As democracias atuais estão desmoronando como sistema representativo,
agem cada vez menos para o bem comum e, sobretudo, mostraram-se incapazes de
vencer a desigualdade crescente, onde os ricos são cada vez mais ricos e os
pobres cada vez em maior número. Mesmo que partidos de esquerda e direita se
digladiem, como no caso do Brasil, é cada vez mais evidente que as diferenças ideológicas
são mínimas e farinhas do mesmo saco (fica até difícil de dizer: este partido é
de esquerda, este de direita). O último Fórum Econômico Mundial revelou
que a concentração de renda no mundo praticamente dobrou na última década e,
atualmente, 2.153 pessoas detém mais riqueza do que 4,6 bilhões de pessoas. Isso
vale totalmente para o Brasil. A análise da mobilidade social (quando pobres
ascendem à classe média) mostra que
o Brasil é um dos países com menor mobilidade social no ranking global, pois
uma pessoa de renda baixa demoraria em média nove gerações para atingir a renda
mediana do país.
Para aprofundar o tema e entender
melhor qual é o problema e sua possível solução, escolhemos trechos do livro O
Poder dos Sem Poder do grande político checo, Václav Havel (Praga, 1936—2011) que foi protagonista
da mudança de regime do comunismo para a democracia no seu país. É um homem que
não viveu o problema de modo teórico.
Václav Havel foi o último presidente da Checoslováquia
e o primeiro presidente da República Checa.
Firme defensor da resistência não-violenta (tendo passado cinco anos preso por
suas convicções), tornou-se um ícone da Revolução de Veludo em seu país. Em 1989
elegeu-se presidente
da Checoslováquia em votação unânime. Manteve-se
no cargo após as eleições livres de 1990. Trabalhou para a preservação da
federação entre checos e eslovacos durante a dissolução da Checoslováquia, apesar das
crescentes tensões; mas, em 1992, o parlamento não o reelegeu como presidente -
devido à falta de apoio dos deputados eslovacos. Recandidatou-se ao cargo de
presidente quando a República Checa foi criada e venceu as eleições
em 1993, sendo reeleito presidente em 1998; mesmo após combater um câncer de pulmão. Seu segundo mandato
presidencial terminou em 2003.
Para Havel o grande inimigo a ser
combatido nas sociedades modernas é a onipresença da mentira. O sistema político
moderno se propõe como a interpretação perfeita e exaustiva da realidade. Ele é
o ídolo. Mas antes ainda desse seu caráter idolátrico o tema central de
Havel é a possibilidade moderna de suportar e aceitar a mentira. A
modernidade vive uma vida na mentira. A atualidade do tema é auto
evidente num tempo em que são onipresentes expressões como “pós-verdade” e
“fake news”.
No tempo da pós-verdade,
a ideologia é o ídolo
Pag 23
“O pós-totalitarismo não é apenas
uma ditadura, porque se caracteriza antes de mais nada pela brutalidade do
poder, por sua mentira e ideologia hipócrita, hipnotiza o indivíduo,
induzindo-o a abdicar de sua própria razão, sua própria consciência e de sua
própria responsabilidade. [...] Um regime desse tipo não poderia durar muito
sem a colaboração ativa ou passiva de cada indivíduo; não poderia durar muito
tempo sem se transformar em uma forma de auto-totalitarismo social, nutrido por
suas próprias vítimas.”
A conivência com a
mentira de cada um de nós
Pag 41
“O sistema
pós-totalitário com suas reivindicações toca o homem quase a cada passo. Ele o
toca, obviamente, com a luva da ideologia. Assim, a vida é tocada em todos os
sentidos por uma rede de hipocrisia e mentiras: o governo da burocracia é
chamado governo do povo; a classe trabalhadora é escravizada em nome da classe
trabalhadora; a humilhação total do homem é passada como sua libertação
definitiva; o isolamento da informação é chamado de divulgação [...]; a asfixia
da cultura é chamada desenvolvimento cultural.
O poder é um
prisioneiro das próprias mentiras e, portanto, deve continuamente falar de
forma falsa. Falsifica o passado. Falsifica o presente e o futuro. Falsifica
dados estatísticos. Ele finge não ter um aparato policial todo-poderoso e capaz
de tudo. Finge respeitar os direitos humanos. Finge não perseguir ninguém.
