sábado, 6 de junho de 2015

Demência e eutanásia: um mundo sem lugar para a pessoa frágil


O homem pós-moderno, considerando-se medida de todas as coisas, frente à impossibilidade de controlar e prever sua vida busca controlar e prever sua própria morte. Na Bélgica, desde 28 de maio de 2002, quando foi legalizada, já podem obter eutanásia crianças, mulheres, homens, anciãos, doentes terminais, pessoas com sofrimentos psíquicos e físicos, pessoas cansadas da vida. No dia 10 de abril deste ano, uma deputada propôs ao legislativo belga três novas indicações de ampliação da lei original. A primeira [1] tem como objetivo autorizar a eutanásia para pacientes que “são incapazes de expressar a própria vontade, ou porque em estado de inconsciência ou porque afetados por doença cerebral, dementes ou afetados por estado de inconsciência prolongada em razões de patologias irreversíveis”. A segunda [2] aumenta a validade das declarações antecipadas de tratamento. A terceira proposta [3] restringe as possibilidades da objeção de consciência: se o médico se recusar a aplicar o tratamento, deve de qualquer forma providenciar um substituto. 

Assim, o estado de demência é o foco desta nova proposta. O texto da proposta de emenda afirma que 
a demência é uma síndrome, ou seja, uma constelação de sintomas, incluindo, além de perda de memória, afasia (distúrbio de linguagem), apraxia (incapacidade de realizar atividades motoras), agnosia (problemas de reconhecimento ou identificação de objetos) ou distúrbios das funções executivas, tais como planejamento, organização, classificação e pensamento abstrato. Cada um desses distúrbios pode causar um prejuízo significativo no funcionamento social ou profissional. 
O texto recorre à Classificação Internacional das Doenças (CID) da Organização Mundial de Saúde, que define a demência como segue: 
A demência é uma síndrome devida à doença cerebral, usualmente crônica e progressiva, caracterizada pelo comprometimento de múltiplas funções corticais superiores, tais como a memória, o pensamento, a orientação, a compreensão, o cálculo, capacidade de aprendizagem, linguagem e julgamento. Deficiências da função cognitiva costumam acompanhar (e às vezes precedida) por uma deterioração do controle emocional, do comportamento social ou da motivação.
O texto da proposta sugere que existem hoje todo um conjunto de testes que permitem medir as capacidades cognitivas com objetividade e que um bom teste é “suficiente para distinguir entre o envelhecimento patológico em pacientes com demência e envelhecimento normal” e que ao mesmo tempo “uma boa avaliação clínica” seja apta “para diagnosticar a ‘insanidade’ com um grau razoável de certeza”. Devido ao fato da evolução da demência ser progressiva e que, numa certa fase da evolução da doença, a faculdade de decisão do doente ser afetada, o texto recomenda que “a decisão [quanto à eutanasia] seja discutida e tomada pelo paciente num estado precoce da doença, ou até antes de seu aparecer”. De modo que, juntamente com o médico da sua escolha, o paciente indique em um comunicado, antecipadamente, o estágio de estado físico ou mental indesejável. O projeto de lei refere estados indesejáveis de avanço da doença nos quais seria recomendável praticar a eutanásia: “a fase de movimento repetitivo”, quando o paciente tiver dificuldades para se locomover “torna-se dependente de uma cadeira de rodas”, e “não tem consciência de sua incontinência”. Ou, então, quando “os pacientes não reconhecem mais os seus amigos, sua família ou cuidadores”, ou “mergulham em um estado vegetativo, tornando-se acamados”.
A pretensão de prever e controlar a morte oculta sua arbitrariedade ao se atestar através da máscara de ideologias científicas, ou seja ideias pseudocientíficas voltadas a justificar usos e abusos do poder, na expressão de Canguilhem (1977) em “O que é uma ideologia científica?” [4]. Em primeiro lugar, na Psicologia e na Neuropsiquiatria não há um consenso acerca das capacidades de os testes psicológicos detectarem todas as dimensões do dinamismo psíquico humano; e portanto de servirem como instrumentos exclusivos e totalmente objetivos de diagnóstico de patologias [5]. Em segundo lugar, a presumida certeza científica acerca da demência e de suas fases, não corresponde à realidade do conhecimento das neurociências que, embora tendo feito avanços enormes, justamente por meio desses avanços tem evidenciado quão pouco se conhece do cérebro humano e de sua plasticidade à luz da relação com o ambiente. A descoberta da epigenética e da neurogênese, em diferentes fases da vida, lança um forte questionamento sobre essa ideologia pretensamente científica. 
O aumento da demência que é o “envelhecimento” do cérebro com perda neuronal, é uma das consequências da longevidade da população mundial: o “envelhecimento” do cérebro com perda neuronal. De modo geral, se reconhece que as causas da demência são múltiplas e, em algumas situações, há possibilidades de reversão, ou desaceleração pelo tratamento do quadro clínico. Há grande variação no prognóstico associada a quadros de depressão não tratada, condição de solidão e abandono familiar etc. De toda forma, se trata de um processo acerca do qual não se podem pronunciar sentenças definitivas. Mesmo na psicopatologia, a definição da demência e o conhecimento de sua evolução não são claros. O psiquiatra italiano Borgna escreve que a definição de demência não está claramente estabelecida na psicopatologia, e que a tese da irreversibilidade desta doença é dogmática e não corresponde à prática clínica [6]. A possibilidade de reversão dessa demência, segundo Borgna, é ligada ao contexto humano marcado por encontros humanamente ricos e por situações que gerem esperança e possibilidade de mudança da condição de vida. 
É difícil não ver na perspectiva da lei belga um contexto em que a pessoa é considerada descartável na medida em que não é mais funcional social e profissionalmente. Em um país e continente em que o número de nascimentos tem decrescido vertiginosamente, parece mais fácil condenar à morte aquele que não lhe serve do que se curar de sua própria patologia: a falta de sentido da vida, a solidão, a insensibilidade diante de si mesmo e do outro. No seu último livro [7], Borgna assinala que a fragilidade da doença, velhice, loucura e demência, traz consigo não apenas dor e solidão, mas é também uma abertura misteriosa ao sentido último de tudo que é preciso aprender a reconhecer. Essa abertura, quando penetrada, traz o gosto de viver e a razão de a vida valer a pena, caso contrário, tudo pode ser uma questão simplesmente de medição do tempo de uma condição absurda e nauseante.
O desejo individual de eliminar a dor e o desconforto, a necessidade social (real ou construída ideologicamente) de cortar custos e uma cultura individualista, incapaz de recuperar o sentido da relação com o outro, vão construindo um mundo onde cada vez mais é necessário eliminar tanto o outro ser humano quanto partes da nossa própria humanidade. 

