sexta-feira, 9 de novembro de 2018

O legado de Giovanni Falcone e de Paolo Borsellino


Sérgio Moro afirmou recentemente estar se inspirando na figura do juiz italiano Giovanni Falcone. Os comentários sobre esta afirmação nos jornais nacionais, como a Folha e o Estadão têm sido frequentes. Alguns associaram a atuação do magistrado siciliano à operação Mãos Limpas (chamando Falcone de “juiz das Mãos Limpas”, por exemplo O Estado de São Paulo dia 5 de novembro). Trata-se de erro grosseiro: talvez devido ao desconhecimento da história recente da Itália e de informações imprecisas a respeito, veiculadas pelo espanhol El Pais (que também se referiu a Falcone nos mesmos termos).
O erro fica evidente se levarmos em conta que Falcone foi assassinado em 1992 e que foi a partir de 1993 que se iniciou a operação Mãos Limpas, investigação judicial conduzida pelo juiz Antonio Di Pietro sobre o uso do poder público em benefício particular e de partidos políticos. A operação comprovou que empresários pagavam propinas a políticos para vencer licitações de construção de ferrovias, rodovias, prédios públicos, e obras civis.

É fundamental, portanto, esclarecer os fatos históricos e entender quem era Giovanni Falcone e porque foi assassinado num brutal atentado em maio de 1992. 
Giovanni Falcone (Palermo 18 de maio de 1939-Palermo, 22 de maio de 1992) era um juiz, procurador do Estado italiano, que atuou contra a máfia siciliana; e pela máfia foi brutalmente assassinado, num atentado com dinamite, em que além dele perderam a vida sua esposa e sua escolta. Dois meses depois, de modo semelhante foi assassinado seu colega e amigo Paolo Borsellino (1940-1992). O mandante dos assassinatos, o chefe mafioso Salvatore Riina foi condenado à prisão perpétua e faleceu recentemente. O executor foi um jovem mafioso Giovanni Brusca, com 19 anos de idade, que detonou as dinamites na estrada de Capaci, na Sicília, próximo a Palermo. Brusca foi preso e condenado à prisão perpétua. 
Falcone conduziu o Maxi Processo contra a máfia a partir de 1980 finalizando a investigação em 1992. E estava tentando mudar a legislação anti-máfia quando sofreu o atentado. A máfia avançava sobre o Estado, praticando crimes dos mais diversos e dos mais terríveis. Ameaças, extorsões, assassinatos, corrupções, infiltração das organizações mafiosas no Estado, na política, nas obras públicas etc. A violência já alcançava níveis insustentáveis, chegando a assassinatos também de jovens e crianças. Os grupos, ou “famílias” da Máfia siciliana, apelidada também de Cosa Nostra eram compostas por  parentes (incluindo os emigrados norte-americanos) e por pessoas conhecidas por amigos, indicados por parentes, cuidadosamente selecionados, que se tornavam importantes membros de extensão da família. Os objetivos da Máfia eram a aquisição de poder e controle territorial, e a obtenção de dinheiro através formas de  enriquecimento ilícito,  dentre elas o trafico de armas e de drogas; bem como lavagem de dinheiro sujo. Falcone dizia que na Máfia havia dois fenômenos: a organização criminosa propriamente dita e a mentalidade mafiosa, ou seja, o consentimento popular às atividades criminosas. Esse conhecimento das estruturas mafiosas decorreu do trabalho sério e dedicado de Giovanni Falcone e do procurador Paolo Borsellino, custando-lhes a ambos a vida. O Maxi Processo viabilizou inicialmente a punição de 74 integrantes mafiosos (impensável até então, em razão do forte poder de intimidação de testemunhas, juízes e integrantes do júri e do alto nível de corrupção da máfia); e, posteriormente, a condenação de 342 mafiosos a um total de 2.665 anos de cadeia.  Falcone e Borsellino denunciaram também a colusão entre máfia e política: uma tratativa entre partes do Estado e a máfia. Afirmara Borsellino para sua mulher, logo após a execução de Falcone: “existe uma proximidade entre a máfia e pedaços desviados do Estado. A máfia vai me matar, mas a máfia me matará quando outros darão o consentimento”. Segundo Borsellino, seria preciso que todas as componentes da sociedade italiana se empenhassem para dar credibilidade ao Estado. No enterro de Falcone e das demais vítimas do atentado, Borsellino dissera: 
Eles morreram por todos nós, pelos injustos; temos uma grande divida para com eles e temos que pagá-la com alegria, continuando nosso trabalho. Fazendo nosso dever; respeitando as leis mesmo as que nos impões sacrifícios, recusando de trazer ao sistema mafioso benefícios pessoais; colaborando com a justiça, testemunhando os valores em que acreditamos, e em que devemos acreditar mesmo dentro dos tribunais (23 de junho de 1992).
Giovanni Falcone numa entrevista a um jornalista afirmara:
A Máfia teve um inicio e terá um fim, como tudo o que nasce do homem. (...) Nunca tive a tentação de abandonar esta luta. A única coisa que vou pedir é que esta tensão nunca esmoreça. Os homens passam, as ideias permanecem. Permanecem os fins morais e continuarão a caminhar pelas pernas de outros homens.
Este anseio, trabalho e luta pela justiça, pelo bem comum acima dos benesses particulares, foi o legado transmitidos por esses homens a quem Sérgio Moro disse se inspirar.   

Referências 
MASCALI, Antonella (org.). Le ultime parole di Falcone e Borsellino, a vent’anni dalle stragi. Milano: Chiarelettere, 2013 (Col. Reverse).

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