A inevitabilidade
da experiência religiosa
Eu acho que o homem é religioso como é bípede. Tem
Deus no começo e no fim. No meio fica a gente esperneando. Se espernear de
acordo, isto é, com sinceridade, esbarra NELE, não tem conversa. Adelia Prado – Solte os cachorros1
Como
diz Adelia Padro, não é possível separar o ser humano da experiência religiosa,
porque até o ateísmo, do ponto de vista gnosiológico, é uma experiência que
pertence ao âmbito da experiência religiosa (Arendt, 2013)2.
Bonaccorso
no seu livro Celebrar a Salvação
(1996)3 diz que “a existência humana se suspende entre o real e o
imaginário, a posse e o desejo, a conquista e a esperança, o passado e o
futuro, a decisão e a dúvida; nunca pertence a um só lado, nem pode ser
planificada segundo um modelo que elimine completamente a ambiguidade”, uma vez
que a sua dinâmica é polar.
O
ser humano tem necessidade para viver e não morrer desesperado, de ter sempre à
mão a possibilidade de abrir uma janela sob o horizonte que está fora e além da
sua vida quotidiana, onde pode ver o transcendente, isto é, aquilo que é bom,
belo e verdadeiro para ele. Ninguém acorda de manhã e diz: ‘tudo aquilo que
desejo verdadeiramente hoje é sofrer e ver coisas feias’. Se isto fosse
verdadeiro, a depressão não existiria. Dostoevskij diz justamente no seu livro Os
Demônios4:
Minha imortalidade é indispensável, porque Deus
certamente não desejará cometer uma injustiça e extinguir completamente o fogo
do amor por ele, aceso em meu coração. E o que é mais precioso que o amor? O
amor é superior à existência, é a coroação da existência, e como é possível que
a existência não esteja sujeita a ele? Se comecei a amá-lo e fiquei feliz com
meu amor, como é possível que Ele me destrua e minha alegria se transforme em
nada? Se Deus existe, eu também sou imortal! [...] Toda a lei da existência
humana reside apenas no fato de que o homem sempre pode se curvar diante do
infinitamente grande. Se os homens fossem privados do infinitamente grande, não
poderiam mais viver e morreriam em desespero. O infinito e o imenso são
igualmente indispensáveis ao homem, tanto quanto este pequeno planeta em que
ele habita.
Como
exprimir a experiência religiosa uma vez que esta é inevitável para viver?
Se
a experiência religiosa é uma constante em todas as culturas de todos os
tempos, assim como uma certa experiência religiosa não pode ser excluída nem
mesmo do ateísmo, é fundamental para nós cristãos a necessidade de expressar
essa dimensão da vida de um modo adequado. Assim, a pergunta para nós católicos
hoje e que se sucede à essa constatação é: “como” viver de modo persuasivo a
experiência religiosa, uma vez que o modus operandi da liturgia,
fortemente fixado no Concílio de Trento, se distanciou cada mais da realidade das
sociedades modernas?
O
distanciamento progressivo dos cristãos da língua latina, uma maior compreensão
da importância da consciência individual e do respeito por ela, uma maior
escolaridade e o reconhecimento do direito a essa que todo ser humano tem, a
consequente disseminação da alfabetização e do direito de todas as pessoas de
ler livros (particularmente a Bíblia), o crescente e imperativo desejo de
relações humanas mais igualitárias e sinodais, o crescimento das grandes
cidades e uma nova compreensão da importância e contribuição da dimensão
feminina para a sociedade contemporânea. Tudo isto levou a uma mudança na forma
de como vemos o ser humano, como vivemos as relações humanas na sociedade e,
consequentemente, na forma de lidar com o Totalmente Outro.
A
experiência religiosa como expressão litúrgica
Bonaccorso
(1996) afirma que a experiência religiosa é incindível da celebração litúrgica.
Explica em seu livro O Rito e o Outro (2001)5 que:
a inteligência humana age e se move em muitas
direções, mas inevitavelmente permanece ancorada a uma origem distante no
tempo, a uma ação primordial quase inatingível, a uma linguagem profunda cujas
palavras são entendidas apenas no silêncio mais intenso. A fé, entendida como a
"substância das coisas que se espera e prova daquelas que não se
veem" (Heb 11,1), é uma coisa só com essa linguagem, com esse tempo e com
essa ação. Acima de tudo, é atenta para encontrar, nos dias atuais da história,
os tempos, as linguagens e as ações que possam anunciar as coisas esperadas e
não vistas.
Portanto, o problema de como celebrar é muito importante. O grande liturgista
S. Marsili afirmava que "a liturgia é uma coisa viva, mas frágil; morre
nas mãos daqueles que não sabem tratar dela."
O mistério celebrado é sempre celebrado em uma comunidade. A comunidade
celebrante é parte integrante do mistério que se celebra; pois a palavra de
Deus cria a comunidade; fazendo-se carne, entra na comunidade; e se relaciona
com a comunidade (Bonaccorso, 1996). "A liturgia é, portanto, a própria
fonte da vida comunitária, uma vez que é a síntese original da relação
fundadora" (Grillo, 2019)6.
Mas há uma pré-condição para cada celebração cristã, como explica o nº 9
do Sacrosantum Concilium: "Antes que os homens possam se aproximar
da liturgia, eles devem ser chamados para a fé e se converter: 'Como eles
poderiam invocar aquele em quem eles não acreditam ...'". E assim voltamos
ao problema de como celebrar, porque é evidente que a profundidade da
compreensão da experiência da fé e do conhecimento da história da salvação será
decisiva na forma de celebrar; bem como a cultura, a percepção da beleza e o
bem que cada comunidade vive.
Notas:
1.
A. PRADO. Solte os cachorros, Coleção
Sabiá, Lisboa, 2003.
2.
H.
ARENDT. Religione e Política,
Feltrinelli Editore, Roma, 2013.
3. G. BONACCORSO. Celebrare la Salvezza, Lineamenti di
liturgia, Edizioni Messaggero, Padova, 1996.
4.
F. DOSTOEVSKIJ. Os Demônios.
5.
G. BONACCORSO. Il
Rito e L’Altro, La liturgia come tempo, linguaggio e azione.
Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano, 2001.
6. A. GRILLO. Dispensa del Corso Introduzione alla
Liturgia STBI, Gennaio 2019.