sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Como um raio de sol no céu nublado



Ludwig van Beethoven
Sinfonias n.5 e n.6


Como um raio de sol no céu nublado[1]

Luigi Giussani


A Quinta Sinfonia de Beethoven é a peça musical que, desde os primeiros anos da nossa experiência educativa, nos ajudou a pensar.

Cronologicamente, foi esta obra de Beethoven que coloquei para os primeiros estudantes ouvirem, os primeiros dez ou quinze que se encontravam comigo.  E o fiz para estimular neles aquela dimensão ideal e arriscada da vida, sem a qual não se faz nada, se é como todos os outros, nos entediamos como todos os outros: não é à toa que é chamada “a sinfonia do destino”. Ouvíamos, principalmente, o primeiro movimento da sinfonia, aquele do “destino que bate à porta”. O início é o irromper de um acontecimento. Todo o drama da orquestra se desenvolve a partir do acontecimento daquelas quatro notas iniciais que se repropõem continuamente. Nelas se exprime aquele destino que atravessa, na vida, a percepção da perda, da derrota ou da tristeza e se mostra, às vezes, no seu aspecto mais duro de provação ou de tentação.

A tentação é uma tempestade, como aquela descrita de modo admirável no quarto movimento da Sexta Sinfonia, para mim a mais bem sucedida de Beethoven. Aquele movimento prenuncia, antecipa e descreve a tempestade que ocorre e que passa. Passa e tudo termina na doçura das coisas que são feitas.

Diante da realidade, todavia, exite somente um modo de se comportar de modo que as coisas se tornem objeto, ou melhor, sujeito, causa daquela ternura pela qual o homem é feito: as provações que devemos enfrentar revelam, atestam a vontade educadora, pedagógica com a qual Jesus renova a expansão, a explosão, a proposição da sua grandeza. E, de fato, a devoção suscita estupor, isto é, adoração, e esta é a grande fonte da oração.

Se a verdade se comunica a você incluindo as tempestades, para superar a tempestade, você deve ser fiel àquilo a que você pertence, a que você já pertence porque você o reconheceu como verdadeiro. Agora você não o reconheceria como verdadeiro somente porque o céu está escuro para você, mas – se você é fiel – lhe acontecerá, ainda mais facilmente, de ser espectador de uma coisa grandiosa: da verdade misteriosa e eterna que lhe chega como a luz do amanhecer ou como um raio de sol no céu nublado.



[1] CHIERICI, Sandro; GIAMPAOLO, Silvia (orgs.). Spirto gentil: um invito all’ascolto dela grande musica guidati da Luigi Giussani. Milão: BUR Rizzoli, 2011, p.105 e 106.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

PRINCIPAIS EMPREENDEDORES SOCIAIS LANÇAM MOVIMENTO GLOBAL: CATALYST 2030 PARA ALCANÇAR OS ODS


                                                                                                 






