Refletindo sobre o momento atual brasileiro – de crise moral e política – e sobre o tempo de espera inaugurado com o início do Advento, propomos mais um texto da coleção Spirto Gentil, no qual Luigi Giussani nos lembra que “um povo nasce como companhia de homens que se põem juntos à procura do seu destino. E será a visão de um bem comum não genericamente entendido a manter um povo unido: aquilo que dá personalidade a um povo é um ideal, um bem comum como ideal, para além de todos os interesses possíveis e as necessidades a satisfazer”. Para falar dos Cantos Populares Russos, o autor ressalta ainda como eles buscam exprimir “o homem chamado à fé, mesmo que não o saiba”.
Por Luigi Giussani
O aspecto mais significativo para mim dos cantos populares russos é que eles nunca são o produto de um fenômeno individualista, mas fazem sempre referência a um acontecimento que tem como sujeito a pessoa como parte de um povo [1]. Aqui está, de fato, a diferença profunda entre indivíduo e pessoa: a pessoa é um indivíduo na medida em que pertence a um povo, isto é, a um pedaço de história paradigmático, no qual todo o fenômeno da história se realiza em um segmento circunstanciado de tempo e de espaço. Um povo nasce como companhia de homens que se põem juntos à procura do seu destino. E será a visão de um bem comum não genericamente entendido a manter um povo unido: aquilo que dá personalidade a um povo é um ideal, um bem comum como ideal, para além de todos os interesses possíveis e as necessidades a satisfazer.
Por isso, a cultura encarna e exprime o gênio de um povo, quer se trate de lavar os pratos ou de educar os filhos – como é para uma mãe – ou de escrever um poema – como é para o grande escritor: o gênio é uma consciência que junta todos e coloca todos em movimento segundo uma certa percepção ideal. São Paulo já o recordava no Areópago de Atenas – a Sorbonne de então: o movimento de todos os povos é por uma busca de Deus, quase tateando. Esta é uma esplêndida categoria de filosofia da história ou de teologia da história: o movimento de todos os povos é definido pela busca do significado exaustivo da sua existência coletiva em caminho.
Justamente pela vastidão do espírito russo, a dimensão da epopeia como caminho ao Destino emerge de maneira mais imponente que nas formulações artísticas dos outros povos. Benedetto Croce dizia que, quando uma expressão artística do homem tem um nexo com uma intuição lírica em um plano total (que é um outro modo para definir a experiência humana contingente tendida ao infinito, portanto tendida ao Destino), compreender tal nexo com uma certa atenção gera sempre uma pureza. Mas, para que esse pressentimento de pureza – confuso o quanto quiser, mas seja como for pressentimento ideal – seja realmente útil, isto é, chegue a ferir, é necessário que o homem esteja pronto para o sacrifício. Sem esse ímpeto que dispõe ao sacrifício, portanto à mudança de algo de si, à ruptura de um modo de possuir, aquela abertura ética, que cada sentimento de beleza induz, bloqueia-se e permanece somente, no melhor dos casos, uma vibração estetizante. A verdadeira emoção estética nunca pode existir sem a sugestão de uma pureza, como a introdução de um eco do Destino no próprio gesto humano.
Nas peças musicais da milenar tradição oriental o povo é o sujeito de tudo, o verdadeiro protagonista: ouvindo-os, torna-se evidente a tendência a fazer uma voz cantar sozinha, mas sempre dentro de um coro. Não há, de fato, nenhum canto solo que não reivindique o povo: assim acontece que, quando o solista canta, ouve-se o povo, e, no entanto, é uma pessoa que se exprime. Enquanto o acento do canto ocidental é colocado na pessoa, o do canto oriental é todo centrado no povo: o cantor solista está sempre em função do coro, aquilo que é característica própria da pedagogia cristã mais autêntica, pela qual todas as contribuições da pessoa estão em função do povo.
