domingo, 31 de maio de 2020

Um pedido aos Bispos do Brasil

Em favor da vida, da democracia e do diálogo

Nesta semana dedicada à unidade dos cristãos e à unidade entre todos os seres humanos nos sentimos particularmente chamados a nos mover para pedir esta unidade diante do momento que o Brasil está atravessando, com uma crise política que se soma à crise sanitária. Queremos nos unir ao coro de vozes que nestes últimos dias se expressaram nos dois manifestos intitulados Estamos Juntos e Basta, em defesa de valores que não são relativos[1]. Diz o primeiro:

Como aconteceu no movimento Diretas Já, é hora de deixar de lado velhas disputas em busca do bem comum. [...] Defendemos uma administração pública reverente à Constituição, audaz no combate à corrupção e à desigualdade, verdadeiramente comprometida com a educação, a segurança e a saúde da população. 

Nos associamos também ao pedido feito à CNBB e publicado no dia 28 de maio no Instituto Humanitas da  Unisinos para mediar esse movimento nacional[2]:

A situação é dramática. [...] A fé cristã, com todos os problemas históricos que não se pode negar, sempre teve o carisma da unidade, do diálogo, da paz e da solidariedade. Então, uma humilde sugestão para a nossa realidade brasileira, que pode ser exemplo para o mundo: a CNBB, através de sua presidência, poderia ser a mediadora de um grande debate virtual para garantir a democracia. [...]. Podemos tentar unir todos os setores sociais que acreditam que os direitos humanos são valores fundamentais desenvolvidos pelo mundo moderno. 

Toda experiência religiosa autentica compartilha e defende tais valores e direitos. Com esse empenho e como parte do povo cristão solicitamos que a CNBB unida a outras entidades expressivas das religiões presentes em nosso País, se constituam numa frente ecumênica que assuma a função de mediação de um grande debate virtual para garantir a democracia e para conduzir a indignação pública diante do presente cenário político de forma pacifica e não violenta. Que a dor enorme de tantos brasileiros, diante do desamparo da doença, da pobreza, da incerteza, do desemprego, da falência, da perda de entes queridos, nos provoque a não se omitir. Digamos o nosso sim pela vida, pela democracia e pelo diálogo. Que este sim implique também a exigência social e política para que cada vida humana seja reconhecida e valorizada por todos; antes de mais nada por aqueles que receberam do povo brasileiro o mandato para tutela-la e preserva-la. Preservar a democracia é condição essencial para preservar o bem comum do povo brasileiro.

Núcleo Cultural Lux Mundi



segunda-feira, 18 de maio de 2020

O que realismo, uso não redutivo da razão e moralidade no conhecimento têm a ver com hidroxicloroquina ?


Há cerca de 50 anos, o epistemólogo francês George Canguilhem esclareceu a diferença entre ciência e ideologia científica.

A ciência baseia seu conhecimento em evidências factuais, obtidas pela observação dos fenômenos, buscando apreender todos os aspectos que cada fenômeno apresenta, pela observação e experimento e pela intersubjetividade proporcionada pela comunidade científica. O objetivo da ciência é conhecer o fenômeno na totalidade dos fatores que o compõem. Para isto, deve obedecer a exigências metodológicas rigorosas.

A ideologia científica usa de algumas das evidências tematizadas pela ciência retirando-as do âmbito em que foram obtidas e definidas, generalizando-as e usando-as para construir discursos “pretensamente científicos, sustentados por homens que na matéria são apenas cientistas presumidos ou presunçosos” 1 (1977, p. 40).

Trata-se de discursos que buscam algum modo de acesso direto à totalidade do universo ou alguma solução geral de problemas ou algum tipo de persuasão, mas que também podem legitimar interesses particulares de grupos de poder (intelectual, político, econômico, etc...).
Nesse sentido, “a ideologia é um conhecimento afastado do objeto que lhe é dado quanto crê ajustar-se a este objeto”1 (p. 41). A ideologia científica pode ser também um conjunto de ideias sobre um objeto ou de hipóteses ainda não verificadas. Quando o conhecimento científico alcança a compreensão daquele objeto, a ideologia científica deve ser substituída pelos resultados da ciência. Nessa situação, se perseverarmos no uso da ideologia contra os resultados da ciência, evidentemente se incorre na falsidade.

A diferença entre estas duas posições é assinalada por Giussani quando em suas três premissas sobre o método e conhecimento no livro o Senso Religioso 2 (2005) fala em realismo, em uso não redutivo da razão e incidência da moralidade sobre o dinamismo de conhecimento. Resumimos as três premissas em três frases:

“Realismo é a urgência de não privilegiar um esquema que já tenhamos em mente, em detrimento de uma observação global, apaixonada, e insistente do fato, do acontecimento real” (2005, p. 20)
“A razão é abertura á realidade, capacidade de agarrá-la e afirma-la na totalidade de seus fatores” (2005, p. 36)
“Na aplicação ao campo de conhecimento, esta é regra moral; amor à verdade do objeto mais do que o apego as opiniões que já formamos sobre ele. Numa palavra, poderíamos dizer; “amar a verdade mais do que a si mesmo” (2005, p. 55).


Estas considerações podem alertar nossa atenção e provocar nosso juízo diante do debate que nestes dias está se travando no Brasil acerca do uso do remédio hidroxicloroquina para a cura do covid19.  Sim.