LONDRES, fevereiro de 2020: Os principais empreendedores sociais e inovadores sociais de todo o mundo se reuniram esta semana para identificar um caminho coletivo para acelerar os resultados dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). O movimento
Catalyst 2030,
lançado no Fórum Econômico Mundial em Davos, em janeiro, busca abordagens ousadas e inovadoras para cumprir o prazo de 2030 para os ODS.  
Relatórios indicam que, no ritmo atual de execução, os ODS terão seu prazo de cumprimento adiado de 2030 para 2094, atrasando a meta em 64 anos e confirmando um mundo desastroso para 1 bilhão de habitantes ao redor do mundo que são categorizados como extremamente pobres. O momento não poderia ser mais urgente. Temos um horizonte de tempo limitado e crucial para agir de forma rápida, decisiva e coletiva.
Catalyst 2030 é um movimento colaborativo dos principais empreendedores sociais (ES) juntamente com financiadores e intermediários de todo o mundo. Mais de 130 ES representando Ashoka, Echoing Green, Schwab Foundation for Social Entrepreneurship, the Skoll Foundation e outras das mais prestigiadas redes globais de empreendedores sociais uniram forças para construir um amplo movimento para mudar sistemas que sustentam a pobreza e a destruição do meio ambiente. Estima-se que esse grupo atenda 800 milhões de pessoas globalmente.
Jeroo Billimoria, porta-voz e cofundadora do Catalyst 2030, comenta: "Somos um grupo de empreendedores sociais de vanguarda que humildemente se reúnem e se comprometem a dar um salto nas ações para alcançar os ODS até o prazo final de 2030." O objetivo do Catalyst 2030 é causar um impacto significativo na crise climática, na redução da pobreza e deixar um legado duradouro e positivo na vida de milhões de pessoas por meio de mudanças de sistemas e financiamentos.
Aproveitando-se de sua capacidade de trabalhar com as camadas mais pobres e marginalizadas da sociedade em conservação com a natureza, o movimento Catalyst 2030 busca compartilhar as melhores práticas de vários setores e países, co-criar o roteiro estratégico para a transformação, identificando áreas de trabalho colaborativas e desafiando as atuais abordagens e financiamento institucional.
"Para acelerarmos realisticamente nossos esforços, precisamos ouvir e ser liderados por pessoas que entendem como as mudanças climáticas e a desigualdade afetam diretamente as pessoas e demonstraram que existem alternativas à nossa economia extrativa e desigual", disse o Dr. François Bonnici, Chefe da Fundação Schwab para Empreendedorismo Social. "O Catalyst 2030 nos apresenta essa oportunidade."

Cheryl Dorsey, Presidente da Echoing Green, acrescentou: “Para realmente alavancar o potencial das comunidades para alcançar os ODSs de maneira rápida e sustentável, são necessárias ações coletivas baseadas em humildade, confiança, dinâmica de poder equilibrada e resultar em impacto. Os membros do Catalyst 2030 procuram se unir e trabalhar de uma nova maneira para alcançar mudanças positivas e duradouras.”
Mais de 80 co-fundadores se reuniram na semana passada no Althorp Estate em Northampton, Reino Unido, para criar um roteiro coletivo para os próximos anos.
                                                                                #  #  #

Contato: info@Catalyst2030.net

Contatos no Brasil:
Vaney Fornazieri vaneypfornazieri@gmail.com
Gisela Solymos gisela@cren.org.br

Contatos no Mundo:

Jeroo Billamoria     jeroo@onefamilyfoundation.one  (Inglês, Holandês e Hindi)
Shelly Batra shelly.batra@opasha.org  (Inglês, Hindi)
Meenakshi Gupta meenaskhi@goonj.org  (Inglês, Hindi)
Katherine Lucey katherine@solarsister.org  (Inglês)
Colin McElwee colin@worldreader.org  (inglês e espanhol)
Kristine Pearson kpearson@lifelineenergy.org  (Inglês)
Therese von Blixen-Finecke therese.engstrom@sime.nu (inglês, sueco, francês, norueguês)

Notas relacionadas:





segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

A epidemia de coronavirus é também efeito da falta da liberdade de expressão


No dia 6 de fevereiro faleceu o médico Li Wenlialg, o primeiro que denunciou o aparecimento do coronavirus que ele mesmo contraiu atendendo aos pacientes. Marido e pai de um filho de 5 anos e de um que está para nascer, o oftalmologista foi pioneiro em detectar o aparecimento da doença na cidade de Wuhan. Mas foi calado imediatamente pelas autoridades políticas e ameaçado de prisão: na cidade estava ocorrendo o congresso regional do Partido Comunista e a noticia ‘atrapalharia’ o evento. Essa ação repressiva gerou a rápida difusão do vírus na China e no mundo.
O modo como a China tratou a epidemia de coronavirus nos lembra que o ser humano é sempre frágil, mesmo quando é cidadão de uma das maiores potencias do mundo. Mas alerta também sobre as graves consequências da falta da liberdade de expressão e do domínio do estado totalitário que inibe a liberdade de expressão e de ação das pessoas.  
Acadêmicos chineses denunciam o fato neste documento que aqui repassamos.