Finge não ter medo. Finge de não fingir.
O homem não é obrigado
a acreditar em todas essas mistificações, mas deve se comportar como se
acreditasse nelas, ou pelo menos deve suportá-las em silêncio ou se relacionar
bem com quem as usa.
Para isso, ele é
forçado a viver na mentira.
Não é necessário que
você aceite a mentira, desde que tenha aceitado a vida com ela e dentro dela.
Dessa forma, confirma o sistema, o realiza, o faz, e é [parte deste].”
A ideologia: a sujeição
hipnótica de uma resposta pronta para qualquer pergunta
Pag 34
“[o sistema
totalitário] tem uma ideologia muito concisa, estruturada logicamente,
comumente compreensível, que assume quase o escopo de uma religião secularizada,
devido à sua natureza muito elástica, a seu sistema global e a seu fechamento.
Oferece ao homem uma resposta humana pronta para qualquer pergunta, não se pode
aceitar apenas parcialmente, abraçá-la marca profundamente a existência humana.
Na época da crise das certezas metafísicas e existenciais, na época do
desenraizamento do homem, da alienação e da perda de sentido do mundo, essa
ideologia deve necessariamente possuir uma sujeição hipnótica específica que
para os errantes oferece uma habitação acessível. Basta aceita-la e
imediatamente tudo fica claro de novo, a vida adquire significado e, nesse
horizonte desaparecem o mistério, as interrogações, a inquietação e a solidão.
Por esse lar modesto, o
homem geralmente paga um preço alto: a abdicação de sua razão, consciência e
responsabilidade; uma parte integrante da ideologia assumida é, de fato, a entrega
da razão e da consciência nas mãos dos superiores, isto é, o princípio da
identificação do centro de poder com o centro da verdade.”
A idolatria do
personalismo: Petismo, Olavismo ou Bolsonarismo erigidos ao nível de doutrina
Quando um partido é erigido ao nível
de doutrina, gera-se uma interpretação da realidade subordinada ao
personalismo, idolatria de si e autojustificação, que tende a se ritualizar. A
esse respeito diz Havel:
Pag 43
“A ideologia como uma
interpretação que o poder dá da realidade é, portanto, sempre subordinada ao
interesse do poder; portanto, intrinsecamente tende a se desvincular da
realidade, a criar um mundo de aparência, a se ritualizar.”
Torna-se uma espécie de
paranoia que sempre se define pela contraposição. Quando as “doutrinas” petista,
olavista ou bolsonarista são esvaziadas da reatividade, da sua personificação
do anti-isso, anti-aquilo, não sobra nada. Pois todo conteúdo é capturado pelo
arcabouço ideológico de uma ou outra doutrina, esvaziado do seu significado
real e reinterpretado de forma tipicamente persecutória. O ciclo se
retroalimenta e cada vez mais se afasta da realidade. Como afirma Havel:
Pag 44
“À medida que cresce em
importância e com o gradual afastamento da realidade, a ideologia adquire sua
própria força real, torna-se realidade, mesmo que seja uma realidade sui
generis que, em certos níveis (sobretudo no âmbito do poder), tem de fato um
peso maior do que a realidade enquanto tal: depende cada vez mais da perfeição
do ritual do que da concretude por trás dele. A importância dos fenômenos não
deriva deles, mas de sua incorporação conceitual no contexto ideológico; não é
a realidade que atua sobre a tese, mas a tese sobre a realidade. Assim, o poder
se refere mais à ideologia do que à realidade, retira sua força da tese da qual
depende completamente.”
O esvaziamento do valor
da pessoa sacrificada em prol do Sistema: novo Moloch
O Sistema se torna o único “real”
ou a única realidade em que se pode confiar, enquanto as pessoas são apenas
espectros deste, e são pessoas “dignas” na medida que servem a este.
