domingo, 12 de abril de 2020

Diálogo entre amigos no tempo da Páscoa

A fé é uma questão do olhar                                                 
Foto Fabrizio Arigossi
(arquivo Centro de Recuperação e Educação Nutricional -CREN)

Ana
Na manhã de Domingo de Ramos enquanto me lembrava de Jesus que entrava triunfante em Jerusalém aclamado pela multidão que gritava “Hosana ao Filho de Davi” e revivia a cena, experimentei subitamente um enorme desgosto pela humanidade. Com um grande mal estar pensava: como os seres humanos são detestáveis. Que hipocrisia absurda! Que superficialidade bestial! Dali a 6 dias, os mesmos, gritariam mandados pelos chefões: ‘Crucifica-o! Crucifica-o!’
Preencheu-me também, uma grande perplexidade pela própria ação de Jesus. Por que ele se submetia a essa farsa se sabia que tudo era um sopro de vento sem consistência e firmeza, pois dali a pouco mudariam completamente de posição e cuspiriam no seu rosto? Por que aceitou participar dessa espécie de farsa? Não era evidente que o rei que a multidão aclamava era postiço e não era o que ele queria ser de verdade?
Enquanto era tomada por esses pensamentos e emoções e sentia um mal estar angustiante veio-me à mente um pensamento: ‘você está olhando para o lugar errado’. Compreendi que se permanecesse com o olhar fixo nas pessoas que gritavam, não podia entender o gesto de Jesus e que eu devia voltar o olhar para ele. Quando fiz isso comecei a “ver” finalmente. A entrada em Jerusalém para ele era uma passagem fundamental e necessária. Era inclusive uma passagem entrevista pelos profetas nas escrituras antigas. Havia algo importantíssimo a transmitir a todos e a deixar como parte final do seu anúncio enquanto ainda na terra: Ele precisava mostrar que era um rei humilde e manso montado num burrinho (e não transportado num trono como os outros reis do seu tempo). Ele precisava que todos vissem e que o resto do mundo se lembrasse através desse episódio, que ele era sim rei, mas manso e humilde montado no burrinho como qualquer pastor ou camponês quando entrava na cidade. Jesus vai até o fim para demonstrar sua realeza antes de morrer. Sobretudo no encontro com Pilatos quando este lhe pergunta: ‘você é rei?’ E ele diz: ‘tu o dizes, mas o meu reino não é deste mundo, por isso não será um exército de homens a me defender’.
Este pequeno episódio reflete bem o que a tradição da igreja diz sobre o que é a fé; e mostra o dinamismo da fé. A fé é o que acontece em nós quando fixamos o olhar em Jesus. Ela depende de onde olharmos. Por isso, é tão importante o dizer de Isaías quando afirma ‘fecha os olhos para não ver o mal’. A fé é fruto de uma experiência que precisa se repetir frequentemente até chegar a uma convicção que cresce sempre mais, e que depende de onde fixamos o nosso olhar. Se olharmos frequentemente para Jesus e observarmos atentamente o que ele diz, como ele se move e os episódios da sua vida, “entenderemos”, teremos luz, seremos iluminados, discerniremos o caminho certo, o ponto mais verdadeiro em cada situação. Isso que ele quer dizer quando afirma: ‘eu sou o caminho, a verdade, e a vida’. A fé nasce e cresce do olhar para ele. De fixar o olhar nele. Se é assim a fé vem do olhar, vem de algo que eu vejo e que entra em nós pelo nosso olhar. Não é um comportamento, um ‘crer’, um raciocínio, mas antes de tudo, um ‘ver’ a partir de um determinado ângulo. São fatos reais e não raciocínios ou algo que nasce dentro de nós que penetram em nós primeiramente através do olhar, e depois também do ouvir e dos outros sentidos.
Há um detalhe importante: no livro o Senso Religioso L. Giussani 1explica que este olhar tem que querer realmente ver algo com a curiosidade de uma criança. Pois há olhares que não são para fora, mas só para dentro, fechados em si mesmos, que escolhem alguns aspectos da realidade como pretexto para ver o que já se definiu a priori querer ver, para se justificar ou afirmar uma posição. Ou seja: não “veem”, mas abusam da realidade para afirmar um ponto de vista. Ao fazer assim, inventam uma realidade ilusória que só existe na sua cabeça; mas que, invariavelmente, com o passar do tempo, mostrará sua falsidade. A posição contrária a essa é a de quem quer descobrir realmente quem foi Jesus e começa a olhar para ele, e para tudo o que lhe diz respeito, com muita atenção e curiosidade.
A fé, portanto, não é uma crença em algo que não se vê, como diziam alguns filósofos modernos. Mas é sempre “ver” algo no real: ver tudo tendo como framework ou estrutura, Cristo. Em outras palavras, é ver a realidade com um olhar habituado a olhar para Cristo e reconhecer nela a ação do Verbo que agora tudo possui e determina, sem tirar a liberdade do ser humano. E essa liberdade se expressa exatamente aqui: escolher fixar o olhar em quem dá a vida ou em quem gera a morte. Façamos a escolha!

