quinta-feira, 30 de julho de 2020

Obriga-nos a voltar às perguntas


A crise sanitária e econômica que enfrentamos nos obriga a encarar a realidade. Julian Carron, presidente da Fraternidade de CL em carta, datada de 01/03/2020, ao Corriere della Sera expressa: “É este o valor de toda e qualquer crise, como nos ensina Hannah Arendt: «Obriga-nos a voltar às perguntas», traz à tona o nosso eu em toda a sua exigência de significado.”. Semelhante percepção ecoa na sociedade brasileira. Em artigo publicado no Estadão do dia 23 de julho de 2020, Fernando Gabeira assinalava que apesar de “o foco de nossas discussões hoje no Brasil tem sido o governo: atacar ou defender o que está aí, arranjos para derrubar ou manter Bolsonaro de pé”, perfila-se no horizonte “uma crise de grandes proporções”. O enfrentamento desta crise implica o posicionamento em prol de uma “visão de mundo”. E que impõe a necessidade de “abordar a crise de forma criativa, aplicando no futuro não só as lições do passado, mas, acima de tudo, aquelas que se tornaram evidentes durante a pandemia”.

E faz um exemplo de uma destas evidências: “as diferenças sociais no Brasil não podem apenas ser combatidas com a ideia de que é preciso aumentar o consumo de eletrodomésticos e carros. Existe um consumo de qualidade que pode surgir de um eficaz serviço público: saneamento, educação, sistema de saúde universal e bem equipado”. Indica também atores chamados a protagonizar este processo de mudança: “a enorme potencialidade do Brasil, popular, intelectual, científica, enfim, todos esses fatores que o governo despreza precisam estar juntos (....) o processo de reconstrução”.

De fato, a crise atual escancara as feridas mais profundas do País: sobretudo no que diz respeito ao valor supremo da vida humana (própria e do outro), aos olhos dos políticos, aos olhos dos empresários, dos donos do capital financeiro, dos produtores de agronegócios, dos comerciantes e também daqueles brasileiros que optaram para desafiar a ameaça do vírus à saúde própria e dos outros em prol do acesso ao consumo e a bens efêmeros e em nome de uma ideia de liberdade individual, abstrata e autoritária. Mas este descaso pelo valor da vida humana encontra no Brasil terreno particularmente fértil considerando que a atroz desigualdade social que marca o País de qualquer forma já condena parte de sua população a condições desumanas. E que a lógica da mentalidade colonialista e escravocrata introjetada sobretudo por quem no Brasil detém os poderes já usa dos recursos humanos e ambientais da nação de modo predatório e exploratório

Em pauta é que para reconstruir o Brasil se torna hoje inevitável a contestação, o juízo e a superação desta lógica, sem os quais nenhum progresso real e estável nunca se fará possível. Quais os fatores educativos para arriscar este caminho?

Sem certamente esgotarmos o assunto, como cristãos vamos arriscar propor um ponto central que podemos perseguir. O protagonismo dos cristãos se destaca nos momentos críticos da história, quanto a um trabalho educativo permanente para o amor ao bem comum. A. MacIntyre no fim de seu livro Além da virtude na tentativa de compreender a crise contemporânea da ética e o falimento das tradições políticas da Modernidade retorna a um momento da história antiga “quando as pessoas de boa vontade se afastaram da tarefa de dar apoio ao imperium romano e deixaram de identificar a continuação da civilidade e da comunidade moral com a manutenção daquele imperium” e resolveram “construir as novas formas de comunidade dentro das quais seria possível sustentar a vida moral”. Ao afirmar a urgência atual destas, “formas locais de comunidade dentro das quais se possa sustentar a civilidade e a vida intelectual e moral durante a nova Idade das Trevas que estamos vivendo” (p. 440-441), McIntyre evoca, justamente, a figura histórica de Bento da Nursia, um dos protagonistas e líderes deste movimento.

Retomemos também quanto visto em alguns posts publicados recentemente neste blog, O santo cardeal J.H. Newman em sua busca pela verdade, identificou no Cristianismo em sua originalidade, o centro da questão: o método do caminho. E é isso que nós também precisamos fazer. Assim, como os primeiros cristãos, precisamos buscar a união e colocar tudo em comum. E talvez um dos pontos centrais do 'tudo em comum' de nossos tempos sejam nossas decisões, nossas opiniões, nossos juízos sobre a realidade. A sabedoria, o uso do juízo, do discernimento, é um grande patrimônio que a tradição judaico-cristã trouxe ao mundo: a postura do jovem Salomão que pede a Deus não as riquezas e o poder político mas antes de mais nada a sabedoria e o discernimento (1 Rei, 3, 5-7; 12) e a quem Deus concede este bem sumo e todos os demais, assinala um ideal de homem que construiu o Ocidente.

