segunda-feira, 18 de maio de 2020

O que realismo, uso não redutivo da razão e moralidade no conhecimento têm a ver com hidroxicloroquina ?


Há cerca de 50 anos, o epistemólogo francês George Canguilhem esclareceu a diferença entre ciência e ideologia científica.

A ciência baseia seu conhecimento em evidências factuais, obtidas pela observação dos fenômenos, buscando apreender todos os aspectos que cada fenômeno apresenta, pela observação e experimento e pela intersubjetividade proporcionada pela comunidade científica. O objetivo da ciência é conhecer o fenômeno na totalidade dos fatores que o compõem. Para isto, deve obedecer a exigências metodológicas rigorosas.

A ideologia científica usa de algumas das evidências tematizadas pela ciência retirando-as do âmbito em que foram obtidas e definidas, generalizando-as e usando-as para construir discursos “pretensamente científicos, sustentados por homens que na matéria são apenas cientistas presumidos ou presunçosos” 1 (1977, p. 40).

Trata-se de discursos que buscam algum modo de acesso direto à totalidade do universo ou alguma solução geral de problemas ou algum tipo de persuasão, mas que também podem legitimar interesses particulares de grupos de poder (intelectual, político, econômico, etc...).
Nesse sentido, “a ideologia é um conhecimento afastado do objeto que lhe é dado quanto crê ajustar-se a este objeto”1 (p. 41). A ideologia científica pode ser também um conjunto de ideias sobre um objeto ou de hipóteses ainda não verificadas. Quando o conhecimento científico alcança a compreensão daquele objeto, a ideologia científica deve ser substituída pelos resultados da ciência. Nessa situação, se perseverarmos no uso da ideologia contra os resultados da ciência, evidentemente se incorre na falsidade.

A diferença entre estas duas posições é assinalada por Giussani quando em suas três premissas sobre o método e conhecimento no livro o Senso Religioso 2 (2005) fala em realismo, em uso não redutivo da razão e incidência da moralidade sobre o dinamismo de conhecimento. Resumimos as três premissas em três frases:

“Realismo é a urgência de não privilegiar um esquema que já tenhamos em mente, em detrimento de uma observação global, apaixonada, e insistente do fato, do acontecimento real” (2005, p. 20)
“A razão é abertura á realidade, capacidade de agarrá-la e afirma-la na totalidade de seus fatores” (2005, p. 36)
“Na aplicação ao campo de conhecimento, esta é regra moral; amor à verdade do objeto mais do que o apego as opiniões que já formamos sobre ele. Numa palavra, poderíamos dizer; “amar a verdade mais do que a si mesmo” (2005, p. 55).


Estas considerações podem alertar nossa atenção e provocar nosso juízo diante do debate que nestes dias está se travando no Brasil acerca do uso do remédio hidroxicloroquina para a cura do covid19.  Sim.

