O filme de Mel Gibson Até o ultimo homem lançado em 2016, ano do Jubileu da Misericórdia, propõe, através da ficção cinematográfica, a memória de um acontecimento da Segunda Guerra Mundial, em um dos momentos mais sangrentos e desesperadores do evento bélico. Através desta reproposição, o diretor Mel Gibson parece querer reafirmar, através de um testemunho real, a possibilidade de vivenciar a Misericórdia num contexto que parece construído para negá-la, marcado pelo total embrutecimento humano que leva os homens a se destruírem reciprocamente e a inventar formas cada vez mais sofisticadas para fazê-lo, como evidenciado em muitas cenas do filme.
O acontecimento é protagonizado por um jovem soldado americano: Desmond Thomas Doss (1919-2006), interpretado pelo ator Andrew Garfield, e tem por cruento cenário a sangrenta batalha de Maeda, (chamada batalha de Hacksaw Ridge) entre o exército japonês e o exército norte-americano, ocorrida em Okinawa, entre abril e junho de 1945, a maior batalha marítimo-terestre-aérea da história.
Imagem extraída daqui |
O filme reconstrói a história de Desmond desde a infância: descreve como ele aprendeu, desde pequeno, a conhecer-se a si mesmo também quanto à capacidade de fazer o mal contra seu próprio irmão, através de um jogo perigoso em que ele acaba ferindo-o. E também evidencia como Desmond, em sua experiência familiar, vê os efeitos sobre a experiência humana da crueldade da guerra. O pai, Cabo do exército condecorado, não conseguiu superar o trauma da guerra afundando no alcoolismo e na violência contra sua própria família. Assim, Desmond aprende que matar o outro leva a aniquilar-se a si mesmo e a quem mais amamos. Fortalecido pela sua pertença à Igreja Adventista do 7º Dia, Desmond cultiva um intenso diálogo com Deus que o leva imediatamente ao desejo de, como Cristo, "dar a vida pelos próprios amigos" [1]. Compreende que este amor passa por um posicionamento também diante de seu pai, de sua pátria em guerra, e abre um horizonte grande também à sua experiência de namoro. Assim, ele se voluntaria ao serviço militar dos EUA, mas servindo o país através de uma função e um objetivo diferentes: ao invés de matar as pessoas, ajudar a salvá-las. Sendo médico, ele empreende uma batalha interna dentro das forças armadas a fim de conseguir ser enviado ao front nesse papel diferente. Desmond, desse modo, nos mostra o que significa participar da Misericórdia que Deus manifesta por sua criatura: trata-se de ficar na linha de frente com uma clara identidade cristã. Não se trata, portanto, de recuar da luta e da história em nome de um hipócrita e cômoda posição de diálogo e imobilismo; mas estar na vanguarda da batalha, carregando o próprio ser homem em constante diálogo com Deus no meio da batalha, um diálogo onde tudo é vivido (desde sua namorada distante, até ao olhar que ele dirige aos soldados próximos dele e de quem escuta os pedidos de ajuda).
Como dizia Romano Guardini, no âmbito da experiência de um grande amor, tudo se torna acontecimento [2]. É assim que Desmond, em uma única batalha, mesmo desarmado, conseguiu salvar 75 soldados, animado pelo pedido constante: "Senhor, ajuda-me a salvar mais um"; e e pela leitura da pequena Bíblia que sempre carregava consigo. Isto lhe dá a força mais do que humana de salvar aquelas vidas, num contexto de grande perigo e risco, totalmente sem abrigo, arriscando-se sozinho no campo da batalha cheio de inimigos, para cuidar de cada um dos feridos, a maioria deles gravemente, como o filme de Gibson expõe.
Desse modo, o homem, em sua pequenez e consciente fragilidade, se transforma num incansável instrumento do poder de Deus, chegando a encarnar a própria parábola evangélica do Samaritano, com soldados amigos e até com inimigos. De cada um deles, feridos e desamparados, Desmond cuida e diz: "Estou aqui. Estou com você". Como que para lembrar da presença do Senhor da história, no meio da história mesma, inclusive na sua faceta mais sombria.
As imagens plásticas do filme de Gibson, que representam Desmond carregando nas costas os feridos, nos lembram imagens evangélicas, como aquela representada na "logomarca" do Ano Santo (a imagem do Samaritano, que carrega o desconhecido ferido e desamparado encontrado no caminho), ou a do Bom Pastor carregando sua ovelha nos ombros.
O filme é um Hino à Misericórdia, tecido através da realista e cru representação da brutalidade humana, afirmando a possibilidade de que, também diante do inimigo, pode emergir um olhar de compaixão e um cuidado, como aparece numa das mais belas cenas do filme, em que Doss ajuda um ferido do exército inimigo.
Em suma, o filme documenta que "a Misericórdia é a última palavra sobre as possibilidades mais feias da história humana" [3].
Notas:
[*] Imagem extraída daqui.
[1] Cf. Jo 15, 13.
[2] Cf. GUARDINI, Romano. L'essenza del cristianesimo. Brescia: Morcelliana, 2007.
[3] GIUSSANI, Luigi. Na simplicidade do meu coração cheio de letícia Te dei tudo. Passos, 59, mar/2005. Disponível aqui.
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