domingo, 14 de junho de 2020

Ciência e a Verdadeira Moralidade

O texto O que realismo, uso não redutivo da razão e moralidade no conhecimento têm a ver com hidroxicloroquina? [1], publicado em 18 de maio de 2020, apresenta de modo claro como a razão deve estar aberta “a totalidade dos fatores e uma postura moral no conhecimento impõem reconhecer evidências que nem sempre correspondem a opiniões, expectativas e fáceis soluções aos desafios da realidade.” Isso é exemplificado pela contraposição das afirmações da médica Nise Yamaguchi, defensora do uso da cloroquina no tratamento de pacientes com Covid-19, com o estudo científico realizado com pacientes hospitalizados do estado de Nova York, em que 1.438 pacientes de 25 hospitais foram avaliados pelos pesquisadores, os quais chegaram à conclusão que o tratamento com hidroxicloroquina, azitromicina ou os dois não foi associado à diminuição significativa da mortalidade [2].

Poucos dias depois, o raciocínio utilizado pelos autores de [1] foi ainda mais reforçado com um estudo que parecia ter chegado para colocar um ponto final na discussão sobre cloroquina. Os autores de “Hydroxychloroquine or chloroquine with or without a macrolide for treatment of COVID-19: a multinational registry analysis” [3], publicado em 22 de maio de 2020, apresentaram  um estudo com mais de 90 mil pessoas de diversas nacionalidades mostrando que não houve contestação de benefícios do uso da cloroquina. Além disso, nesse mesmo estudo, os autores reforçaram outras evidências que os pacientes que receberam cloroquina tiveram uma taxa de mortalidade maior e maior propensão ao desenvolvimento de arritmias cardíacas quando comparado a outros pacientes da Covid-19 que não receberam a droga.  Logo após a divulgação desse estudo, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou a interrupção de estudos clínicos com a cloroquina [4].

Em seguida, algo relativamente raro na ciência aconteceu. Em 3 de junho de 2020, os editores de The Lancet divulgaram uma nota em que expressavam preocupação sobre os resultados apresentados em [3]. De acordo com esta nota: “Questões científicas importantes foram levantadas (...) publicamos essa nota de alerta para deixar os leitores cientes que fatos sérios chegaram ao nosso conhecimento”. Dois dias depois, em 5 de junho de 2020, o artigo é retratado por três dos quatro autores, afirmando que “não é mais possível garantir a veracidade dos dados utilizados” [3].

A notícia da retratação voltou a aquecer o debate sobre o uso da cloroquina [5]. A primeira impressão que pode ficar é que, ao se retirar esse estudo, a validade das afirmações contrárias aos benefícios da cloroquina perde força. Mesmo que no mesmo dia da retratação, um outro importante estudo mostrou que os benefício profiláticos da cloroquina são os mesmos que placebo [6], para muitos ficou a impressão de um mal-estar, e ainda pior, do que o uso da razão atrelado a ciência sofreu um duro golpe. De fato, em recente publicação na revista Science, Travis e Piller apresentam duras críticas aos autores e editores envolvidos nesse processo [7]. Em vários aspectos pode se questionar o processo de elaboração e publicação do artigo [3] na The Lancet. As preocupações levantadas pelos editores não foram observadas durante o processo de revisão? Ainda, por que os autores não checaram a veracidade dos dados antes? Houve má fé de autores e/ou do corpo editorial? Questões que merecem atenção e aparentemente ainda não foram plenamente respondidas.

Mas como então conciliar o uso não redutivo da razão, pautado em grande parte por publicações científicas com a moralidade no conhecimento? Para isso é necessário falarmos da diferença entre moralismo e moralidade [8]. O moralismo é a “escolha unilateral de valores para abonar a própria visão das coisas”, enquanto a verdadeira moralidade tem como característica essencial “o desejo de correção”. Essa abertura à correção que deve permear toda a ciência, até mesmo em artigos publicados, encontra consonância com um dos pilares – senão o mais importante pilar da ciência assim descrito por Karl Popper: “A ciência produz teorias falseáveis, que serão válidas enquanto não refutadas” [9]. Popper indica que uma propriedade essencial da ciência é sua refutabilidade. Desse modo, apesar de todas as consequências negativas do artigo retratado, o pedido público de desculpas do Dr. Mandeep R. Mehra, um dos autores e professor de Harvard, unifica a verdadeira moralidade e a refutabilidade da ciência nas seguintes palavras “Eu não fiz o necessário para garantir que a fonte dos dados fosse apropriada para o uso. Por isso, e por todas as consequências – tanto diretas quanto indiretas – eu peço sinceramente desculpas” [7].