No mundo contemporâneo, alguns pensadores atentos à realidade assinalam que ainda hoje este é o ponto determinante: dentre eles, Hannah Arendt insiste na necessidade de que os homens retomem a capacidade de julgar, de discernir entre o bem e o mal. A filósofa judia afirma que do esmorecimento deste ato humano brotam a persistência da influência do totalitarismo/autoritarismo na mentalidade contemporânea, a perda da capacidade de pensar e julgar na vida quotidiana das pessoas, e finalmente a escolha perversa para se livrar na obrigação da ação, a naturalização do mal. Este esmorecimento deve-se à perda ou a falta de educação para um uso adequado da razão dentro das práticas cotidianas e a consequente redução do horizonte do desejo humano, manipulado e achatado aos produtos oferecidos pelo mercado e pelas mídias. Somente na dimensão comunitária, o uso da razão pode acontecer de modo a considerar todos os fatores da realidade.

Nessa perspectiva, a missão dos cristãos hoje é não deixar que fique perdido este tempo de recolhimento forçado pela pandemia, onde os problemas do Brasil emergiram com grande evidência provocando a uma reflexão e tomada de posição.  E isto significa promover com o testemunho e os encontros um trabalho educativo pautado também na longa tradição em que a igreja usou a razão para a consideração dos temas sociais e políticos da vida humana naquele patrimônio chamado de Doutrina social da Igreja e cujo compêndio está inteiramente disponível em versão português no site: http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/justpeace/documents/rc_pc_justpeace_doc_20060526_compendio-dott-soc_po.html


domingo, 5 de julho de 2020

São John Henry Newman






São John Henry Newman nasceu em 21 de fevereiro de 1801 em Londres, Inglaterra. Filho mais velho de um banqueiro, iniciou os estudos na Universidade de Oxford aos 16 anos, tornando-se professor desta mesma instituição cinco anos mais tarde. Newman tornou-se vigário da Igreja Anglicana, assumindo a paróquia de Saint Mary the Virgin, também em Oxford. Em 1845, ele se converteu ao catolicismo. Newman foi beatificado em 2010 pelo Papa Bento XVI e canonizado pelo Papa Francisco em 2019 [1].

Esta é uma série de textos baseadas no trabalho do Padre Peter Cornwell (Inglaterra) sobre  São John Henry Newman. Os textos foram elaborados em preparação a visita do Papa Bento XVI ao Reino Unido para a beatificação. Em formato de podcast, o trabalho do Padre Cornwell está disponível na página especialmente criada para cobrir a histórica visita do Papa Bento XVI à Inglaterra [2].

A motivação para apresentar São John Henry Newman é a sua incisiva busca pela verdade. Nesses pequenos textos, Padre Cornwell apresenta a vida de um santo: atribulada, intensa, verdadeira. Em meio a crises políticas, guerras e fragilidade da fé, a sua obra, mas principalmente sua vida, é fonte de inspiração para dias atuais. Os textos produzidos em 2010, tratam do então Beato Newman, mas o que chama a atenção do texto é ter sido produzido por um padre, um estudioso do Newman que foi pároco da mesma paróquia que Newman fora, em Oxford. Assim, os textos contam com uma conotação pessoal, uma aventura pessoal do Padre Cornwell. Todos são convidados a essa peregrinação, que como nas palavras do Papa Francisco ao citar Newman: “Para Newman, mudança é conversão, em outras palavras, transformação interior. A vida cristã é uma viagem, uma peregrinação. A história da Bíblia é viajar, marcada por incessantes recomeços” [3]. Assim nesta sequência de cinco textos, que a busca da Verdade seja nosso guia... e mais uma oportunidade para recomeçar.