O direito à liberdade de expressão começa hoje - uma carta aberta ao Congresso Nacional do Povo e ao Comitê Permanente do NPC*

Em 6 de fevereiro de 2020, o Dr. Li Wenliang (李文亮), o médico que denunciou a existência do de 2019-nConV, morreu no meio da epidemia em Wuhan. Ele também foi vítima da supressão de palavra. O povo da China está com o coração partido e profundamente triste.

O fato de que o coronavírus se difundiu em Wuhan e em toda a China é o resultado do autoritarismo que suprime a fala e a verdade. Milhões e milhões de chineses estão fechados e cheios de medo sob um estado de prisão domiciliar de fato, durante o período do ano que deveria ser o mais festivo. A sociedade em geral e a economia ficaram paralisadas. Até o momento, pelo menos 637 de nossos compatriotas perderam a vida e milhões estão sendo discriminados e expulsos, na cidade de Wuhan e na província de Hubei, sem ter para onde ir no frio e sem conseguir encontrar ajuda.

No início dessa tragédia, em princípio de janeiro, o Dr. Li Wenliang e sete outros profissionais médicos foram repreendidos pela polícia e sua dignidade como médicos foi pisoteada pela supressão da liberdade de expressão. Durante trinta anos, os chineses foram obrigados a renunciar à sua liberdade em troca de segurança, e agora são vítimas de uma crise de saúde pública e estão menos seguros do que nunca. Um desastre humanitário está sobre nós. A velocidade com que o resto do mundo está saindo da China é mais rápida que a disseminação do vírus, deixando a China em um isolamento global sem precedentes.

Tudo isto é o preço de abrir mão da liberdade e suprimir a livre expressão. O modelo da China está se tornando espuma. Ainda assim, as autoridades estão mais empenhadas em fechar a boca das pessoas do que em impedir uma epidemia. O Supremo Tribunal Popular e os órgãos administrativos implementaram o estado de emergência de forma ilegal e sem fazer anúncios públicos. Eles usaram o controle da doença como pretexto para privar ilegalmente os cidadãos de seus direitos constitucionais, incluindo o direito à liberdade de expressão, o direito à liberdade de movimento e o direito à propriedade privada.

É hora de terminar tudo isto. Onde não há liberdade de expressão, não há segurança. Em nome dos cidadãos, fazemos cinco exigências, como segue:

1. Exigimos que se institua o dia 6 de fevereiro como o “Dia Nacional da Liberdade de Expressão” (Dia Li Wenliang).

2. Exigimos que, a partir de hoje, o NPC implemente o direito à liberdade de expressão garantido pelo Artigo 35 da Constituição.

3. Afirmamos, a partir de hoje, que nenhum cidadão chinês deve ser ameaçado por qualquer aparato estatal ou grupo político por seu discurso e que nenhuma força política ou aparato estatal deve prejudicar a liberdade dos cidadãos de se reunir e se comunicar. O estado deve parar imediatamente de censurar as mídias sociais e de excluir ou bloquear contas.

4. Esperamos que os cidadãos da província de Wuhan e Hubei sejam tratados da mesma forma e que todos os pacientes do 2019-nConV em todo o país recebam atendimento médico oportuno, adequado e eficaz.

5. Convidamos o NPC a convocar imediatamente uma reunião de emergência para evitar que as reuniões programadas neste ano sejam canceladas ilegalmente por qualquer força política. Também deve-se discutir a questão de como começar imediatamente a proteger a liberdade de expressão dos cidadãos. A partir da liberdade de expressão, a partir de hoje, implementem a Constituição!

Convidamos qualquer pessoa a assinar esta carta, que será atualizada continuamente e aberta permanentemente.

Renmin University alumni: Lu Nan (鲁难), Wu Xiaojun (吴小), Qin Wei (秦渭), Tian Zhongxun (田仲)
Peking University law professor Zhang Qianfan (张千帆)  
Qinghua University law professor Xu Zhangrun (许章润)
Independent scholars Xiao Shu (笑蜀) and Guo Feixiong (飞雄)
The China University of Geosciences alumnae Wang Xichuan (王西川)

Publicado em : chinachange.org/2020/02/07/the-right-to-freedom-of-speech-starts-today-an-open-letter-to-the-national-peoples-congress-and-the-npc-standing-committee/