Descobri tudo isso, com comoção, ouvindo os cantos populares russos, aqueles corais – fascinantes pelos baixos, cujas vozes são famosas em todo o mundo – ou os solos. Uns e outros possuem títulos banalíssimos, como, por exemplo, estes: Próximo ao velho choupo, À velha pereira. Imaginemos a isbá com a família, a pequena aldeia, a casinha próxima a uma planta: o hino à planta, àquela planta, recupera toda a memória da vida, a própria história, os próprios pais, os próprios avós.
O canto popular russo está entre as expressões mais altas da religiosidade e o testemunho mais verdadeiro da vida do povo: experiência de uma humanidade encarnada e, ao mesmo tempo, nostalgia de algo que existe, mesmo que não se consiga imaginá-lo. A alma russa vive segundo esse modelo característico de melancolia forte e dramática – clamorosamente expressa ou apenas acenada como um pano de fundo – que se faz pressentir sem ser totalmente clara. O canto é tristíssimo, mas intenso, pacato, mas sem hesitação, uma vez que é ditado pela potência do coração que se demonstra como exigência de satisfação, como exigência ardente da felicidade que virá e que ainda não veio. Não é assim o canto cristão: este dá voz à aurora de uma resposta presente e por isso vibra de uma serenidade e uma síntese de sentimentos muito maiores. O canto popular russo exprime o homem chamado à fé, mesmo que não o saiba: pode-se, por isso, dizer que se trata da única verdadeira música completamente “pré-cristã”?
Notas:
[1] CHIERICI, Sandro; GIAMPAOLO, Silvia (orgs.). Spirto gentil: um invito all’ascolto dela grande musica guidati da Luigi Giussani. Milão: BUR Rizzoli, 2011, p.547-549. Traduzido sem revisão dos autores por Fábio Henrique Viana.
Nas peças musicais da milenar tradição oriental o povo é o sujeito de tudo, o verdadeiro protagonista: ouvindo-os, torna-se evidente a tendência a fazer uma voz cantar sozinha, mas sempre dentro de um coro. Não há, de fato, nenhum canto solo que não reivindique o povo: assim acontece que, quando o solista canta, ouve-se o povo, e, no entanto, é uma pessoa que se exprime. Enquanto o acento do canto ocidental é colocado na pessoa, o do canto oriental é todo centrado no povo: o cantor solista está sempre em função do coro, aquilo que é característica própria da pedagogia cristã mais autêntica, pela qual todas as contribuições da pessoa estão em função do povo.
Descobri tudo isso, com comoção, ouvindo os cantos populares russos, aqueles corais – fascinantes pelos baixos, cujas vozes são famosas em todo o mundo – ou os solos. Uns e outros possuem títulos banalíssimos, como, por exemplo, estes: Próximo ao velho choupo, À velha pereira. Imaginemos a isbá com a família, a pequena aldeia, a casinha próxima a uma planta: o hino à planta, àquela planta, recupera toda a memória da vida, a própria história, os próprios pais, os próprios avós.
O canto popular russo está entre as expressões mais altas da religiosidade e o testemunho mais verdadeiro da vida do povo: experiência de uma humanidade encarnada e, ao mesmo tempo, nostalgia de algo que existe, mesmo que não se consiga imaginá-lo. A alma russa vive segundo esse modelo característico de melancolia forte e dramática – clamorosamente expressa ou apenas acenada como um pano de fundo – que se faz pressentir sem ser totalmente clara. O canto é tristíssimo, mas intenso, pacato, mas sem hesitação, uma vez que é ditado pela potência do coração que se demonstra como exigência de satisfação, como exigência ardente da felicidade que virá e que ainda não veio. Não é assim o canto cristão: este dá voz à aurora de uma resposta presente e por isso vibra de uma serenidade e uma síntese de sentimentos muito maiores. O canto popular russo exprime o homem chamado à fé, mesmo que não o saiba: pode-se, por isso, dizer que se trata da única verdadeira música completamente “pré-cristã”?
Notas:
[1] CHIERICI, Sandro; GIAMPAOLO, Silvia (orgs.). Spirto gentil: um invito all’ascolto dela grande musica guidati da Luigi Giussani. Milão: BUR Rizzoli, 2011, p.547-549. Traduzido sem revisão dos autores por Fábio Henrique Viana.
Nenhum comentário:
Postar um comentário