sábado, 8 de fevereiro de 2020

O PODER DOS SEM PODER: O CAMINHO PARA O AMADURECIMENTO DA DEMOCRACIA BRASILEIRA


Já tivemos oportunidade de apresentar no texto anterior trechos do livro O Poder dos Sem Poder do grande político e escritor checo Václav Havel.
Em sua visão sobre o que é uma democracia real, Havel destaca alguns pontos essenciais para o amadurecimento da nossa democracia brasileira:

O poder servirá aos cidadãos garantindo-lhes liberdade para construir a própria nação na medida que ajudar a preservar a memória da própria história. No seu primeiro discurso como Presidente Havel cita a frase de Primo Levi: “Todos aqueles que esquecem o seu passado se condenam a revivê-lo”. Poderíamos dizer: não conhecer e não compreender as dificuldades da história do país onde a escravidão moderna foi das mais longevas e profundas, impede e dificulta para sairmos da condição de uma país fortemente escravagista. Não está exatamente aqui a raiz da manutenção da condição de ser um dos países mais desiguais do mundo? No Brasil a desigualdade não é só uma das piores do mundo, mas tem cor: ela é negra.
Sem a memória do que se é, de que trajetória se percorreu, de que problemas se teve que enfrentar, um povo cai profundamente nas mãos de quem detém o poder, dando espaço ao autoritarismo e ao doutrinamento. Fica muito mais difícil avaliar, enxergar o caminho para ser protagonista da própria história, ter energia para agir. Sem memória se é facilmente massa de manobra.

“A política é a arte do impossível”. Havel diz “A política não pode ser somente a arte do possível, ou seja, da especulação, do cálculo, da intriga, dos acordos secretos e dos golpes, mas, sobretudo, deve ser a arte do impossível, isto é, a arte de melhorar a si mesmo e ao mundo” (pg.171). Sem isso, é “a ideologia que decide pelos homens, e não ao contrário. O poder se torna anônimo. Todos são implicados e escravizados” (pg. 50), dos cidadãos mais simples aos chefes de governo. Quando a realidade política se torna apenas um cálculo e lobbys de forças de interesses e acordos secretos, o chefe do governo age como se fosse um deus, isto é, o governar é tudo, é ação na sua concepção absoluta, não há nada que esteja acima disso (não há Deus!).
Em vez da contraposição: elite e povo, Havel propõe a integração coerente entre cultura e testemunho. Primeiro, dizia, vem a pessoa concreta, depois a estrutura social ou os entes intermediários e só em seguida, as instituições políticas (e não o contrário!).

O poder dos sem poder encontra sua força na suavidade e mansidão. Foi esta virtude que inspirou Havel a instaurar a “Revolução de Veludo” em 1989 e derrubar o comunismo na Checoslováquia. A Revolução de Veludo (17 de novembro a 29 de dezembro de 1989) foi uma imensa manifestação pacífica que gerou, em poucos meses, a deposição do governo comunista daquele país. É considerada como uma das mais importantes do período recente.
Em 17 de novembro de 1989, a polícia reprimiu uma manifestação estudantil em Praga. Este evento desencadeou uma série de manifestações populares entre novembro e dezembro daquele ano. Em 20 de novembro, o número de manifestantes passou de 200 mil para meio milhão de pessoas. E uma semana depois o país parava com uma manifestação geral. Nesse ínterim cercas de arame farpado e outras obstruções foram removidas na fronteira com a Alemanha Ocidental e a Áustria. O governo de partido único, desmoralizado, acabou por renunciar e abriu as eleições livres. Havel que estava à frente da revolução, tornou-se presidente da Checoslováquia.
Não se pode subestimar a força de uma população que vai às ruas reivindicar uma causa justa. Vimos isso na história recente no Brasil!
Um exemplo recente da importância da mobilização popular foi a iniciativa de um único morador da cidade de Cachoeira Paulista para a diminuição do salário dos vereadores. Depois de sua intensa mobilização nas redes sociais, os próprios vereadores se sentiram obrigados a atender o “anseio popular” e votaram pela redução de seu salário em 70%, levando em consideração as restrições financeiras do município, e as próximas eleições em que querem ser candidatos.

