O Brasil é um país onde a tradição católica, e esse modo de ver as
coisas, teve uma influência determinante. Esta razão aberta e não pré-definida,
que segue e obedece ao real, pode ser encontrada com facilidade em nossa
história. Por exemplo, na época do Brasil colonial, a presença da Igreja,
notadamente dos missionários da Companhia de Jesus, num cenário complexo e
conflitivo marcado pela violência colonizadora e escravagista, levou-os a se colocarem
como agentes mediadores entre atores e interesses contrastantes e em muitos
casos opostos; possibilitando criar diálogo e convivência onde em principio
seria impossível, e permitindo a criação de um corpo social mestiço aonde de
outra forma somente poderia haver negações, contraposições e separações. Suassuna
referia-se a esta unidade como uma “harmonia entendida à moda
barroca”, como “composição de
contrários”. A receptividade às
dissonâncias inerente ao universo cultural brasileiro seria, segundo o
escritor, uma “característica popular, brasileira e barroca, de união harmônica
de termos antinômicos”, raiz esta da unidade profunda que perpassa todas as
obras brasileiras de arte e literatura, ao longo do tempo; e que permite ao intelectual
brasileiro “dar ouvido a todas as vozes”. [2]
João
Câmara Cascudo afirma que no Brasil há mescla entre tradições populares de
diferentes etnias. Ao abordar a gênese da canção popular brasileira, formula
uma hipótese sobre a modalidade em que esse amalgama aconteceu:
"No primeiro século da colonização, portugueses, índios e negros
acharam-se em frente um dos outros, e diante de uma natureza esplendida, em
luta, tendo por armas o obuz, a flecha e a enxada, e por lenitivos as saudades
da terra natal. (...), todos deviam cantar, porque todos tinham saudade (....).
Cada um devia cantar as canções de seu País. De todas elas amalgamadas e
fundidas em um só molde – a língua portuguesa, a língua do vencedor, é que se
formaram nos séculos seguintes os nossos cantos populares" [3]
A expressão “porosidade
de identidades” qualifica bem a peculiaridade do processo de formação da
cultura brasileira, onde diversas posições culturais presentes “não se perdem
misturando-se, mas também não se opõem entre si, nem se aproximam por simples
justaposição ou paralelismo, mas se tornam porosas umas às outras,
enriquecendo-se criativamente, reinterpretando-se mutuamente no interior do seu
próprio ser, sem deixar de se afirmar em suas diferenças” [4].
É preciso frisar que a
abertura à diversidade do real não significa relativização de tudo. A busca
pela verdade demanda a presença de diferentes perspectivas acerca da realidade
que em sua complexidade somente pode ser apreendida pela limitação humana num
contexto intersubjetivo. A confusão entre relativismo e abertura à alteridade
deve ser questionada, pois trata-se de posições ultimamente opostas. Ao
relativizar a verdade, o relativismo moderno nega a utilidade e a eficácia do
dialogo intersubjetivo. A posição católica é agudamente descrita numa encíclica
genial Caritas in veritate cujo conteúdo vale a pena retomar:
“A verdade há de ser procurada, encontrada e expressa na «
economia » da caridade, mas esta por sua vez há de ser compreendida, avaliada e
praticada sob a luz da verdade. Deste modo teremos não apenas prestado um
serviço à caridade, iluminada pela verdade, mas também contribuído para
acreditar a verdade, mostrando o seu poder de autenticação e persuasão na vida
social concreta. Facto este que se deve ter bem em conta hoje, num contexto
social e cultural que relativiza a verdade, aparecendo muitas vezes negligente
se não mesmo refratário à mesma. [...] a verdade (ao contrário) é « lógos »
que cria « diá-logos » e, consequentemente, comunicação e comunhão. A
verdade, fazendo sair os homens das opiniões e sensações subjetivas,
permite-lhes ultrapassar determinações culturais e históricas para se
encontrarem na avaliação do valor e substância das coisas. A verdade abre e une
as inteligências no logos do amor: tal é o anúncio e o testemunho
cristão da caridade. No atual contexto social e cultural, em que aparece
generalizada a tendência de relativizar a verdade, viver a caridade na verdade
leva a compreender que a adesão aos valores do cristianismo é um elemento útil
e mesmo indispensável para a construção duma boa sociedade e dum verdadeiro desenvolvimento
humano integral. Um cristianismo de caridade sem verdade pode ser facilmente
confundido com uma reserva de bons sentimentos, úteis para a convivência social
mas marginais. Deste modo, deixaria de haver verdadeira e propriamente lugar
para Deus no mundo. Sem a verdade, a caridade acaba confinada num âmbito
restrito e carecido de relações; fica excluída dos projetos e processos de
construção dum desenvolvimento humano de alcance universal, no diálogo entre o
saber e a realização prática.”
