Fernando Gabeira, em artigo no Estado de São Paulo do dia 04 da novembro de 2018, cita uma discussão proposta no livro The Once And Future Liberal After Identity Politics (2016) de Mark Lilla: segundo Gabeira, "Lilla considera um erro a fixação nas lutas identitárias porque elas afastam um pouco as pessoas dos temas mais amplos, que envolvem o bem comum. As pessoas mergulhadas nessas lutas têm tendência menor a defender temas nacionais, sair para uma conversa nas ruas sobre o que ele chama o bem comum". Gabeira afirma ser este um fator de grande peso no que diz respeito a ultima eleição brasileira: "também na minha crítica ressaltava a ausência da ênfase no bem comum, só que nos meus textos não usava essa expressão, mas a adesão a um projeto nacional". E afirma a necessidade de "um tempo de reflexão, estudos e debates".
De onde vem a categoria de bem comum a que Gabeira se refere? Dedicamos outros posts neste blog ao tema do bem comum, categoria própria da Doutrina Social da Igreja cuja raiz remonta, porém, a um passado longínquo: a visão política da polis grega e da res publica romana; e a visão tomista. Todavia, nunca, ao longo da história, a focalização nesse tema foi algo obvio, pois sempre se chocou com interesses particulares e contrários. Na história do Brasil, isto é patente.
Vejamos como a questão já aparece num sermão de Padre Antônio Vieira: "Perde-se o Brasil, Senhor (digamo-lo em uma palavra) porque alguns ministros de Sua Majestade não vêm cá buscar nosso bem, vêm buscar nossos bens". As palavras de P.e Antonio Vieira pregadas em Salvador, em 1641, diante do Vice-Rei, Marques de Montalvão, possuem uma impressionante atualidade. Na continuidade do discurso, Vieira define a origem do mal que assombra o Brasil, a atitude de "tomar o alheio". O alheio é o bem comum que não pode ser instrumentalizado em benefício de um único indivíduo. E usa a tradicional analogia da medicina do corpo para definir este mal como uma doença que acomete o coração da república e cria aquela desordem do corpo social e político que, por um lado, leva à impunidade (faltando a justiça punitiva) e, por outro, à injustiça (faltando a justiça distributiva).
El-rei manda-os tomar Pernambuco e eles contentam-se com o tomar. Este tomar o alheio é a origem da doença. Toma nesta terra o ministro da justiça? Sim, toma. Toma o ministro da república? Sim, toma. Toma o ministro da fazenda? Sim toma. Toma o ministro do Estado? Sim, toma. E como tantos sintomas lhe sobrevém ao pobre enfermo, e todos acometem à cabeça e ao coração, que são as partes mais vitais, e todos os atrativos e contrativos do dinheiro, que é o nervo dos exércitos e das repúblicas, fica tomado todo o corpo, e tolhido de pés e mãos, sem haver mão esquerda que castigue, nem mão direita que premeie; e faltando a justiça punitiva para expelir os humores nocivos, e a distributiva para alentar e alimentar o sujeito, sangrando-o por outra parte os tributos em todas as veias, milagre é que não tenha expirado.
Aqui está um diagnóstico que evidencia como os males atuais do Brasil remetem a uma raiz longínqua em que as relações de poder e os vínculos sociais e econômicos entre os homens se configuraram numa forma "doentia". Vieira retrata o estabelecer-se de uma relação predatória entre os homens, e entre os homens e as coisas, relação que se limita a "tomar o alheio" fora de qualquer vivência de interação, interesse, conhecimento, afeição, em síntese sem labor, sem trabalho, sem ação verdadeiramente humana. Diante desta alteridade (significada pelo "alheio"), "eles contentam-se com o tomar". E, com efeito, isto se fazia particularmente evidente num sistema econômico inteiramente baseado na mão de obra escrava.
Por isto, fica clara a necessidade de uma educação, através de "reflexão, estudos e debates" conforme Gabeira e através da proposição de experiências que já atuam na sociedade brasileira ou no mundo, com foco neste objetivo. Na atual conjuntura, trata-se de uma tarefa urgente para o País. O Núcleo Cultural Lux Mundi se propõe a atuar nesta perspectiva.
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