Evidentemente, diante da epidemia de coronavirus e do adoecimento e morte de tantas pessoas, a busca pela saúde e pelo remédio respondem ao anseio humano de bem. Ao mesmo tempo, diante do desconhecimento do vírus e da natureza complexa do mesmo, as ciências médicas se deparam com sua impotência e com a necessidade de estudos e de experimentação. Por isto, frente ao desconhecido, a atitude científica procede com cautela e humildade, ao mesmo tempo em que realiza suas pesquisas experimentais a respeito. Portanto, o anseio pela busca do remédio certo e definitivo deve pacientemente reconhecer o fato de que ainda não há resultados consolidados que possam fornecer uma resposta certa e definitiva. Assim, certa pressa ou ufanismo que às vezes tem se manifestado na discussão sobre hidroxicloroquina assemelha-se mais à atitude da ideologia científica do que da ciência. E pode alimentar ilusões e abusos. Por exemplo, na declaração de dia 17 de maio, a médica Nise Yamaguchi, ao defender o uso da cloroquina no tratamento de pacientes com Covid-19 numa entrevista à CNN Brasil afirmou que se houver disponibilização desse remédio para a população e o medicamento for bem distribuído a todas as regiões, “o Brasil não será um epicentro, e sim um exemplo. Eu tenho a certeza que estas normas podem ser incorporadas rapidamente a um modelo de atuação que seja ágil, concreto e eficiente” (O Antagonista, dia 17 de maio de 2020).  Esta certeza parece mais fruto de uma vontade voltada a encontrar rápida solução; mas na semana anterior, vários artigos científicos foram publicados em revistas científicas internacionais a respeito do uso desse remédio, já mostrando resultados que contradizem as afirmações da médica. Um deles, o mais importante, foi realizado com pacientes hospitalizados do estado de Nova York e é o maior deste tipo. Ao todo, 1.438 pacientes de 25 hospitais foram avaliados pelos pesquisadores. Os pacientes foram divididos em quatro grupos: o primeiro foi tratado apenas com hidroxicloroquina; o segundo, só com azitromicina; o terceiro, com ambos os medicamentos; o último, com nenhum dos dois. “Entre os pacientes hospitalizados com Covid-19, o tratamento com hidroxicloroquina, azitromicina ou os dois não foi associado à diminuição significativa da mortalidade”, concluíram os pesquisadores. Ainda de acordo com eles, os pacientes que tomaram a combinação da hidroxicloroquina com a azitromicina tiveram duas vezes mais chances de sofrer parada cardíaca do que as pessoas que não receberam nenhum medicamento. Citamos na bibliografia este artigo e outros que corroboram estas conclusões3,4,5,6.
Em suma, voltando às dicas de Giussani, a observação atenta do fenômeno possibilitada pelo estudo citado e por outros semelhantes (realismo), o uso da razão aberta a totalidade dos fatores e uma postura moral no conhecimento impõem reconhecer evidências que nem sempre correspondem a opiniões, expectativas e fáceis soluções aos desafios da realidade. Nessa perspectiva, por exemplo, deve ser evitado o uso ideológico das indicações para remédios (como no exemplo da hidroxicloroquina).
O uso ideológico de uma possibilidade que poderia até ser comprovada pelo teste da realidade  contradiz o amor à verdade e o imperativo da ética médica de preservar a vida e a saúde das pessoas. A humildade e o cuidado pela pessoa humana sempre acompanham a verdadeira ciência e a verdadeira medicina. 
Notas :
1. Canguilhem, G.(1977) O que é uma ideologia científica? (1969). Em: Ideologia e racionalidade nas ciências da vida, Lisboa: Edições 70

2. Giussani, L. (2009). O senso religioso. Braislia: Editora Universa

3. Association of Treatment With Hydroxychloroquine or Azithromycin With In-Hospital Mortality in Patients With COVID-19 in NewYork State Eli S. Rosenberg, PhD; Elizabeth M. Dufort, MD; Tomoko Udo, PhD; Larissa A. Wilberschied, MS; Jessica Kumar, DO; James Tesoriero, PhD; PattiWeinberg, PA; James Kirkwood, MPH; Alison Muse, MPH; Jack DeHovitz, MD; Debra S. Blog, MD; Brad Hutton, MPH; David R. Holtgrave, PhD; Howard A. Zucker,MD. Journal American Medical AssociationJAMA Published online May 11, 2020 (Downloaded From: https://jamanetwork.com/ on 05/16/2020

4. Should Clinicians Use Chloroquine or Hydroxychloroquine Alone or in Combination With Azithromycin for the Prophylaxis or Treatment of COVID-19? Living Practice Points From the American College of Physicians (Version 1) Amir Qaseem, MD, PhD, MHA; Jennifer Yost, RN, PhD; Itziar Etxeandia-Ikobaltzeta, PharmD, PhD; Matthew C. Miller, MD; George M. Abraham, MD, MPH; Adam Jacob Obley, MD; Mary Ann Forciea, MD; Janet A. Jokela, MD, MPH; and Linda L. Humphrey, MD, MPH; for the Scientific Medical Policy Committee of the American College of Physicians*

5. Hydroxychloroquine in patients with mainly mild to moderate coronavirus disease 2019: open label, randomised controlled trial BMJ 2020369 doi: https://doi.org/10.1136/bmj.m1849 (Published 14 May 2020) Cite this as: BMJ 2020;369:m1849

6. Clinical efficacy of hydroxychloroquine in patients with covid-19 pneumonia who require oxygen: observational comparative study using routine care data BMJ 2020369 doi: https://doi.org/10.1136/bmj.m1844 (Published 14 May 2020)Cite this as: BMJ 2020;369:m1844

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