No momento, parece haver mais evidências de que há poucas esperanças para o uso da hidroxicloroquina no tratamento de pacientes. Em um dos maiores estudos até o momento publicado em 5 de junho de 2020, em um grupo de 1542 pacientes hospitalizados tratados com hidroxicloroquina, 25,7% faleceram após 28 dias, comparado com 23,5% em um grupo de  3132 pacientes que receberam tratamento padrão [10].

Por fim, tanto na ciência quanto na moralidade, é fundamental humildade para reconhecer os próprios erros. E como foi dito por Mark Damazer ao indicar Karl Popper com um dos maiores filósofos de todos os tempos [11]: “A verdadeira ignorância não é a ausência de conhecimento, mas a recusa em adquiri-lo.”

Erivelton Geraldo Nepomuceno

Referências

[1]        Núcleo Cultural Lux Mundi, “O que realismo, uso não redutivo da razão e moralidade no conhecimento têm a ver com hidroxicloroquina ?,” 2020.  [Online]. Available: https://ncluxmundi.blogspot.com/2020/05/o-que-realismo-uso-nao-redutivo-da.html
[2]       W. Tang et al., “Hydroxychloroquine in patients with mainly mild to moderate coronavirus disease 2019: open label, randomised controlled trial,” BMJ, p. m1849, May 2020 [Online]. Available: http://www.bmj.com/lookup/doi/10.1136/bmj.m1849
[3]       M. R. Mehra, S. S. Desai, F. Ruschitzka, and A. N. Patel, “RETRACTED: Hydroxychloroquine or chloroquine with or without a macrolide for treatment of COVID-19: a multinational registry analysis,” The Lancet, May 2020 [Online]. Available: https://linkinghub.elsevier.com/retrieve/pii/S0140673620311806
[4]        BBC, “Coronavirus: WHO halts trials of hydroxychloroquine over safety fears,” 2020 [Online]. Available: https://www.bbc.com/news/health-52799120
[5]        A. Joseph, “Lancet retracts major Covid-19 paper that raised safety concerns about malaria drugs,” CNBC, 2020 [Online]. Available: https://www.cnbc.com/2020/06/04/lancet-retracts-covid-19-paper-that-raised-safety-concerns-about-drugs.html
[6]        D. R. Boulware et al., “A Randomized Trial of Hydroxychloroquine as Postexposure Prophylaxis for Covid-19,” New England Journal of Medicine, p. NEJMoa2016638, Jun. 2020 [Online]. Available: http://www.nejm.org/doi/10.1056/NEJMoa2016638
[7]       C. Piller and J. Travis, “Authors, elite journals under fire after major retractions,” Science, vol. 368, no. 6496, pp. 1167–1168, Jun. 2020 [Online]. Available: https://www.sciencemag.org/lookup/doi/10.1126/science.368.6496.1167
[8]         L. Giussani, S. Alberto, and J. Prades, Deixar marcas na história do mundo. São Paulo: Companhia Ilimitada, 2019.
[9]        K. Popper, Conjectures and refutations: The growth of scientific knowledge. New York: Basic Books, 1962.
[10]      K. Kupferschmidt, “Big studies dim hopes for hydroxychloroquine,” Science, vol. 368, no. 6496, pp. 1166–1167, Jun. 2020 [Online]. Available: https://www.sciencemag.org/lookup/doi/10.1126/science.368.6496.1166
[11] M. Damazer, “In Our Time’s Greatest Philosopher,” BBC.  [Online]. Available: https://www.bbc.co.uk/radio4/history/inourtime/greatest_philosopher_celeb.shtml