A retomada desta posição na vida concreta dos cristãos brasileiros é
urgente e necessária. Pois na história da evangelização do Brasil, foi
justamente uma posição moldada por essa aliança entre caridade e verdade que
possibilitou aos missionários promover mediações e integrações. No Brasil de
hoje, a perda dessa capacidade de diálogo em que verdade e caridade se
complementam é um fato totalmente novo e preocupante. Nas redes sociais
polarizações, expressas pelos rótulos de “esquerdistas” e “fascistas”,
pensamento em branco-e-preto que divide a realidade artificiosamente entre bons
e maus e assume tons verbais agressivos e desrespeitosos, são fruto de posturas
de preconceito reativo. Pois o preconceito ocorre “quando o homem se coloca
diante da realidade proposta tendo a reação como critério de juízo e não apenas
como condicionamento a ser superado numa abertura de pergunta”; ao passo que “é
a superação do preconceito que torna possível alcançar um significado que
exceda aquilo que você já sabe (ou crê saber)” (Giussani, pp. 145-146). A
partir do preconceito, se desenvolve a ideologia, “uma construção
teórico-prática baseada sobre um aspecto, ainda que verdadeiro, da realidade,
mas considerado, de certa forma, unilateral e tendenciosamente absoluto por uma
filosofia ou projeto político” (p. 147). A ideologia é construída com base numa
sugestão que a própria experiencia fornece, mas é tomada depois como pretexto
para uma “operação determinada por preocupações estranhas ou exorbitantes” (p.
147). A complexidade da realidade é assim reduzida a uma simplificação grotesca.
O Brasil, país multiétnico onde convivem populações de raízes étnicas e
culturais entre si muito diferentes, pela sua própria essência, não conseguiria
ficar se pé e sustentar-se, sem o convívio, a tolerância e o diálogo entre as
diferenças. A polarização poderia leva-lo a um processo de autodestruição...Por
isto, retomando ainda a encíclica Caritas in veritate:
“O desenvolvimento tem necessidade de
cristãos com os braços levantados para Deus em atitude de oração, cristãos
movidos pela consciência de que o amor cheio de verdade, do qual procede o
desenvolvimento autêntico, não o produzimos nós, mas é-nos dado. Por isso,
inclusive nos momentos mais difíceis e complexos, além de reagir
conscientemente devemos sobretudo referir-nos ao seu amor. O desenvolvimento implica
atenção à vida espiritual, uma séria consideração das experiências de confiança
em Deus, de fraternidade espiritual em Cristo, de entrega à providência e à
misericórdia divina, de amor e de perdão, de renúncia a si mesmo, de
acolhimento do próximo, de justiça e de paz.”[5]
Fora desta posição, mesmo usando palavras cristãs, somente se produzirão
rupturas e reduções ideológicas que levarão a uma crescente violência e
intolerância. Mas sobretudo, perde a nação brasileira sua característica mais
peculiar!
[2] Suassuna. A. (2003). Farsa
da Boa Preguiça. Rio de Janeiro, José Olympio Editora (Original, 1964). Prólogo.
[3] Cascudo, L. C.
(2002/1999). Superstição no Brasil. São
Paulo: Global. p. 280.
[4] Sanchis,
P. (2012). O “som Brasil”: uma tessitura sincrética? Em: Massimi, M.;
Jacó-Vilela, A.M.; Dantas, C.; Facchinetti, C.; Mahfoud, M; P. Sanchis. Psicologia: Cultura e História: perspectivas
em diálogo (pp. 15-54). Rio de Janeiro: Outras Letras Editora. P. 45.