A democracia não pode se reduzir ao voto. Por muitas décadas o exercício democrático no Brasil se reduziu ao voto (obrigatório!). Se votava em candidatos pelos mais variados motivos, por achar o nome bonito, por receber “um santinho” na boca de urna, por achar a cara dele simpática ou a propaganda dele curiosa e bizarra (“Meu nome é Enéas”...), ou ainda porque me deu um par de sapatos. No dia seguinte, não se pensava mais em política, nem do político se lembrava mais, deixando-lhe fazer o que bem entendesse até a próxima eleição obrigatória.
Para Havel, reduzir a democracia ao ato de votar gera aquilo que os politólogos chamam de “despreocupação niilista” de quem diz ao político “guie-me você”. Havel diz, ao contrário, que a ordem é um equilíbrio (não uma imposição) e depende da corresponsabilidade e da cooperação social.

A base em que se fundamentam os direitos e deveres depende da definição de liberdade. Havel diz que liberdade de algo leva ao subjetivismo e a formas de governo totalitárias, enquanto que a liberdade para fazer algo cria comunitarismo e formas de governo democráticas. Embora seja sempre difícil defender a liberdade como dizia o senador romano Gaio Sallustio: “Somente poucos indivíduos preferem a liberdade, a grande maioria busca um patrão”.
Havel afirma que o primeiro direito é o de que uma pessoa possa ser si mesma onde o Senhor a colocou para viver. O primeiro dever, por sua vez, é aquele de não renunciar à própria responsabilidade de viver a sua experiência como pessoa no mundo sem homologar-se às lógicas mundanas, às ideologias, às modas e ao consumismo (“compre que você será feliz”).
Assumir uma responsabilidade pessoal é o que permite mudar as coisas, tomar consciência da realidade e ser protagonista. Nas ações políticas, ele colocava no centro a cooperação, o mercado justo e a economia solidária, o trabalho e a gestão transnacional do bem comum (hoje as mudanças climáticas, por exemplo).

A importância da palavra. O uso da palavra é uma arma muito poderosa para criar um mundo de mentira. Pode-se transformar um ato mortífero em algo positivo e terno, apenas mudando os termos para descrever esse ato. Havel descreve como os regimes antiliberais e totalitários mudaram as palavras para criar uma “ideia” da realidade, uma mentira generalizada, conveniente ao poder. Com o jogo das palavras se cria um mundo fantasia e se constroem as ideologias. Sobre o portão de entrada do campo de concentração de Auschwitz está escrito “O trabalho liberta”!
Os primeiros cristãos usavam o termo grego parrhesia para descrever a necessidade de sinceridade e franqueza. A importância da parrhesia é afirmada por Jesus, por exemplo, quando diz “que o vosso falar seja ‘sim, sim’; ‘não, não’, o restante vem do maligno” (Mt 5,37). A verdade, ao contrário da mentira, nunca é uma ideia, mas sempre se traduz em gestos. Havel descreve o episódio de um verdureiro que um dia decide retirar da vitrina, do meio das verduras, o cartaz que o regime tinha mandado todos colocarem: “Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos”. As consequências desse gesto simples e aparentemente discreto foram graves para ele. Por que? Porque o sistema totalitário se alimenta de mentiras. Nada mais perigoso do que não usar as palavras “corretas”.


Se o mundo da mentira se utiliza da construção teórica de palavras, o mundo na verdade se constrói através de gestos concretos de empenho com a realidade toda. Havel conta o episódio paradigmático de um produtor de cerveja que foi condenado porque começou produzir cerveja de melhor qualidade do que a receita que o partido tinha imposto por lei.
A mudança que gera o melhoramento da democracia começa, portanto, da responsabilidade interior de cada indivíduo, por fazer bem seu próprio trabalho, isto é, pelo jeito de fazer as coisas, por pequenos atos que expressam uma responsabilidade pessoal. Por isso, quando cada um decide ir às ruas para reivindicar algo, este gesto é mais poderoso do que o poder dos poderosos.


(Baseado no texto: Francesco Occhetta, “Václav Havel: Il Potere dei Senza Potere”, La Civiltà Cattolica, n. 4068, pgs. 592-601, 2020)

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