A reforma trabalhista e a Portaria 1.129/17 do Ministério do Trabalho apresentam pontos de evidente retrocesso com relação ao processo de dignificação do trabalho humano no Brasil. Como publicamos em postagens anteriores, a questão do valor do trabalho humano é decisiva para a sociedade e a política brasileira. Sem isto nunca haverá real democracia. Diante da gravidade do momento, queremos repropor trechos de um texto de Luigi Giussani, de 1987, que nos parecem muito significativos para os tempos atuais por evidenciarem o que está, em última instância, em jogo nesta discussão e por colocar a importância do empenho da Igreja e suas expressões associativas em prol da dignificação do trabalho e contra toda instrumentalização desumanizadora, como também a importante relação disto com a política e com a democracia. [1]
O visível nasce do invisível: a obra nasce de algo que pode parecer sentimental ou abstrato e que, no entanto, não o é.
No Evangelho, Jesus, dá a seguinte definição de Deus: “Meu Pai é o eterno trabalhador” (cf. Jo 5, 17). Com essa afirmação ele revela que o trabalho é expressão do ser.
O Mistério que faz todas as coisas tem uma dinâmica expressiva que penetra na realidade trinitária, mas que se reflete fora de si mesma, criando. E é por meio dessa criação, à qual nós pertencemos, que compreendemos as palavras de Jesus: “Meu Pai é o eterno trabalhador”. A palavra trabalho, atribuída ao Mistério que faz todas as coisas, indica, então, que o ser se exprime. De fato, tudo se move como numa irresistível imitação.
1) Também para nós o trabalho é expressão do nosso ser. Essa consciência dá verdadeiramente fôlego tanto ao operário, que se esforça oito horas por dia na sua bancada, quanto ao empresário, voltado a desenvolver sua empresa.
Mas o nosso ser - aquilo que a Bíblia chama “coração”: coragem, tenacidade, habilidade, esforço - é sede de verdade e de felicidade.
Não existe obra, desde a humilde da dona-de-casa até a do arquiteto genial, que possa subtrair-se a essa referência, à busca de uma satisfação plena, de uma realização humana: sede de verdade, que parte da curiosidade para entrar no enigma misterioso da busca; sede de felicidade que parte da instintividade e se dilata naquela concretude cheia de dignidade que, única, salva o instinto de corromper-se num falso e efêmero respiro. É esse coração que mobiliza quem quer que seja e qualquer seja a iniciativa que realize. Toda a vida é como que forçada por essa lógica: não existe outra fonte de energia que obrigue e habilite mais do que esta a cuidar, até nos pormenores, do trabalho no qual alguém se empenha.
Chamamos “senso religioso” o coração do homem: a sede de verdade e de felicidade dirige-se ao bem último, ao significado total que excede nossa possibilidade de imaginação e de definição. Ela é também a razão de todo o agir: o senso religioso é o vértice da razão, porque a razão é consciência da realidade segundo a totalidade dos seus fatores.
Ora, a sociedade não esgota a totalidade dos nossos fatores: não somos apenas engrenagens de um mecanismo ou tijolos do edifício social. O escopo social não esgota o que nós somos.
O trabalho também deve servir a verdade e a felicidade a que o homem pessoalmente aspira e estar em função delas. Neste sentido, a encíclica Laborem exercens afirma que a finalidade do trabalho não é o próprio trabalho, mas o homem (cf. LE, n. 6).
E é correta a afirmação de que uma obra, no fundo, é uma oração aberta ao senso religioso de quem tem fé e de quem não a tem, porque o senso religioso, assim descrito, está presente em toda pessoa.