National Peoples's Congress

sábado, 8 de fevereiro de 2020

O PODER DOS SEM PODER: O CAMINHO PARA O AMADURECIMENTO DA DEMOCRACIA BRASILEIRA


Já tivemos oportunidade de apresentar no texto anterior trechos do livro O Poder dos Sem Poder do grande político e escritor checo Václav Havel.
Em sua visão sobre o que é uma democracia real, Havel destaca alguns pontos essenciais para o amadurecimento da nossa democracia brasileira:

O poder servirá aos cidadãos garantindo-lhes liberdade para construir a própria nação na medida que ajudar a preservar a memória da própria história. No seu primeiro discurso como Presidente Havel cita a frase de Primo Levi: “Todos aqueles que esquecem o seu passado se condenam a revivê-lo”. Poderíamos dizer: não conhecer e não compreender as dificuldades da história do país onde a escravidão moderna foi das mais longevas e profundas, impede e dificulta para sairmos da condição de uma país fortemente escravagista. Não está exatamente aqui a raiz da manutenção da condição de ser um dos países mais desiguais do mundo? No Brasil a desigualdade não é só uma das piores do mundo, mas tem cor: ela é negra.
Sem a memória do que se é, de que trajetória se percorreu, de que problemas se teve que enfrentar, um povo cai profundamente nas mãos de quem detém o poder, dando espaço ao autoritarismo e ao doutrinamento. Fica muito mais difícil avaliar, enxergar o caminho para ser protagonista da própria história, ter energia para agir. Sem memória se é facilmente massa de manobra.

“A política é a arte do impossível”. Havel diz “A política não pode ser somente a arte do possível, ou seja, da especulação, do cálculo, da intriga, dos acordos secretos e dos golpes, mas, sobretudo, deve ser a arte do impossível, isto é, a arte de melhorar a si mesmo e ao mundo” (pg.171). Sem isso, é “a ideologia que decide pelos homens, e não ao contrário. O poder se torna anônimo. Todos são implicados e escravizados” (pg. 50), dos cidadãos mais simples aos chefes de governo. Quando a realidade política se torna apenas um cálculo e lobbys de forças de interesses e acordos secretos, o chefe do governo age como se fosse um deus, isto é, o governar é tudo, é ação na sua concepção absoluta, não há nada que esteja acima disso (não há Deus!).
Em vez da contraposição: elite e povo, Havel propõe a integração coerente entre cultura e testemunho. Primeiro, dizia, vem a pessoa concreta, depois a estrutura social ou os entes intermediários e só em seguida, as instituições políticas (e não o contrário!).

O poder dos sem poder encontra sua força na suavidade e mansidão. Foi esta virtude que inspirou Havel a instaurar a “Revolução de Veludo” em 1989 e derrubar o comunismo na Checoslováquia. A Revolução de Veludo (17 de novembro a 29 de dezembro de 1989) foi uma imensa manifestação pacífica que gerou, em poucos meses, a deposição do governo comunista daquele país. É considerada como uma das mais importantes do período recente.
Em 17 de novembro de 1989, a polícia reprimiu uma manifestação estudantil em Praga. Este evento desencadeou uma série de manifestações populares entre novembro e dezembro daquele ano. Em 20 de novembro, o número de manifestantes passou de 200 mil para meio milhão de pessoas. E uma semana depois o país parava com uma manifestação geral. Nesse ínterim cercas de arame farpado e outras obstruções foram removidas na fronteira com a Alemanha Ocidental e a Áustria. O governo de partido único, desmoralizado, acabou por renunciar e abriu as eleições livres. Havel que estava à frente da revolução, tornou-se presidente da Checoslováquia.
Não se pode subestimar a força de uma população que vai às ruas reivindicar uma causa justa. Vimos isso na história recente no Brasil!
Um exemplo recente da importância da mobilização popular foi a iniciativa de um único morador da cidade de Cachoeira Paulista para a diminuição do salário dos vereadores. Depois de sua intensa mobilização nas redes sociais, os próprios vereadores se sentiram obrigados a atender o “anseio popular” e votaram pela redução de seu salário em 70%, levando em consideração as restrições financeiras do município, e as próximas eleições em que querem ser candidatos.

