O texto O que realismo, uso não redutivo da razão e moralidade no
conhecimento têm a ver com hidroxicloroquina? [1], publicado em 18 de maio de 2020, apresenta de modo claro como a razão
deve estar aberta “a totalidade dos fatores e uma postura moral no conhecimento
impõem reconhecer evidências que nem sempre correspondem a opiniões,
expectativas e fáceis soluções aos desafios da realidade.” Isso é exemplificado
pela contraposição das afirmações da médica Nise Yamaguchi, defensora do uso da
cloroquina no tratamento de pacientes com Covid-19, com o estudo científico
realizado com pacientes hospitalizados do estado de Nova York, em que 1.438
pacientes de 25 hospitais foram avaliados pelos pesquisadores, os quais
chegaram à conclusão que o tratamento com hidroxicloroquina, azitromicina ou os
dois não foi associado à diminuição significativa da mortalidade [2].
Poucos dias depois, o raciocínio utilizado pelos autores de [1] foi ainda mais reforçado com um estudo que
parecia ter chegado para colocar um ponto final na discussão sobre cloroquina.
Os autores de “Hydroxychloroquine or chloroquine with or without a macrolide
for treatment of COVID-19: a multinational registry analysis” [3],
publicado em 22 de maio de 2020, apresentaram
um estudo com mais de 90 mil pessoas de diversas nacionalidades
mostrando que não houve contestação de benefícios do uso da cloroquina. Além
disso, nesse mesmo estudo, os autores reforçaram outras evidências que os
pacientes que receberam cloroquina tiveram uma taxa de mortalidade maior e
maior propensão ao desenvolvimento de arritmias cardíacas quando comparado a
outros pacientes da Covid-19 que não receberam a droga. Logo após a divulgação desse estudo, a
Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou a interrupção de estudos clínicos
com a cloroquina [4].
Em seguida, algo relativamente raro na ciência aconteceu. Em 3 de junho
de 2020, os editores de The Lancet divulgaram uma nota em que expressavam
preocupação sobre os resultados apresentados em [3]. De acordo com esta nota: “Questões científicas importantes foram
levantadas (...) publicamos essa nota de alerta para deixar os leitores cientes
que fatos sérios chegaram ao nosso conhecimento”. Dois dias depois, em 5 de
junho de 2020, o artigo é retratado por três dos quatro autores, afirmando que “não
é mais possível garantir a veracidade dos dados utilizados” [3].
A notícia da retratação voltou a aquecer o debate sobre o uso da
cloroquina [5]. A primeira impressão que pode ficar é que, ao se retirar esse estudo,
a validade das afirmações contrárias aos benefícios da cloroquina perde força.
Mesmo que no mesmo dia da retratação, um outro importante estudo mostrou que os
benefício profiláticos da cloroquina são os mesmos que placebo [6], para muitos ficou a impressão de um
mal-estar, e ainda pior, do que o uso da razão atrelado a ciência sofreu um
duro golpe. De fato, em recente publicação na revista Science, Travis e Piller
apresentam duras críticas aos autores e editores envolvidos nesse processo [7]. Em vários aspectos pode se questionar o processo de elaboração e
publicação do artigo [3] na The Lancet. As preocupações levantadas pelos editores não foram
observadas durante o processo de revisão? Ainda, por que os autores não
checaram a veracidade dos dados antes? Houve má fé de autores e/ou do corpo
editorial? Questões que merecem atenção e aparentemente ainda não foram plenamente
respondidas.
Mas como então conciliar o uso não redutivo da razão, pautado em grande
parte por publicações científicas com a moralidade no conhecimento? Para isso é
necessário falarmos da diferença entre moralismo e moralidade [8]. O moralismo é a “escolha unilateral de valores para abonar a própria
visão das coisas”, enquanto a verdadeira moralidade tem como característica
essencial “o desejo de correção”. Essa abertura à correção que deve permear
toda a ciência, até mesmo em artigos publicados, encontra consonância com um
dos pilares – senão o mais importante pilar da ciência assim descrito por Karl
Popper: “A ciência produz teorias falseáveis, que serão válidas enquanto não
refutadas” [9]. Popper indica que uma propriedade essencial da ciência é sua
refutabilidade. Desse modo, apesar de todas as consequências negativas do
artigo retratado, o pedido público de desculpas do Dr. Mandeep R. Mehra, um dos
autores e professor de Harvard, unifica a verdadeira moralidade e a
refutabilidade da ciência nas seguintes palavras “Eu não fiz o necessário para
garantir que a fonte dos dados fosse apropriada para o uso. Por isso, e por
todas as consequências – tanto diretas quanto indiretas – eu peço sinceramente
desculpas” [7].