2) Como é possível ao homem sustentar esse coração perante o cosmo e, sobretudo, perante a sociedade? Como é possível ao homem sustentar-se numa positividade e num otimismo último (porque sem otimismo não se pode agir)? A resposta é: Não sozinho, mas envolvendo outras pessoas consigo. Estabelecendo uma amizade operativa (convivência ou companhia ou Movimento), isto é, uma associação de energias mais vasta, baseada em um reconhecimento recíproco. Essa companhia será tanto mais consistente quanto mais o motivo pelo qual ela nasceu for permanente e estável. Uma amizade que nasce de um interesse econômico comum tem a duração do juízo a respeito de sua utilidade. Por sua vez, uma companhia, um Movimento, que surge da intuição de que o objetivo de uma iniciativa excede os termos da própria iniciativa, e é uma tentativa de responder a algo muito maior, enfim, um Movimento que nasce da percepção daquele coração que temos em comum e que nos define como homens, estabelece um pertencer.
Cristo estabeleceu na história um pertencer a uma realidade na qual a preocupação suprema é o destino, que permite o surgimento da iniciativa humana a partir da sua verdadeira origem, do seu verdadeiro coração: a Igreja.
No discurso que pronunciou no Meeting de Rímini1 (29 de agosto de 1982), João Paulo II declarou que o objetivo da Igreja é construir “uma civilização da verdade e do amor” (1982). Um objetivo inclusive terreno. Pois é a partir da documentação de uma humanidade melhor no tempo, na História, que se torna possível reconhecer a presença de um fator que a supera.
É o conceito evangélico de “milagre”. Milagre é uma humanidade que nunca teria sido capaz de realizar-se como resultado de um projeto ou de uma ação. Não uma realização definitiva (que acontecerá somente no final), mas um penhor dela desde já.
O cristianismo reconhece neste mundo o penhor do Paraíso; penhor que consiste justamente numa humanidade que se torna melhor quando a hipótese cristã é aceita e praticada. (...) A exigência original do homem tende, portanto, a um reconhecimento social. Não por acaso a Mater et magistra de João XXIII aponta entre os direitos fundamentais do homem o direito à liberdade de associação (cf MM, nn. 56-64). Por isso, seja no âmbito do Estado seja no da Igreja, toda tentativa de limitar a liberdade associativa é uma tirania. E vice-versa, o pertencer à Igreja por meio da associação aumenta a liberdade de expressão e de ação.
Na associação, a liberdade encontra mais espaço e segurança: a liberdade é pertencer a uma atividade livre.
O cristianismo vivido gera um fermento operativo sem limites: tende a envolver todo o horizonte da espera humana. Lê-se num texto recente do Samizdat: “O único problema verdadeiramente importante para os que crêem, a salvação de Cristo, não nos impede de ter acesso à riqueza e à complexidade da vida, mas a ilumina com uma luz nova. Só uma resposta universal [a todos os problemas da existência] pode ser autenticamente cristã. O pensamento cristão deve ser a voz da plena verdade daquilo que se vive cotidianamente”.
3) Um corolário. A liberdade de agir de forma criativa e operativa é questão de vida ou morte para uma civilização, e o é também para a democracia. Pela liberdade que se dá ao espaço para o trabalho que nasce do coração e é sustentado associativamente mede-se o grau de democratização de um poder, o seu respeito à liberdade (a liberdade de associação é o direito que mais se antagoniza ao poder).
O governo de uma sociedade só pode ter como primeira preocupação favorecer e valorizar o que nasce do coração do homem, adquirindo consistência em formas associativas.
É também este o único critério para julgar uma realidade política e um comportamento político. De fato, a pessoa que tem o senso do próprio coração, até fazer dele origem de companhia e de amizade, tem também o senso do sacrifício necessário para a ordem e o crescimento de toda a sociedade.
Notas
[1] O texto inteiro está disponível em: http://passos.tracce.it/?id=339&id_n=2403&pagina=8
[2] O Meeting pela Amizade entre os Povos, realizado anualmente em uma das semanas da segunda metade de agosto, na cidade de Rímini (Itália), é uma manifestação cultural constituída de mesas-redondas, palestras e encontros, mostras, espetáculos musicais e teatrais.
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