A democracia não pode se reduzir ao voto. Por muitas décadas o exercício democrático no Brasil se reduziu ao voto (obrigatório!). Se votava em candidatos pelos mais variados motivos, por achar o nome bonito, por receber “um santinho” na boca de urna, por achar a cara dele simpática ou a propaganda dele curiosa e bizarra (“Meu nome é Enéas”...), ou ainda porque me deu um par de sapatos. No dia seguinte, não se pensava mais em política, nem do político se lembrava mais, deixando-lhe fazer o que bem entendesse até a próxima eleição obrigatória.
Para Havel, reduzir a democracia ao ato de votar gera aquilo que os politólogos chamam de “despreocupação niilista” de quem diz ao político “guie-me você”. Havel diz, ao contrário, que a ordem é um equilíbrio (não uma imposição) e depende da corresponsabilidade e da cooperação social.

A base em que se fundamentam os direitos e deveres depende da definição de liberdade. Havel diz que liberdade de algo leva ao subjetivismo e a formas de governo totalitárias, enquanto que a liberdade para fazer algo cria comunitarismo e formas de governo democráticas. Embora seja sempre difícil defender a liberdade como dizia o senador romano Gaio Sallustio: “Somente poucos indivíduos preferem a liberdade, a grande maioria busca um patrão”.
Havel afirma que o primeiro direito é o de que uma pessoa possa ser si mesma onde o Senhor a colocou para viver. O primeiro dever, por sua vez, é aquele de não renunciar à própria responsabilidade de viver a sua experiência como pessoa no mundo sem homologar-se às lógicas mundanas, às ideologias, às modas e ao consumismo (“compre que você será feliz”).
Assumir uma responsabilidade pessoal é o que permite mudar as coisas, tomar consciência da realidade e ser protagonista. Nas ações políticas, ele colocava no centro a cooperação, o mercado justo e a economia solidária, o trabalho e a gestão transnacional do bem comum (hoje as mudanças climáticas, por exemplo).

A importância da palavra. O uso da palavra é uma arma muito poderosa para criar um mundo de mentira. Pode-se transformar um ato mortífero em algo positivo e terno, apenas mudando os termos para descrever esse ato. Havel descreve como os regimes antiliberais e totalitários mudaram as palavras para criar uma “ideia” da realidade, uma mentira generalizada, conveniente ao poder. Com o jogo das palavras se cria um mundo fantasia e se constroem as ideologias. Sobre o portão de entrada do campo de concentração de Auschwitz está escrito “O trabalho liberta”!
Os primeiros cristãos usavam o termo grego parrhesia para descrever a necessidade de sinceridade e franqueza. A importância da parrhesia é afirmada por Jesus, por exemplo, quando diz “que o vosso falar seja ‘sim, sim’; ‘não, não’, o restante vem do maligno” (Mt 5,37). A verdade, ao contrário da mentira, nunca é uma ideia, mas sempre se traduz em gestos. Havel descreve o episódio de um verdureiro que um dia decide retirar da vitrina, do meio das verduras, o cartaz que o regime tinha mandado todos colocarem: “Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos”. As consequências desse gesto simples e aparentemente discreto foram graves para ele. Por que? Porque o sistema totalitário se alimenta de mentiras. Nada mais perigoso do que não usar as palavras “corretas”.


Se o mundo da mentira se utiliza da construção teórica de palavras, o mundo na verdade se constrói através de gestos concretos de empenho com a realidade toda. Havel conta o episódio paradigmático de um produtor de cerveja que foi condenado porque começou produzir cerveja de melhor qualidade do que a receita que o partido tinha imposto por lei.
A mudança que gera o melhoramento da democracia começa, portanto, da responsabilidade interior de cada indivíduo, por fazer bem seu próprio trabalho, isto é, pelo jeito de fazer as coisas, por pequenos atos que expressam uma responsabilidade pessoal. Por isso, quando cada um decide ir às ruas para reivindicar algo, este gesto é mais poderoso do que o poder dos poderosos.


