quinta-feira, 24 de março de 2016

A festa da fé

Nesta Semana Santa, às vésperas da Paixão de Nosso Senhor, propomos um comentário de Luigi Giussani à peça de Antonín Dvorák, Stabat Mater. "'Fac ut ardeat cor meum in amando Christum Deum ut sibi complaceam' (...) Aquilo que faz o coração vibrar é o olhar de Cristo. Por isso, pedimos a Sua força. Faze que eu possa Te amar, aderir à Tua presença, dizer “sim”, obedecer-Te. Faze que o meu coração arda no amor a Ti."


Por Luigi Giussani

Em Nossa Senhora a adoração do nosso coração encontra o seu exemplo e a sua forma [1]. Com que intensidade nós a surpreendemos olhando Jesus, desde quando, pequeno, caminhava as primeiras vezes, até quando morreu, até quando parou de caminhar sobre esta terra depois de ressuscitado! Imaginemos o olhar com que Maria o fixava: que intensidade sem fim, sem limite, que consciência sem limite! E não compreendia ainda, salvo as misteriosas palavras ouvidas do Anjo: “Ele se chamará Emanuel”; Ele, de fato, salvará o seu povo, salvará cada um de nós.
Todo esse entrelaçamento de sentimentos, como aqueles que enchiam o coração de Maria, devemos suscitar, cultivar, renovar, ouvindo a música de Dvorák, o grande músico boêmio. Morreram-lhe dois filhos a uma brevíssima distância de tempo um do outro. Foi então que se despertou o coração de Dvorák, e ele compôs o Stabat Mater, uma obra admirável.
É necessário seguir a peça em uma modalidade particular e bem conhecida pelos grandes artistas: a modalidade do repetir continuamente. Quando uma fórmula vocal, sonora, consegue ser ousada e bela, audaciosamente bem resolvida, expressiva, então se continua a repeti-la e o fenômeno se inflama onde a palavra se torna mais profunda, onde a experiência se torna mais humana. Assim, repetimos também nós. Bastaria isso para nos dar uma regra para ouvir este longo trecho musical: seguir as suas repetições. “Stabat mater dolorosa, Stabat mater dolorosa, Stabat mater dolorosa...”.
Aqui me interessa somente fazer notar, na diversidade das sugestões do tema gravemente triste do início, a passagem na qual a tensão se exalta até as palavras “Mater” e “Filius” e, onde se torna emoção coletiva, arrasta-se toda a comunidade, todo o povo a gritar: “Possa eu sentir como tu, Mãe! Faze-me sentir como tu, ó Mãe!”. “Fac ut ardeat cor meum in amando Christum Deum ut sibi complaceam” (Faze que o meu coração arda de amor por Cristo Deus para que eu possa agradar-lhe): faze que tudo arda em mim! Tudo, tudo até o último fio de cabelo. Faze que tudo arda em mim, indigno e, no entanto, feito para cantar: “Adoro-te, Redentor”. Que liberdade, que ardor de reconhecimento!
“Faze que o meu coração perceba essa força misteriosa e real pela qual tudo vibra, pela qual tudo renasce, que o meu coração perceba o Mistério que dá a vida e que me chamou, Presença humana que me envolveu e se envolve comigo.” É-nos pedido para olhar, para que no olhar aquilo que ainda é distraído, inquieto, encontre a sua paz, a sua força de desenvolvimento como consciência e iniciativa. Aquilo que faz o coração vibrar é o olhar de Cristo. Por isso, pedimos a Sua força. Faze que eu possa Te amar, aderir à Tua presença, dizer “sim”, obedecer-Te. Faze que o meu coração arda no amor a Ti. O primeiro lugar no qual o amor ao Mistério floresceu como sim àquela Presença humana foi aquela jovem mulher, Maria de Nazaré.
Fac ut ardeat cor meum”: que toda a minha vida se inflame. “Cor meum”, a raiz da vida, aquilo com o qual se confronta cada coisa a fim de que o juízo seja verdadeiro, no amor a Cristo. Como ri o mundo diante dessa possibilidade! Que isso seja real, não espiritualista, mas real, o fato que um homem – Pedro –, pater familias, com mulher e filhos, venha a dizer a um homem mais jovem – Jesus de Nazaré – que lhe está deitado próximo, na margem do lago: “Sim, Senhor, eu te amo”. Mas como era possível, se Pedro o havia traído, e o trairia de novo, todo dia errava e erraria novamente? Como podia dizer: “Sim, eu te amo”? “Não sei, não sei como, mas eu te amo mais do que qualquer outra coisa, porque Tu és o abraço de todo vivente, de tudo o que existe. Tu és o abraço a mim.” Para mim, para mim, para mim!
Fac ut ardeat cor meum in amando Christum Deum ut sibi complaceam.” Eis a grande lei moral. Aqui nasce a verdadeira lei moral que é a origem da moralidade: agradar ao Mistério, agradar àquele homem crucificado, agradar ao mistério de Deus que se fez homem, foi crucificado por mim e ressuscitou para que eu fosse libertado.
Uma reflexão emocionada é provocada a cada nota do Stabat Mater. Através da liberdade e da cruz, nós nos damos conta que também aquilo que sofremos torna-se redentor, força redentora, como foi para o grande compositor boêmio, que pôde compor este fantástico afresco, grandioso, depois da morte dos filhos, e como foi para Nossa Senhora.
Fac ut ardeat cor meum” é um repetir-se quase monótono, mas depois se torna a coisa mais impressionante da música de Dvorák: “Fac ut ardeat cor meum”, faze que arda toda a minha existência, a minha totalidade. Não se pode evitar essa totalidade: onde quer que estejamos, dentro daquele abraço, não podemos nem mesmo pregar um botão sem dizer: “Ofereço-Te”. “In amando Christum Deum ut sib complaceam”: para que o êxito do meu tempo, das minhas energias, do meu respirar, do meu estar aqui, do meu existir, seja glória a Ele. Por isso o Stabat Mater se conclui com aquele grito que faz da fé uma festa: “Quando corpus morietur, fac ut animae donetur Paradisi gloria!” (Quando nossa carne morrer, seja doada à alma a glória do Paraíso).
Esta obra prima de Dvorák não é a comemoração infeliz de uma morte, mas é a festa que celebra a glória de Cristo na história – porque Ele ressuscitou corporalmente –, como São Paulo presume e prevê quando fala de “Cristo tudo em todos”, indicando com isso a grande lei da história, do tempo e do espaço, não só da eternidade. Na eternidade, de fato, Deus obtém aquilo que quer, necessariamente, porque a eternidade é feita somente da Sua vontade. Mas que Cristo seja tudo em todos é termo de uma invocação, porque nós não somos capazes de corresponder a isso com a nossa vontade; é termo de um pedido, de um propósito que, se não é pedido ele mesmo, é uma ilusão, porque nós não temos força!
Fac ut ardeat cor meum in amando Christum Deum ut sibi complaceam.” É preciso admitir que essa é a única afirmação possível para um caminho eterno, como é o desejo e a aspiração do homem; uma descoberta do eterno adequada ao homem e fácil, fácil para o homem. E, ao mesmo tempo, também terrível para o homem, porque ali se joga toda a sua liberdade. Jesus é o único que leva o homem a arriscar toda a sua liberdade.

Notas:
[1] CHIERICI, Sandro; GIAMPAOLO, Silvia (orgs.). Spirto gentil: um invito all’ascolto dela grande musica guidati da Luigi Giussani. Milano: BUR Rizzoli, 2011, pp. 288-291. Traduzido, sem revisão dos autores, por Fábio Henrique Viana.

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