Diante da eclosão dos terrorismos
no mundo, estamos assistindo a enfrentamentos: por um lado, a sociedade
europeia, norteada pelas ideologias da modernidade e da pós-modernidade,
posicionando-se a favor da “liberdade de expressão”; por outro lado, outras
sociedades, que poderíamos definir tradicionais, posicionando-se a favor de
valores absolutos que em nenhum caso devem ser blasfemados e violados. As
reações diante destes enfrentamentos são várias, como as de quem, como Contardo
Calligaris (vide Folha), vem
declarando que a única certeza absoluta que deve ser afirmada e unir as pessoas
é a “de não ter certeza nenhuma”.
Mas estas duas posições a confronto têm algo em comum: negar o valor da pessoa ou submetê-la a ”valores” mais altos como seriam a afirmação de uma ideologia, seja religiosa, seja niilista. Ambas são, neste sentido, derivadas da grave doença da razão moderna que dissocia o pensamento (a ideologia) da realidade (as pessoas), abrindo o caminho ao totalitarismo da ideologia (seja ela nazista, fascista, marxista ou fundamentalista), como percebeu H. Arendt.
Nisto, é grave a responsabilidade
da sociedade ocidental que, em nome da ideologia, abriu mão de um fato cultural
que a norteava e que, devido a este processo de dissociação, lentamente, mas
inexoravelmente, desconstruiu: a afirmação do valor absoluto da pessoa humana e
de sua dignidade. Herança da tradição cultural clássica e medieval do ocidente
cristão, este valor, mesmo que constantemente violado, contestou ao longo da
história todas as violências perpetradas contra pessoas, grupos e povos;
formulou-se em uma concepção antropológica, filosófica, jurídica, médica; inspirou
a criação de obras para cuidar das pessoas como hospitais e escolas, obras sociais.
A pessoa é caracterizada por um
dinamismo que a liga ao transcendente, ao mistério - mesmo quando ateia - que Giussani
chamou de senso religioso ou experiência elementar. Neste sentido, há uma
conexão incindível entre valor da pessoa e religiosidade. Com efeito, “pelo
simples fato de viver cinco minutos, um homem afirma a existência de um quid pelo qual vale a pena, no fundo, no
fundo, viver aqueles cinco minutos. É o mecanismo estrutural da razão, é uma
implicação inevitável” (O Senso religioso,
Editora Universa, 2009, p. 87).
Este fenômeno característico do
humano foi tematizado no conceito de pessoa da cultura ocidental. Como observou
o antropólogo Marcel Mauss, outras culturas, ainda que percebam a evidência da
individualidade de cada um, não têm o conceito de pessoa. Por isto, dentre
outras, o direito delas admite pena de morte (como estamos vendo nestes dias na
Indonésia com o brasileiro condenado à morte por tráfico de droga, ou na Arábia
Saudita com a mulher condenada à morte por adultério, etc...). A história dessas
culturas não possui a herança do conceito e do valor da pessoa; mas a cultura
ocidental tinha esta herança e abriu mão dela, desconstruindo seus alicerces na
prática (por exemplo, através do colonialismo e da aceitação tácita da
escravatura) e na teoria (Nietszche, com o seu pensamento, mas também com sua
vida e morte, assinala o ponto de chegada desta desconstrução), até chegar a
gerar os totalitarismos nazistas e estalinistas. Vários autores têm levantado a
voz assinalando esta doença da razão moderna (Husserl, Dostoiévski, Arendt, MacIntyre,
entre outros), mas apesar disto continuou-se ainda no século XXI este processo
autodestruidor.
Num romance genialmente profético
de Dostoiévski - Os Demônios (Editora
34, 2004) - diante da negação de Deus e de todos os valores feita por um grupo
de jovens iluministas e niilistas russos, cujo único ideal seria iniciar a
revolução que destruiria o status quo,
é relatada uma conversa entre algumas pessoas sobre ateísmo: “numa certa
altura, um capitão de cabelos grisalhos, o tempo todo sentado, sempre calado,
sem dizer uma palavra; de repente se posta no centro do cômodo e fala em voz
alta como se falasse consigo: ‘Se Deus não existe, então que capitão sou eu
depois disso?’ pegou o quepe, ficou sem saber o que dizer e depois saiu”. (p.
228).
Comenta Giussani este trecho: “se
não é possível um nexo último, uma explicação última, se não é possível sair da
medida do instante para ligar-se ao todo (porque o problema é justamente sair
do instante, o que significa ligar-se com o todo), então não posso mais
estabelecer nenhum nexo, fico bloqueado no meu momento. (...) o significado é o
nexo que você estabelece saindo de si mesmo, saindo do instante, colocando-se
em relação” (op. cit., p. 179-180).
Ou seja, se negarmos o fato de
que “ao ser humano é necessário saber e acreditar em cada momento que há em
qualquer parte do mundo uma felicidade perfeita e calma, para tudo e para
todos” e que “a lei da existência humana consiste em que o homem pode sempre
inclinar-se perante o infinitamente grande” não temos como continuar afirmando
o valor de nossa própria pessoa: “se privássemos disso o homem, este não
quereria viver e morreria desesperado”. (Dostoiévski, op.cit., 2004, p. 642)
Os fatos destas semanas mostram como
os valores iluministas e laicistas não têm a capacidade de garantir nada e são
impotentes diante do terrorismo. É fato que os países onde este recente terrorismo
se alimentou e cresceu são os berços do multiculturalismo laicista, como a Bélgica,
onde até os nomes das festividades religiosas tradicionais foram banidos e onde
a eutanásia, inclusive infantil, é aceita e defendida até com violência.
Estamos, na verdade, diante de um
novo credo fundamentalista: a crença laicista na autonomia absoluta da instintividade
e na negação de qualquer verdade, até mesmo da verdade como fenômeno objetivo
que leva a razão e o indivíduo a reconhecer as evidências do real. Mas este
credo não se sustenta diante da constatação objetiva de nossa dificuldade cada
vez maior de reconhecer a dignidade da pessoa, da desordem afetiva que domina
os relacionamentos, do fato de seus novos gurus defenderem o prazer, mas serem
incapazes de buscar a felicidade. Esta é a raiz deste novo fundamentalismo,
pois todas as crenças – cristãs, islâmicas ou agnósticas – se tornam
fundamentalistas quando perdem a capacidade de se autojustificar racionalmente
diante das pessoas.
Paradoxalmente,
o multiculturalismo que apaga as identidades e a própria tradição, proposto por
essa nova crença, torna-se o berço da violência. Por isto, os fatos atuais
exigem que a intelectualidade ocidental repense também suas tomadas de posição
ideológicas. Se for verdade – como comentou parte do mundo muçulmano – que
também as ideias e as expressões midiáticas podem ser violentas, está na hora
de se interrogar acerca da ideologia desconstrucionista e niilista que vigora
hoje na educação dos jovens.
Marina Massimi
Paulo R. A. Pacheco
Rodrigo S. Borgheti
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