(Baseado no texto: Francesco Occhetta, “Václav Havel: Il Potere dei Senza Potere”, La Civiltà Cattolica, n. 4068, pgs. 592-601, 2020)

sábado, 1 de fevereiro de 2020

O DESMORONAMENTO DAS DEMOCRACIAS MODERNAS E A URGENTE NECESSIDADE DA VOLTA À VERDADE DO SER HUMANO

         
          As democracias atuais estão desmoronando como sistema representativo, agem cada vez menos para o bem comum e, sobretudo, mostraram-se incapazes de vencer a desigualdade crescente, onde os ricos são cada vez mais ricos e os pobres cada vez em maior número. Mesmo que partidos de esquerda e direita se digladiem, como no caso do Brasil, é cada vez mais evidente que as diferenças ideológicas são mínimas e farinhas do mesmo saco (fica até difícil de dizer: este partido é de esquerda, este de direita). O último Fórum Econômico Mundial revelou que a concentração de renda no mundo praticamente dobrou na última década e, atualmente, 2.153 pessoas detém mais riqueza do que 4,6 bilhões de pessoas. Isso vale totalmente para o Brasil. A análise da mobilidade social (quando pobres ascendem à classe média) mostra que o Brasil é um dos países com menor mobilidade social no ranking global, pois uma pessoa de renda baixa demoraria em média nove gerações para atingir a renda mediana do país.





          Para aprofundar o tema e entender melhor qual é o problema e sua possível solução, escolhemos trechos do livro O Poder dos Sem Poder do grande político checo, Václav Havel (Praga, 19362011) que foi protagonista da mudança de regime do comunismo para a democracia no seu país. É um homem que não viveu o problema de modo teórico.
       Václav Havel foi o último presidente da Checoslováquia e o primeiro presidente da República Checa. Firme defensor da resistência não-violenta (tendo passado cinco anos preso por suas convicções), tornou-se um ícone da Revolução de Veludo em seu país. Em 1989 elegeu-se presidente da Checoslováquia em votação unânime. Manteve-se no cargo após as eleições livres de 1990. Trabalhou para a preservação da federação entre checos e eslovacos durante a dissolução da Checoslováquia, apesar das crescentes tensões; mas, em 1992, o parlamento não o reelegeu como presidente - devido à falta de apoio dos deputados eslovacos. Recandidatou-se ao cargo de presidente quando a República Checa foi criada e venceu as eleições em 1993, sendo reeleito presidente em 1998; mesmo após combater um câncer de pulmão. Seu segundo mandato presidencial terminou em 2003.
      Para Havel o grande inimigo a ser combatido nas sociedades modernas é a onipresença da mentira. O sistema político moderno se propõe como a interpretação perfeita e exaustiva da realidade. Ele é o ídolo. Mas antes ainda desse seu caráter idolátrico o tema central de Havel é a possibilidade moderna de suportar e aceitar a mentira. A modernidade vive uma vida na mentira. A atualidade do tema é auto evidente num tempo em que são onipresentes expressões como “pós-verdade” e “fake news”.

No tempo da pós-verdade, a ideologia é o ídolo
Pag 23
          “O pós-totalitarismo não é apenas uma ditadura, porque se caracteriza antes de mais nada pela brutalidade do poder, por sua mentira e ideologia hipócrita, hipnotiza o indivíduo, induzindo-o a abdicar de sua própria razão, sua própria consciência e de sua própria responsabilidade. [...] Um regime desse tipo não poderia durar muito sem a colaboração ativa ou passiva de cada indivíduo; não poderia durar muito tempo sem se transformar em uma forma de auto-totalitarismo social, nutrido por suas próprias vítimas.”