Daniel
Lendo teu texto me veio à mente uma passagem bonita de um livro que eu li um tempo atrás; a escritora S. Aleksiévitch foi Nobel em 2015 e o livro é um compilado de relatos sobre o desastre em Chernobyl e a evacuação forçada que o sucedeu. As pessoas eram obrigadas a deixar tudo para trás, abandonar suas vidas, de uma hora para outra. Um dia depois da tragédia, todos os moradores subiam no camburão e partiam sem saber para onde, impedidos de levar qualquer coisa, até a própria carteira, porque tudo estava contaminado com radiação. Não sei por que, mas me veio à mente, acho que é porque é um olhar habituado a olhar para Cristo e reconhecer na realidade a ação do Verbo como você dizia, mesmo numa situação trágica como essa.

Nós partimos... Quero contar como a vovó se despediu de casa. Ela pediu ao papai para apanhar no celeiro um saco de painço e espalhou tudo pelo jardim: “Para os passarinhos de Deus”. Recolheu os ovos num cesto e despejou no pátio: “Para o nosso gato e para o cachorro”. Cortou toucinho para eles. Tirou todas as sementes dos saquinhos: de cenoura, abóbora, pepino, cebola, de vários tipos de plantas e flores... E espalhou tudo pela horta: “Que vivam na terra”. Depois, se inclinou diante da casa. Diante do celeiro. Percorreu as macieiras e se inclinou diante de cada uma delas.
E o vovô, quando estávamos saindo, tirou o chapéu.2

Ulisses
Acabei de ler o texto de vocês. A questão da importância do olhar para a fé, portanto da dependência numa certa atitude do sujeito diante do mundo para se perceber os sinais do mistério presente na realidade, é uma das caraterísticas mais belas do Divino; esta discrição, esta sutileza (com a qual Einstein gostava de descrever as leis da natureza - Raffiniert ist der Herr Gott, aber boshaft ist er nicht- O Senhor Deus é sutil, mas ele não é malicioso) são ao mesmo tempo uma grande graça e uma grande esperança para a liberdade humanas. Graça, porque a preservam da dominação de um poder, pelo qual tão facilmente os homens se deixam escravizar, principalmente nos momentos de dificuldade, tentando salvar-se. E são esperança para a liberdade humana porque a convidam a fazer um caminho, gradual, talvez longo, mas seguro porque pautado pelos muitos momentos de reafirmação que tornam a experiência sólida e certa, ao contrário da avalanche do desejo saciado num momento, e que depois, relegado ao passado, torna-se esquecido, matéria dos sonhos...
Às vezes eu gosto de exercitar esta dinâmica do olhar que você descreve, Ana, fazendo um exercício na leitura do antigo testamento, olhando para as vicissitudes daqueles homens e daquele povo e me perguntando como veria os eventos descritos sem a revelação da Presença de Deus que o narrador nos torna explícita. Penso que na nossa vida podemos sempre também olhar os eventos com estes dois olhares: aberto ou fechado à hipótese da fé. Externamente os dois mundos parecem iguais - de fato, a externalidade da Presença é sempre sutil, quase imperceptível - mas o abismo do sentido os separa por debaixo. Como no quadro de Bruegel O Sermão de São João Batista, no Museu de Budapeste. O Profeta prega em meio à grande multidão, mas apenas poucos - incluindo os dois personagens em primeiro plano - se atentam para Aquele entre eles que o discreto sinal do profeta indica, e por quem eles ansiosamente esperam a vida toda...

    O Sermão e São João Batista 
     Pieter Bruegel, o Velho
     Museum of Fine Arts, Budapest

Notas:
1 . GIUSSSANI, L. O Senso Religioso. Paço Editora, Campinas, 2017.

2 . ALEKSIÉVITCH, S. Vozes de Chernobil, Companhia das Letras, São Paulo, p. 342, 2016.

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