto abriu fendas assustadoras, foram inspiradores de lendas onde são sincretizados mitos da antiguidade pagã e temas messiânicos da cristandade: lá viviam as lendárias mulheres chamadas Sibilas, misteriosas profetisas retratadas nas catedrais medievais.
São as mesmas colinas retratadas num passado mais recente pelo grande poeta italiano Giacomo Leopardi. A colina de sua cidade natal, Recanati, que inspira um dos poemas mais famosos, O Infinito [1], está deslizando devido ao terremoto. O manuscrito do poema que era guardado no Palácio do Governo de uma das cidades destruídas pelo terremoto, Visso, foi agora levado para a biblioteca da cidade de Bologna. A beleza das doces e onduladas colinas daquelas terras remete à nostalgia do absoluto, do infinito, escondido na simplicidade humilde e pacata de vales, bosques, cachoeiras e riachos, vinhedos, campos, antigas torres e pequenas capelas, eremitérios e igrejas disseminadas ao longo de todo aquele território e em grande parte agora destruídas.
Bem perto de Recanati, se encontra o Santuário mariano de Loreto: uma antiga tradição afirma que os muros antiquíssimos nele contidos são da casa natalícia de Cristo. A tradição religiosa diz que foram transportados pelos anjos; a tradição historiográfica atribui a mudança aos navios dos cruzados. Lugar onde se encarnou a Beleza procurada por Leopardi, símbolo de todas as casas cristãs, a Santa Casa de Loreto é meta de grandes peregrinações, sobretudo de quem vem pedir à Mãe de todos a graça da saúde. Os museus de Loreto hospedam a obra de outro grande artista italiano do Renascimento, o pintor Lorenzo Lotto, o qual, terciário franciscano, foi acolhido pobre pelos clérigos da Santa Casa e lá morreu.
No Norte daquela mesma região, área também parcialmente atingida pelo terremoto, encontra-se a belíssima cidade de Urbino, construída pelo duque Federico de Montefeltro em cuja corte trabalharam grandes pintores como Piero della Francesca e Raffaello de Sanzio, e arquitetos como Donato Bramante.
Nessas regiões, houve grande emigração motivada pela industrialização da Itália nos anos 1960; os que ficaram ainda hoje vivem prevalentemente do cultivo de campos e do gado, além do turismo. Os que lá vivem preservam uma raiz profunda da identidade italiana, raiz que o cineasta e poeta Pier Paolo Pasolini assim retratou em 1962: “Eu sou uma força do Passado. Somente na tradição está o meu amor. Venho das ruínas, das igrejas, dos retábulos, dos burgos abandonados dos Apeninos ou Pré-Alpes onde viveram os irmãos” [1].
Este patrimônio cultural, religioso e artístico foi profundamente atingido e ameaçado pelos sismos recentes. Patrimônio milenar e ao mesmo tempo frágil, a nos lembrar a grandeza e a miséria do homem, conforme a celebre expressão de Blaise Pascal [2]. 
 
Notas
[1] LEOPARDI, Giacomo. L’Infinito. Canti, n. XII. Disponível aqui.
[2] PASOLINI, Pier Paolo. Poesie Mondane. In: PASOLINI, Pier Paolo. Poesia in forma di rosa. Milano: Garzanti, 2001, pp. 23-24, tradução de Vinícius Nicastro Honesko.
[3] PASCAL, Blaise. Pensamentos. São Paulo: Folha de São Paulo (Coleção Folha Grandes Nomes do Pensamento, V. 10), XVIII,7.

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