Pag 50
“É inerente ao sistema
pós-totalitário envolver todo homem na estrutura do poder, não para que ele
dentro deste realize sua própria identidade humana, mas para que ele, ao
renunciar a esta em benefício da identidade do sistema, colabore de forma
autômata e se torne um servo de sua autofinalidade, para que condivida a
responsabilidade e se veja envolvido e enredado como Fausto com Mefistófeles.”
Voilà, essa conclusão é
acachapante. O sistema da mentira funciona porque o homem moderno está
disposto a viver na mentira. Não se pode deixar de pensar em Voltaire: “Mentez,
mentez, il en restera toujours quelque chose! Il faut mentir comme le diable,
non pas timidement, pas pour um temps, mais hardiment et toujours!” (Mintais,
mintais, e permanecerá sempre algo! É preciso mentir como o diabo, não
timidamente, nem por um tempo apenas, mas audaciosamente e sempre!)
Pag 51
“O fato que a
humanidade criou e continua, dia após dia, a criar para si um sistema voltado
para si mesmo, através do qual se priva de sua própria identidade, não é uma
extravagância incompreensível da história, sua aberração irracional ou
resultado de uma diabólica vontade superior que, por razões obscuras, decidiu
torturar parte da humanidade dessa maneira. Isso foi possível e pode acontecer
só porque, evidentemente, há certas inclinações no homem moderno para criar ou
pelo menos para suportar esse sistema [...] O homem é forçado a viver na
mentira, mas pode ser forçado a fazê-lo apenas porque é capaz de viver desse
modo. Assim, o sistema não apenas aliena o homem, mas, ao mesmo tempo, o homem
alienado apoia esse sistema como seu projeto involuntário. Como a imagem
depravada da própria depravação. Como o documento do seu fracasso.”
De onde brota a
disposição para viver na mentira
Quais são as origens dessa disposição
de viver na mentira? O materialismo... o consumismo... ou, mais profundamente,
o esvaziamento – a destruição completa! – da experiência do sacrifício (que vem
de sacro-ofício). O filme O Sacrifício de Andrei Tarkovsky parece
como um coroamento de tudo o que afirma Havel. Em particular quando diz:
Pag 53
“De maneira muito
simplista, pode-se dizer que o sistema pós-totalitário cresceu no terreno do
encontro histórico entre a ditadura e a civilização consumista. A vasta
adaptação à vida na mentira e a fácil difusão do auto-totalitarismo social não decorrem
da aversão geral do homem da sociedade de consumo de sacrificar algo de sua
segurança material em detrimento de sua própria integridade espiritual e moral?
Ou de sua pronta renúncia a um significado supremo diante das tentações
superficiais da civilização moderna?”
A vitória sobre o Sistema
é a vida na verdade
Pag 55
“Enquanto a aparência
não for confrontada com a realidade, não se perceberá que é apenas uma
aparência; até que a vida na mentira seja comparada com a vida na verdade, não
há ponto de referência que revele sua falsidade. [...] No sistema
pós-totalitário, a vida na verdade não tem apenas uma dimensão existencial (restitui
o homem a si mesmo), noética (revela a realidade como é) e moral (oferece um
exemplo), mas também tem uma dimensão evidentemente política.”
O que é a vida na
verdade?
Pag 58
“Quando falo de vida na
verdade, naturalmente não penso apenas em reflexões ideais, por exemplo, um
protesto ou uma carta assinada por um grupo de intelectuais. Pode ser tudo o
que um indivíduo ou um grupo de pessoas pode fazer ao se rebelar contra sua
manipulação: de carta de intelectuais à greve dos trabalhadores, de um concerto
de rock a uma manifestação estudantil, da recusa em participar da farsa
eleitoral através de uma posição franca em certas reuniões oficiais, até a
greve de fome. Se o sistema pós-totalitário sufoca completamente as intenções
da vida e se baseia na manipulação geral de todas as manifestações da vida,
toda expressão de vida livre é indiretamente uma ameaça política.”
A responsabilidade
humana nunca é subtraída
Pag 28
“Não é verdade que com
a introdução de um sistema melhor, seja garantida, automaticamente, uma vida
melhor, pelo contrário: somente com uma vida melhor você poderá construir um
sistema melhor.”
Referência : V. HAVEL. Il Potere dei senza potere, Itaca
Bologna, 2013.