Conhecendo Newman - Parte 1/5


Acho - diz Padre Peter Cornwell - que comecei a conhecer John Henry Newman quando, como pároco na Igreja Anglicana, a mesma que Newman atuou anos atrás, tropecei no altar. Não foi uma simples batida, e acabei sofrendo uma fratura no meu pé. Superando a dor com analgésicos, sentei-me no meu jardim da paróquia e comecei a ler um livro, que há muitos anos havia recebido indicação para ler - o livro de John Henry Newman ‘Apologia' um fragmento autobiográfico [4]. ‘Um dos melhores exemplos da literatura inglesa’, disseram. De fato, achei que era bem mais! Nessa obra, encontrei um ser humano realmente fascinante.

Às vezes, pode-se ficar com a impressão de que pessoas justas são transformadas em santos, mas que para isso parecem perder a humanidade - como se uma pessoa real tivesse de ser eliminada. Não é o que aconteceu com este santo inglês.  Newman escreveu sua 'Apologia' em resposta a um clérigo bastante respeitado, Charles Kingsley, que questionou sua integridade. Ele alegou que Newman compreende a verdade de forma peculiar e atuou como uma espécie de teólogo mais interessado em defender as visões de outras pessoas do que em busca da verdade. Newman responde contando a história de sua conversão da Igreja Anglicana para a Igreja Católica. Newman contou essa história da maneira mais honesta possível.

Newman surge como um ser humano complexo. Imagens de Newman o mostram como um acadêmico de Oxford bastante severo do século XIX. Lá ele está em um púlpito, espiando por cima de óculos colocados em um nariz bastante longo, preparando-se para dar palestras ou pregações. Mas por trás de tudo isso existe um ser humano bastante sofrido.  Ele teve uma infância difícil. Seu pai era um banqueiro próspero que foi vítima do desastre bancário de 1816 após as Guerras Napoleônicas. O negócio do pai foi à falência, bem como a saúde e ele morreu cedo, deixando sua família em certa harmonia, mas também com grandes dificuldades financeiras e sociais.

O fracasso pairava sobre Newman desde sua infância. A família, ao mesmo tempo suporte, também era estímulo para a falta de sucesso. Ele era um estudante brilhante em Oxford, mas extremamente exigente consigo mesmo, o que o levou a ter um colapso e baixo rendimento nos exames finais. Recuperar-se do fracasso passou a ser um tópico recorrente na vida de Newman. Com muito esforço ele conseguiu ser aprovado e ser um tornar um professor da Universidade de Oxford.

Newman amava o trabalho de ensinar e a vida tranqüila de um pesquisador, mas, por bem ou por mal, ele parecia estar sempre atraídos para discussões e conflitos públicos. De fato, ele não resistia a uma batalha intelectual. Com a caneta na mão, Newman não era apenas um escritor brilhante, mas também um instigado oponente. Isso, é claro, tinha como consequência a geração de inimizades, as quais o levou a receber fortes e dolorosas críticas. Se por um lado, Newman era perspicaz em sua dialética, sua sensibilidade não permitia se blindar adequadamente. Como resultado, Newman sofria muito com esses embates.

Ele era por natureza intensamente reservado e ainda era capaz de profundas e intensas amizades. Desde tenra idade, ele tinha tendência ao sobrenatural - era um visionário: ‘Gostaria de viver como se os contos árabes fossem verdadeiros: ter minha imaginação sob influências desconhecidas ou poderes mágicos… Eu pensei que a vida poderia ser um sonho, ou eu um anjo, e todo esse mundo um engano’ [p. 2, 4]. Em seu diário, além de questões existenciais tão profundas, também podia se notar queixas bem simples, assuntos terrenos, como o mau atendimento recebido em hotéis que frequentava. Newman levava muito a sério a vida, os pormenores… Mas também era capaz de se divertir brincando com os filhos de seus amigos. Amava pegar seu violino, se recolher, e tocar músicas clássicas.


O verdadeiro Newman, do semblante sisudo às verrugas, é de fato um ser humano fascinante e complexo. Como Papa Bento nos lembrou: 'Santos não caem do céu - são pessoas como nós com problemas complicados como nós. "Dizem que eles vão fazer de Newman um santo, mas eles não podem. Somente Deus pode fazer santos e o único material em que ele tem que trabalhar é matéria-prima da realidade em que os seres humanos estão inseridos. O que acontecerá em Birmingham (momento da beatificação do Newman em 2010) não é a criação de um santo com o uso de pó mágico, mas sim, a família católica acordando para ver o que Deus fez com a matéria-prima de John Henry Newman. É a família católica identificando a mão do artesão divino e depois se unindo para comemorar o resultado final: a formação de um santo.