A crise sanitária
e econômica que enfrentamos nos obriga a encarar a realidade. Julian Carron,
presidente da Fraternidade de CL em carta, datada de 01/03/2020, ao Corriere
della Sera expressa: “É este o valor de toda e qualquer crise, como nos ensina
Hannah Arendt: «Obriga-nos a voltar às perguntas», traz à tona o nosso eu em
toda a sua exigência de significado.”. Semelhante percepção ecoa na sociedade
brasileira. Em artigo publicado no Estadão do dia 23 de julho de 2020, Fernando
Gabeira assinalava que apesar de “o foco de nossas discussões hoje no Brasil
tem sido o governo: atacar ou defender o que está aí, arranjos para derrubar ou
manter Bolsonaro de pé”, perfila-se no horizonte “uma crise de grandes
proporções”. O enfrentamento desta crise implica o
posicionamento em prol de uma “visão de
mundo”. E que impõe a necessidade de “abordar a crise de forma criativa,
aplicando no futuro não só as lições do passado, mas, acima de tudo, aquelas
que se tornaram evidentes durante a pandemia”.
E faz
um exemplo de uma destas evidências: “as
diferenças sociais no Brasil não podem apenas ser combatidas com a ideia de que
é preciso aumentar o consumo de eletrodomésticos e carros. Existe um consumo de
qualidade que pode surgir de um eficaz serviço público: saneamento, educação,
sistema de saúde universal e bem equipado”. Indica também atores chamados a
protagonizar este processo de mudança: “a enorme potencialidade do Brasil,
popular, intelectual, científica, enfim, todos esses fatores que o governo
despreza precisam estar juntos (....) o processo de reconstrução”.
De fato, a crise atual escancara as feridas mais profundas
do País: sobretudo no que diz respeito ao valor supremo da vida humana (própria
e do outro), aos olhos dos políticos, aos olhos dos empresários, dos donos do
capital financeiro, dos produtores de agronegócios, dos comerciantes e também
daqueles brasileiros que optaram para desafiar a ameaça do vírus à saúde
própria e dos outros em prol do acesso ao consumo e a bens efêmeros e em nome
de uma ideia de liberdade individual, abstrata e autoritária. Mas este descaso
pelo valor da vida humana encontra no Brasil terreno particularmente fértil
considerando que a atroz desigualdade social que marca o País de qualquer forma
já condena parte de sua população a condições desumanas. E que a lógica da
mentalidade colonialista e escravocrata introjetada sobretudo por quem no
Brasil detém os poderes já usa dos recursos humanos e ambientais da nação de
modo predatório e exploratório
Em pauta é que para reconstruir o Brasil se torna hoje
inevitável a contestação, o juízo e a superação desta lógica, sem os quais
nenhum progresso real e estável nunca se fará possível. Quais os fatores
educativos para arriscar este caminho?
Sem certamente esgotarmos o assunto, como cristãos vamos
arriscar propor um ponto central que podemos perseguir. O protagonismo dos
cristãos se destaca nos momentos críticos da história, quanto a um trabalho
educativo permanente para o amor ao bem comum. A. MacIntyre no fim de seu livro Além da virtude na tentativa de
compreender a crise contemporânea da ética e o falimento das tradições
políticas da Modernidade retorna a um momento da história antiga “quando as
pessoas de boa vontade se afastaram da tarefa de dar apoio ao imperium romano e deixaram de identificar
a continuação da civilidade e da comunidade moral com a manutenção daquele imperium” e resolveram “construir as
novas formas de comunidade dentro das quais seria possível sustentar a vida
moral”. Ao afirmar a urgência atual destas, “formas locais de comunidade dentro
das quais se possa sustentar a civilidade e a vida intelectual e moral durante
a nova Idade das Trevas que estamos vivendo” (p. 440-441), McIntyre evoca,
justamente, a figura histórica de Bento da Nursia, um dos protagonistas e
líderes deste movimento.
Retomemos também quanto visto em alguns posts publicados
recentemente neste blog, O santo cardeal J.H. Newman em sua busca pela verdade,
identificou no Cristianismo em sua originalidade, o centro da questão: o método
do caminho. E é isso que nós também precisamos fazer. Assim, como os
primeiros cristãos, precisamos buscar a união e colocar tudo em comum. E talvez
um dos pontos centrais do 'tudo em comum' de nossos tempos sejam nossas
decisões, nossas opiniões, nossos juízos sobre a realidade. A sabedoria, o uso
do juízo, do discernimento, é um grande patrimônio que a tradição
judaico-cristã trouxe ao mundo: a postura do jovem Salomão que pede a Deus não
as riquezas e o poder político mas antes de mais nada a sabedoria e o
discernimento (1 Rei, 3, 5-7; 12) e a quem Deus concede este bem sumo e todos
os demais, assinala um ideal de homem que construiu o Ocidente.
No mundo contemporâneo, alguns pensadores atentos à
realidade assinalam que ainda hoje este é o ponto determinante: dentre eles,
Hannah Arendt insiste na necessidade de que os homens retomem a capacidade de
julgar, de discernir entre o bem e o mal. A filósofa judia afirma que do
esmorecimento deste ato humano brotam a persistência da influência do
totalitarismo/autoritarismo na mentalidade contemporânea, a perda da capacidade
de pensar e julgar na vida quotidiana das pessoas, e finalmente a escolha
perversa para se livrar na obrigação da ação, a naturalização do mal. Este
esmorecimento deve-se à perda ou a falta de educação para um uso adequado da
razão dentro das práticas cotidianas e a consequente redução do horizonte do
desejo humano, manipulado e achatado aos produtos oferecidos pelo mercado e
pelas mídias. Somente na dimensão comunitária, o uso da razão pode acontecer de
modo a considerar todos os fatores da realidade.
Nessa perspectiva, a missão dos cristãos hoje é não deixar
que fique perdido este tempo de recolhimento forçado pela pandemia, onde os
problemas do Brasil emergiram com grande evidência provocando a uma reflexão e
tomada de posição. E isto significa
promover com o testemunho e os encontros um trabalho educativo pautado também
na longa tradição em que a igreja usou a razão para a consideração dos temas
sociais e políticos da vida humana naquele patrimônio chamado de Doutrina
social da Igreja e cujo compêndio está inteiramente disponível em versão
português no site: http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/justpeace/documents/rc_pc_justpeace_doc_20060526_compendio-dott-soc_po.html
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