quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Brasil: a riqueza de uma origem católica a preservar

Uma das principais características da forma católica de compreender a realidade é o conceito de razão. A mentalidade moderna reduziu a razão humana a um conjunto de categorias pré-definidas e estabelecidas ‘de modo lógico’ nas quais a realidade é obrigada a entrar: aquilo que não entra nessas categorias é definido como irracional, ou não racional. Para a tradição católica, pelo contrário, a razão é um olho escancarado para a realidade, “que bebe a realidade com avidez, grava os seus nexos, as suas implicações, discorre sobre ela, corre dentro do real, de uma coisa à outra, conservando-as todas dentro da memória, e tende a abraçar tudo”[1]. Assim a realidade, na sua imponderabilidade e complexidade, sempre precede e determina a maneira de a considerarmos, e não são as categorias lógicas pré-definidas pela nossa razão que permitem avaliar e medir a realidade de forma adequada.
O Brasil é um país onde a tradição católica, e esse modo de ver as coisas, teve uma influência determinante. Esta razão aberta e não pré-definida, que segue e obedece ao real, pode ser encontrada com facilidade em nossa história. Por exemplo, na época do Brasil colonial, a presença da Igreja, notadamente dos missionários da Companhia de Jesus, num cenário complexo e conflitivo marcado pela violência colonizadora e escravagista, levou-os a se colocarem como agentes mediadores entre atores e interesses contrastantes e em muitos casos opostos; possibilitando criar diálogo e convivência onde em principio seria impossível, e permitindo a criação de um corpo social mestiço aonde de outra forma somente poderia haver negações, contraposições e separações. Suassuna referia-se a esta unidade como uma “harmonia entendida à moda barroca”, como “composição de contrários”. A receptividade às dissonâncias inerente ao universo cultural brasileiro seria, segundo o escritor, uma “característica popular, brasileira e barroca, de união harmônica de termos antinômicos”, raiz esta da unidade profunda que perpassa todas as obras brasileiras de arte e literatura, ao longo do tempo; e que permite ao intelectual brasileiro “dar ouvido a todas as vozes”. [2]   
João Câmara Cascudo afirma que no Brasil há mescla entre tradições populares de diferentes etnias. Ao abordar a gênese da canção popular brasileira, formula uma hipótese sobre a modalidade em que esse amalgama aconteceu:
"No primeiro século da colonização, portugueses, índios e negros acharam-se em frente um dos outros, e diante de uma natureza esplendida, em luta, tendo por armas o obuz, a flecha e a enxada, e por lenitivos as saudades da terra natal. (...), todos deviam cantar, porque todos tinham saudade (....). Cada um devia cantar as canções de seu País. De todas elas amalgamadas e fundidas em um só molde – a língua portuguesa, a língua do vencedor, é que se formaram nos séculos seguintes os nossos cantos populares" [3]
A expressão “porosidade de identidades” qualifica bem a peculiaridade do processo de formação da cultura brasileira, onde diversas posições culturais presentes “não se perdem misturando-se, mas também não se opõem entre si, nem se aproximam por simples justaposição ou paralelismo, mas se tornam porosas umas às outras, enriquecendo-se criativamente, reinterpretando-se mutuamente no interior do seu próprio ser, sem deixar de se afirmar em suas diferenças” [4].
É preciso frisar que a abertura à diversidade do real não significa relativização de tudo. A busca pela verdade demanda a presença de diferentes perspectivas acerca da realidade que em sua complexidade somente pode ser apreendida pela limitação humana num contexto intersubjetivo. A confusão entre relativismo e abertura à alteridade deve ser questionada, pois trata-se de posições ultimamente opostas. Ao relativizar a verdade, o relativismo moderno nega a utilidade e a eficácia do dialogo intersubjetivo. A posição católica é agudamente descrita numa encíclica genial Caritas in veritate cujo conteúdo vale a pena retomar:
“A verdade há de ser procurada, encontrada e expressa na « economia » da caridade, mas esta por sua vez há de ser compreendida, avaliada e praticada sob a luz da verdade. Deste modo teremos não apenas prestado um serviço à caridade, iluminada pela verdade, mas também contribuído para acreditar a verdade, mostrando o seu poder de autenticação e persuasão na vida social concreta. Facto este que se deve ter bem em conta hoje, num contexto social e cultural que relativiza a verdade, aparecendo muitas vezes negligente se não mesmo refratário à mesma. [...] a verdade (ao contrário) é « lógos » que cria « diá-logos » e, consequentemente, comunicação e comunhão. A verdade, fazendo sair os homens das opiniões e sensações subjetivas, permite-lhes ultrapassar determinações culturais e históricas para se encontrarem na avaliação do valor e substância das coisas. A verdade abre e une as inteligências no logos do amor: tal é o anúncio e o testemunho cristão da caridade. No atual contexto social e cultural, em que aparece generalizada a tendência de relativizar a verdade, viver a caridade na verdade leva a compreender que a adesão aos valores do cristianismo é um elemento útil e mesmo indispensável para a construção duma boa sociedade e dum verdadeiro desenvolvimento humano integral. Um cristianismo de caridade sem verdade pode ser facilmente confundido com uma reserva de bons sentimentos, úteis para a convivência social mas marginais. Deste modo, deixaria de haver verdadeira e propriamente lugar para Deus no mundo. Sem a verdade, a caridade acaba confinada num âmbito restrito e carecido de relações; fica excluída dos projetos e processos de construção dum desenvolvimento humano de alcance universal, no diálogo entre o saber e a realização prática.”
A retomada desta posição na vida concreta dos cristãos brasileiros é urgente e necessária. Pois na história da evangelização do Brasil, foi justamente uma posição moldada por essa aliança entre caridade e verdade que possibilitou aos missionários promover mediações e integrações. No Brasil de hoje, a perda dessa capacidade de diálogo em que verdade e caridade se complementam é um fato totalmente novo e preocupante. Nas redes sociais polarizações, expressas pelos rótulos de “esquerdistas” e “fascistas”, pensamento em branco-e-preto que divide a realidade artificiosamente entre bons e maus e assume tons verbais agressivos e desrespeitosos, são fruto de posturas de preconceito reativo. Pois o preconceito ocorre “quando o homem se coloca diante da realidade proposta tendo a reação como critério de juízo e não apenas como condicionamento a ser superado numa abertura de pergunta”; ao passo que “é a superação do preconceito que torna possível alcançar um significado que exceda aquilo que você já sabe (ou crê saber)” (Giussani, pp. 145-146). A partir do preconceito, se desenvolve a ideologia, “uma construção teórico-prática baseada sobre um aspecto, ainda que verdadeiro, da realidade, mas considerado, de certa forma, unilateral e tendenciosamente absoluto por uma filosofia ou projeto político” (p. 147). A ideologia é construída com base numa sugestão que a própria experiencia fornece, mas é tomada depois como pretexto para uma “operação determinada por preocupações estranhas ou exorbitantes” (p. 147). A complexidade da realidade é assim reduzida a uma simplificação grotesca.
O Brasil, país multiétnico onde convivem populações de raízes étnicas e culturais entre si muito diferentes, pela sua própria essência, não conseguiria ficar se pé e sustentar-se, sem o convívio, a tolerância e o diálogo entre as diferenças. A polarização poderia leva-lo a um processo de autodestruição...Por isto, retomando ainda a encíclica Caritas in veritate:
“O desenvolvimento tem necessidade de cristãos com os braços levantados para Deus em atitude de oração, cristãos movidos pela consciência de que o amor cheio de verdade, do qual procede o desenvolvimento autêntico, não o produzimos nós, mas é-nos dado. Por isso, inclusive nos momentos mais difíceis e complexos, além de reagir conscientemente devemos sobretudo referir-nos ao seu amor. O desenvolvimento implica atenção à vida espiritual, uma séria consideração das experiências de confiança em Deus, de fraternidade espiritual em Cristo, de entrega à providência e à misericórdia divina, de amor e de perdão, de renúncia a si mesmo, de acolhimento do próximo, de justiça e de paz.”[5]
Fora desta posição, mesmo usando palavras cristãs, somente se produzirão rupturas e reduções ideológicas que levarão a uma crescente violência e intolerância. Mas sobretudo, perde a nação brasileira sua característica mais peculiar!


Referências:

[1]Giussani, L. Senso religioso, Brasília, Universa, 2009, p. 17

[2] Suassuna. A. (2003). Farsa da Boa Preguiça. Rio de Janeiro, José Olympio Editora (Original, 1964). Prólogo.

[3] Cascudo, L. C. (2002/1999). Superstição no Brasil. São Paulo: Global. p. 280.

[4] Sanchis, P. (2012). O “som Brasil”: uma tessitura sincrética? Em: Massimi, M.; Jacó-Vilela, A.M.; Dantas, C.; Facchinetti, C.; Mahfoud, M; P. Sanchis. Psicologia: Cultura e História: perspectivas em diálogo (pp. 15-54). Rio de Janeiro: Outras Letras Editora. P. 45.