Aprender com a experiência

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A morte de uma criança que se tornou famosa por ser o neto de um homem que já foi poderoso e agora está na prisão pelos erros cometidos... uma morte que, como ele mesmo o disse, vai contra a lógica natural das coisas, evoca-nos a memória de um célebre sermão que padre Antonio Vieira pregou numa circunstância parecida: a morte prematura de uma jovem princesa da corte portuguesa. No sermão, Vieira afirmava que este fato contrário ao natural ciclo das coisas, se refletido pela consciência humana, aponta para a caducidade e a vaidade do poder temporal e das aparências que, em muitos casos, se tornam metas da existência e da história humanas. Aparências como aquela do poder.

Fatos como a morte de Arthur, neto do, hoje presidiário, Luiz Inácio Lula da Silva, deveriam, antes de mais, nos fazer refletir sobre nossa própria vida. No entanto está sendo objeto da curiosidade e de comentários estúpidos como os que ouvimos nos últimos dias nas redes sociais. Uma ocasião de reflexão desperdiçada, sobretudo por quem detém o poder: um fato como este lembra seu caráter caduco e passageiro. Maria do Carmo, baiana e trabalhadora numa empresa de limpeza pública fez, talvez, o único comentário razoável a respeito do acontecimento: “um homem poderoso... agora, perdeu tudo o que é mais importante na vida: um neto, promessa da vida que continua. De que lhe valeu ter ajuntado tanto poder e dinheiro... e servir-se de meios ilícitos... para depois chegar a isto? A vida não é nossa, não somos os donos dela. Nada nos pertence”. Uma sabedoria transmitida por uma longa tradição a quem Vieira pertencia, e guardada no coração de tantas pessoas do povo brasileiro, mas renegada (quando não pisoteada) pela mídia, pelos políticos e acadêmicos. A pergunta que ela faz é dirigida a cada um de nós, e interpela a nossa maneira de conduzir a própria vida.

E podemos ainda voltar a mencionar, para além da morte do pequeno Arthur, a tragédia de Brumadinho e seus cadáveres escondidos debaixo da lama: tudo isto está diante dos olhos de todos os brasileiros. Juntamente com a lógica desrespeitosa da vida humana e da natureza da Companhia Vale do Rio Doce e das demais empresas envolvidas, com sua omissão, nesse homicídio de proporções inimagináveis. E ainda impunes pela justiça humana. No entanto, bandos de jovens e de nem-mais-tão-jovens assim enchem as cidades brasileiras para pular carnaval em massas de gente alienada e estereotipada. E a mídia aponta nisto seus refletores e até se esquece de noticiar o que é mais grave, urgente, real. 

Se não houver espaço para refletir e julgar o que acontece, diante dos fatos prevalecerá a posição reativa, instintiva, sentimental, que não se tornará experiência. E, portanto, não se tornará memória.  Como afirmava Giussani, a experiência nasce do juízo sobre o que provamos, e o juízo é buscar pela atividade da razão, o sentido do que acontece, ligando o particular, o instante, ao todo. “Faz-se experiência quando se tem a 'inteligência do sentido das coisas'” [1], “inteligência” se refere a intus legere, à capacidade de ler o processo por dentro, de colher os elementos fundamentais do acontecimento e suas conexões com tudo mais (com o todo). Na expressão “inteligência do sentido das coisas”, Giussani acentua que o sentido é reconhecido na conexão dos elementos no acontecimento do mundo da vida, na conexão da totalidade de seus elementos. Assim, “experiência implica um critério de racionalidade, um critério avaliativo. Uma experiência que não seja racional não é uma experiência humana” [2]. “Não há outro caminho, no fundo, além dessa curiosidade desejosa despertada pelo pressentimento do verdadeiro” [3]: pessoa alguma poderia experienciar ou conhecer algo que não lhe despertasse uma curiosidade e um desejo, ou sem algum juízo pressentido no acontecimento. Dá-se experiência ao descobrir a conexão entre um elemento e outro, colhendo uma provocação pessoal, e provocando um crescimento de consciência de si ao responder a essa provocação. 

A realidade emerge à consciência segundo a totalidade dos fatores que a compõe. Mas o que quer dizer que emerge à consciência? Quer dizer que emerge a uma autoconsciência: é objeto de sua autoconsciência, é como uma parte de si da qual você toma consciência. Mas isto o que é? Chama-se experiência [4].

Urge, no País, que se façam presentes e atuantes lugares educativos do humano, onde as pessoas aprendam a fazer experiência, e, portanto, a fazer memória e portanto a assumir de verdade seu protagonismo civil. 

Notas:

[*] Gravura de Gustavo Doré representando os Cantos XIV e XV do Inferno, da Divina Comédia, de Dante Alighieri.
[1] GIUSSANI, citado por MAHFOUD, Miguel. A estruturação da experiência segundo Luigi Giussani. Estudos de Psicologia. (Campinas) [online], 2016, vol. 33, n. 3, pp. 395-401. Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-166X2016000300395&lng=en&nrm=iso>. access on  03  Mar.  2019.
[2] GIUSSANI, citado por MAHFOUD, Miguel. A estruturação da experiência segundo Luigi Giussani. Estudos de Psicologia. (Campinas) [online], 2016, vol. 33, n. 3, pp. 395-401. Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-166X2016000300395&lng=en&nrm=iso>. access on  03  Mar.  2019. Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-166X2016000300395&lng=en&nrm=iso>. access on  03  Mar.  2019.
[3] GIUSSANI, citado por MAHFOUD, Miguel. A estruturação da experiência segundo Luigi Giussani. Estudos de Psicologia. (Campinas) [online], 2016, vol. 33, n. 3, pp. 395-401. Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-166X2016000300395&lng=en&nrm=iso>. access on  03  Mar.  2019.
[4]  GIUSSANI, citado por MAHFOUD, Miguel. A estruturação da experiência segundo Luigi Giussani. Estudos de Psicologia. (Campinas) [online], 2016, vol. 33, n. 3, pp. 395-401. Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-166X2016000300395&lng=en&nrm=iso>. access on  03  Mar.  2019.