A conivência com a mentira de cada um de nós
Pag 41
“O sistema pós-totalitário com suas reivindicações toca o homem quase a cada passo. Ele o toca, obviamente, com a luva da ideologia. Assim, a vida é tocada em todos os sentidos por uma rede de hipocrisia e mentiras: o governo da burocracia é chamado governo do povo; a classe trabalhadora é escravizada em nome da classe trabalhadora; a humilhação total do homem é passada como sua libertação definitiva; o isolamento da informação é chamado de divulgação [...]; a asfixia da cultura é chamada desenvolvimento cultural.
O poder é um prisioneiro das próprias mentiras e, portanto, deve continuamente falar de forma falsa. Falsifica o passado. Falsifica o presente e o futuro. Falsifica dados estatísticos. Ele finge não ter um aparato policial todo-poderoso e capaz de tudo. Finge respeitar os direitos humanos. Finge não perseguir ninguém. Finge não ter medo. Finge de não fingir.
O homem não é obrigado a acreditar em todas essas mistificações, mas deve se comportar como se acreditasse nelas, ou pelo menos deve suportá-las em silêncio ou se relacionar bem com quem as usa.
Para isso, ele é forçado a viver na mentira.
Não é necessário que você aceite a mentira, desde que tenha aceitado a vida com ela e dentro dela. Dessa forma, confirma o sistema, o realiza, o faz, e é [parte deste].”

A ideologia: a sujeição hipnótica de uma resposta pronta para qualquer pergunta
Pag 34
“[o sistema totalitário] tem uma ideologia muito concisa, estruturada logicamente, comumente compreensível, que assume quase o escopo de uma religião secularizada, devido à sua natureza muito elástica, a seu sistema global e a seu fechamento. Oferece ao homem uma resposta humana pronta para qualquer pergunta, não se pode aceitar apenas parcialmente, abraçá-la marca profundamente a existência humana. Na época da crise das certezas metafísicas e existenciais, na época do desenraizamento do homem, da alienação e da perda de sentido do mundo, essa ideologia deve necessariamente possuir uma sujeição hipnótica específica que para os errantes oferece uma habitação acessível. Basta aceita-la e imediatamente tudo fica claro de novo, a vida adquire significado e, nesse horizonte desaparecem o mistério, as interrogações, a inquietação e a solidão.
Por esse lar modesto, o homem geralmente paga um preço alto: a abdicação de sua razão, consciência e responsabilidade; uma parte integrante da ideologia assumida é, de fato, a entrega da razão e da consciência nas mãos dos superiores, isto é, o princípio da identificação do centro de poder com o centro da verdade.”

A idolatria do personalismo: Petismo, Olavismo ou Bolsonarismo erigidos ao nível de doutrina
       Quando um partido é erigido ao nível de doutrina, gera-se uma interpretação da realidade subordinada ao personalismo, idolatria de si e autojustificação, que tende a se ritualizar. A esse respeito diz Havel:
Pag 43
“A ideologia como uma interpretação que o poder dá da realidade é, portanto, sempre subordinada ao interesse do poder; portanto, intrinsecamente tende a se desvincular da realidade, a criar um mundo de aparência, a se ritualizar.”
Torna-se uma espécie de paranoia que sempre se define pela contraposição. Quando as “doutrinas” petista, olavista ou bolsonarista são esvaziadas da reatividade, da sua personificação do anti-isso, anti-aquilo, não sobra nada. Pois todo conteúdo é capturado pelo arcabouço ideológico de uma ou outra doutrina, esvaziado do seu significado real e reinterpretado de forma tipicamente persecutória. O ciclo se retroalimenta e cada vez mais se afasta da realidade. Como afirma Havel:
Pag 44  
“À medida que cresce em importância e com o gradual afastamento da realidade, a ideologia adquire sua própria força real, torna-se realidade, mesmo que seja uma realidade sui generis que, em certos níveis (sobretudo no âmbito do poder), tem de fato um peso maior do que a realidade enquanto tal: depende cada vez mais da perfeição do ritual do que da concretude por trás dele. A importância dos fenômenos não deriva deles, mas de sua incorporação conceitual no contexto ideológico; não é a realidade que atua sobre a tese, mas a tese sobre a realidade. Assim, o poder se refere mais à ideologia do que à realidade, retira sua força da tese da qual depende completamente.”