Notas:
[1] Cf. CHAMBRE DES REPRÉSENTANTS DE BELGIQUE. Proposition de loi modifiant la loi du 28 mai 2002 relative à l'euthanasie en ce qui concerne les personnes atteintes d'une affection cérébrale et devenues incapables d'exprimer leur volonté (déposée par Mme Karin Jiroflée et consorts). 10 avril 2015. Disponível em: <https:// www.dekamer.be/ flwb/ pdf/ 54/ 1013/ 54K1013001.pdf>. Acesso em 05 jun. 2015.
[2] Cf. CHAMBRE DES REPRÉSENTANTS DE BELGIQUE. Proposition de loi modifiant la loi du 28 mai 2002 relative à l'euthanasie en ce qui concerne la durée de validité de la déclaration anticipée (déposée par Mme Karin Jiroflée et consorts). 10 avril 2015. Disponível em: <https:// www.dekamer.be/ flwb/ pdf/ 54/ 1014/ 54K1014001.pdf>. Acesso em 05 jun. 2015.
[3] Cf. CHAMBRE DES REPRÉSENTANTS DE BELGIQUE. Proposition de loi portant modification de la loi du 28 mai 2002 relative à l'euthanasie en ce qui concerne l'obligation de renvoi (déposée par Mme Karin Jiroflée et consorts). 10 avril 2015. Disponível em: <https:// www.dekamer.be/ flwb/ pdf/ 54/ 1015/ 54K1015001.pdf>. Acesso em 05 jun. 2015.
[4] CANGUILHEM, George. Ideologia e racionalidade nas ciências da vida. Lisboa: Editora 70, 1977.
[5] DAMASCENO Benito Pereira. Envelhecimento cerebral: o problema dos limites entre o normal e o patológico. Arquivos de Neuro-psiquiatria, v. 57, n. 1, pp. 78-83, 1999. Disponível em: <http:// www.scielo.br/ readcube/ epdf.php? doi = 10.1590/ S0004 - 282X1999000100015&pid = S0004 - 282X1999000100015&pdf_path = anp/ v57n1/ 1541.pdf>. Acesso em 05 jun. 2015.
[6] BORGNA, Eugenio. Nei luoghi perduti della follia. Milano: Feltrinelli, 2008.
[7] BORGNA, Eugenio. La fragilità che è in noi. Milano: Feltrinelli, 2014.

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