No momento, parece haver mais evidências de que há poucas esperanças
para o uso da hidroxicloroquina no tratamento de pacientes. Em um dos maiores
estudos até o momento publicado em 5 de junho de 2020, em um grupo de 1542
pacientes hospitalizados tratados com hidroxicloroquina, 25,7% faleceram após
28 dias, comparado com 23,5% em um grupo de
3132 pacientes que receberam tratamento padrão [10].
Por fim, tanto na ciência quanto na moralidade, é fundamental humildade
para reconhecer os próprios erros. E como foi dito por Mark Damazer ao indicar
Karl Popper com um dos maiores filósofos de todos os tempos [11]: “A verdadeira ignorância não é a ausência de conhecimento, mas a
recusa em adquiri-lo.”
Erivelton Geraldo Nepomuceno
Referências
[1] Núcleo
Cultural Lux Mundi, “O que realismo, uso não redutivo da razão e moralidade no
conhecimento têm a ver com hidroxicloroquina ?,” 2020. [Online]. Available: https://ncluxmundi.blogspot.com/2020/05/o-que-realismo-uso-nao-redutivo-da.html
[2] W.
Tang et al., “Hydroxychloroquine in patients with mainly mild to
moderate coronavirus disease 2019: open label, randomised controlled trial,” BMJ,
p. m1849, May 2020 [Online]. Available:
http://www.bmj.com/lookup/doi/10.1136/bmj.m1849
[3] M.
R. Mehra, S. S. Desai, F. Ruschitzka, and A. N. Patel, “RETRACTED:
Hydroxychloroquine or chloroquine with or without a macrolide for treatment of
COVID-19: a multinational registry analysis,” The Lancet, May 2020
[Online]. Available:
https://linkinghub.elsevier.com/retrieve/pii/S0140673620311806
[4] BBC,
“Coronavirus: WHO halts trials of hydroxychloroquine over safety fears,” 2020
[Online]. Available: https://www.bbc.com/news/health-52799120
[5] A.
Joseph, “Lancet retracts major Covid-19 paper that raised safety concerns about
malaria drugs,” CNBC, 2020 [Online]. Available:
https://www.cnbc.com/2020/06/04/lancet-retracts-covid-19-paper-that-raised-safety-concerns-about-drugs.html
[6] D.
R. Boulware et al., “A Randomized Trial of Hydroxychloroquine as
Postexposure Prophylaxis for Covid-19,” New England Journal of Medicine,
p. NEJMoa2016638, Jun. 2020 [Online]. Available:
http://www.nejm.org/doi/10.1056/NEJMoa2016638
[7] C.
Piller and J. Travis, “Authors, elite journals under fire after major
retractions,” Science, vol. 368, no. 6496, pp. 1167–1168, Jun. 2020
[Online]. Available:
https://www.sciencemag.org/lookup/doi/10.1126/science.368.6496.1167
[8] L.
Giussani, S. Alberto, and J. Prades, Deixar marcas na história do mundo.
São Paulo: Companhia Ilimitada, 2019.
[9] K.
Popper, Conjectures and refutations: The growth of scientific knowledge.
New York: Basic Books, 1962.
[10] K.
Kupferschmidt, “Big studies dim hopes for hydroxychloroquine,” Science,
vol. 368, no. 6496, pp. 1166–1167, Jun. 2020 [Online]. Available:
https://www.sciencemag.org/lookup/doi/10.1126/science.368.6496.1166
[11] M.
Damazer, “In Our Time’s Greatest Philosopher,” BBC. [Online]. Available:
https://www.bbc.co.uk/radio4/history/inourtime/greatest_philosopher_celeb.shtml
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