O esvaziamento do valor da pessoa sacrificada em prol do Sistema: novo Moloch
        O Sistema se torna o único “real” ou a única realidade em que se pode confiar, enquanto as pessoas são apenas espectros deste, e são pessoas “dignas” na medida que servem a este.
Pag 50
 “É inerente ao sistema pós-totalitário envolver todo homem na estrutura do poder, não para que ele dentro deste realize sua própria identidade humana, mas para que ele, ao renunciar a esta em benefício da identidade do sistema, colabore de forma autômata e se torne um servo de sua autofinalidade, para que condivida a responsabilidade e se veja envolvido e enredado como Fausto com Mefistófeles.”
         Voilà, essa conclusão é acachapante. O sistema da mentira funciona porque o homem moderno está disposto a viver na mentira. Não se pode deixar de pensar em Voltaire: “Mentez, mentez, il en restera toujours quelque chose! Il faut mentir comme le diable, non pas timidement, pas pour um temps, mais hardiment et toujours!” (Mintais, mintais, e permanecerá sempre algo! É preciso mentir como o diabo, não timidamente, nem por um tempo apenas, mas audaciosamente e sempre!)
Pag 51
“O fato que a humanidade criou e continua, dia após dia, a criar para si um sistema voltado para si mesmo, através do qual se priva de sua própria identidade, não é uma extravagância incompreensível da história, sua aberração irracional ou resultado de uma diabólica vontade superior que, por razões obscuras, decidiu torturar parte da humanidade dessa maneira. Isso foi possível e pode acontecer só porque, evidentemente, há certas inclinações no homem moderno para criar ou pelo menos para suportar esse sistema [...] O homem é forçado a viver na mentira, mas pode ser forçado a fazê-lo apenas porque é capaz de viver desse modo. Assim, o sistema não apenas aliena o homem, mas, ao mesmo tempo, o homem alienado apoia esse sistema como seu projeto involuntário. Como a imagem depravada da própria depravação. Como o documento do seu fracasso.”

De onde brota a disposição para viver na mentira
        Quais são as origens dessa disposição de viver na mentira? O materialismo... o consumismo... ou, mais profundamente, o esvaziamento – a destruição completa! – da experiência do sacrifício (que vem de sacro-ofício). O filme O Sacrifício de Andrei Tarkovsky parece como um coroamento de tudo o que afirma Havel. Em particular quando diz:
Pag 53
“De maneira muito simplista, pode-se dizer que o sistema pós-totalitário cresceu no terreno do encontro histórico entre a ditadura e a civilização consumista. A vasta adaptação à vida na mentira e a fácil difusão do auto-totalitarismo social não decorrem da aversão geral do homem da sociedade de consumo de sacrificar algo de sua segurança material em detrimento de sua própria integridade espiritual e moral? Ou de sua pronta renúncia a um significado supremo diante das tentações superficiais da civilização moderna?”

A vitória sobre o Sistema é a vida na verdade
Pag 55
“Enquanto a aparência não for confrontada com a realidade, não se perceberá que é apenas uma aparência; até que a vida na mentira seja comparada com a vida na verdade, não há ponto de referência que revele sua falsidade. [...] No sistema pós-totalitário, a vida na verdade não tem apenas uma dimensão existencial (restitui o homem a si mesmo), noética (revela a realidade como é) e moral (oferece um exemplo), mas também tem uma dimensão evidentemente política.”

O que é a vida na verdade?
Pag 58
“Quando falo de vida na verdade, naturalmente não penso apenas em reflexões ideais, por exemplo, um protesto ou uma carta assinada por um grupo de intelectuais. Pode ser tudo o que um indivíduo ou um grupo de pessoas pode fazer ao se rebelar contra sua manipulação: de carta de intelectuais à greve dos trabalhadores, de um concerto de rock a uma manifestação estudantil, da recusa em participar da farsa eleitoral através de uma posição franca em certas reuniões oficiais, até a greve de fome. Se o sistema pós-totalitário sufoca completamente as intenções da vida e se baseia na manipulação geral de todas as manifestações da vida, toda expressão de vida livre é indiretamente uma ameaça política.”

A responsabilidade humana nunca é subtraída
Pag 28
“Não é verdade que com a introdução de um sistema melhor, seja garantida, automaticamente, uma vida melhor, pelo contrário: somente com uma vida melhor você poderá construir um sistema melhor.”



Referência : V. HAVEL. Il Potere dei senza potere, Itaca
                         Bologna, 2013.