Evidentemente, diante da epidemia de coronavirus e do adoecimento e morte de tantas pessoas, a busca pela saúde e pelo remédio respondem ao anseio humano de bem. Ao mesmo tempo, diante do desconhecimento do vírus e da natureza complexa do mesmo, as ciências médicas se deparam com sua impotência e com a necessidade de estudos e de experimentação. Por isto, frente ao desconhecido, a atitude científica procede com cautela e humildade, ao mesmo tempo em que realiza suas pesquisas experimentais a respeito. Portanto, o anseio pela busca do remédio certo e definitivo deve pacientemente reconhecer o fato de que ainda não há resultados consolidados que possam fornecer uma resposta certa e definitiva. Assim, certa pressa ou ufanismo que às vezes tem se manifestado na discussão sobre hidroxicloroquina assemelha-se mais à atitude da ideologia científica do que da ciência. E pode alimentar ilusões e abusos. Por exemplo, na declaração de dia 17 de maio, a médica Nise Yamaguchi, ao defender o uso da cloroquina no tratamento de pacientes com Covid-19 numa entrevista à CNN Brasil afirmou que se houver disponibilização desse remédio para a população e o medicamento for bem distribuído a todas as regiões, “o Brasil não será um epicentro, e sim um exemplo. Eu tenho a certeza que estas normas podem ser incorporadas rapidamente a um modelo de atuação que seja ágil, concreto e eficiente” (O Antagonista, dia 17 de maio de 2020).  Esta certeza parece mais fruto de uma vontade voltada a encontrar rápida solução; mas na semana anterior, vários artigos científicos foram publicados em revistas científicas internacionais a respeito do uso desse remédio, já mostrando resultados que contradizem as afirmações da médica. Um deles, o mais importante, foi realizado com pacientes hospitalizados do estado de Nova York e é o maior deste tipo. Ao todo, 1.438 pacientes de 25 hospitais foram avaliados pelos pesquisadores. Os pacientes foram divididos em quatro grupos: o primeiro foi tratado apenas com hidroxicloroquina; o segundo, só com azitromicina; o terceiro, com ambos os medicamentos; o último, com nenhum dos dois. “Entre os pacientes hospitalizados com Covid-19, o tratamento com hidroxicloroquina, azitromicina ou os dois não foi associado à diminuição significativa da mortalidade”, concluíram os pesquisadores. Ainda de acordo com eles, os pacientes que tomaram a combinação da hidroxicloroquina com a azitromicina tiveram duas vezes mais chances de sofrer parada cardíaca do que as pessoas que não receberam nenhum medicamento. Citamos na bibliografia este artigo e outros que corroboram estas conclusões3,4,5,6.
Em suma, voltando às dicas de Giussani, a observação atenta do fenômeno possibilitada pelo estudo citado e por outros semelhantes (realismo), o uso da razão aberta a totalidade dos fatores e uma postura moral no conhecimento impõem reconhecer evidências que nem sempre correspondem a opiniões, expectativas e fáceis soluções aos desafios da realidade. Nessa perspectiva, por exemplo, deve ser evitado o uso ideológico das indicações para remédios (como no exemplo da hidroxicloroquina).
O uso ideológico de uma possibilidade que poderia até ser comprovada pelo teste da realidade  contradiz o amor à verdade e o imperativo da ética médica de preservar a vida e a saúde das pessoas. A humildade e o cuidado pela pessoa humana sempre acompanham a verdadeira ciência e a verdadeira medicina. 
Notas :
1. Canguilhem, G.(1977) O que é uma ideologia científica? (1969). Em: Ideologia e racionalidade nas ciências da vida, Lisboa: Edições 70

2. Giussani, L. (2009). O senso religioso. Braislia: Editora Universa

3. Association of Treatment With Hydroxychloroquine or Azithromycin With In-Hospital Mortality in Patients With COVID-19 in NewYork State Eli S. Rosenberg, PhD; Elizabeth M. Dufort, MD; Tomoko Udo, PhD; Larissa A. Wilberschied, MS; Jessica Kumar, DO; James Tesoriero, PhD; PattiWeinberg, PA; James Kirkwood, MPH; Alison Muse, MPH; Jack DeHovitz, MD; Debra S. Blog, MD; Brad Hutton, MPH; David R. Holtgrave, PhD; Howard A. Zucker,MD. Journal American Medical AssociationJAMA Published online May 11, 2020 (Downloaded From: https://jamanetwork.com/ on 05/16/2020

4. Should Clinicians Use Chloroquine or Hydroxychloroquine Alone or in Combination With Azithromycin for the Prophylaxis or Treatment of COVID-19? Living Practice Points From the American College of Physicians (Version 1) Amir Qaseem, MD, PhD, MHA; Jennifer Yost, RN, PhD; Itziar Etxeandia-Ikobaltzeta, PharmD, PhD; Matthew C. Miller, MD; George M. Abraham, MD, MPH; Adam Jacob Obley, MD; Mary Ann Forciea, MD; Janet A. Jokela, MD, MPH; and Linda L. Humphrey, MD, MPH; for the Scientific Medical Policy Committee of the American College of Physicians*

5. Hydroxychloroquine in patients with mainly mild to moderate coronavirus disease 2019: open label, randomised controlled trial BMJ 2020369 doi: https://doi.org/10.1136/bmj.m1849 (Published 14 May 2020) Cite this as: BMJ 2020;369:m1849

6. Clinical efficacy of hydroxychloroquine in patients with covid-19 pneumonia who require oxygen: observational comparative study using routine care data BMJ 2020369 doi: https://doi.org/10.1136/bmj.m1844 (Published 14 May 2020)Cite this as: BMJ 2020;369:m1844

quinta-feira, 14 de maio de 2020

Duas Sonatas do Rosário

Hoje, no dia de Nossa Senhora de Fátima, propomos duas das Sonatas do Rosário, de Heinrich Ignaz Franz Biber (1644-1704). Elas fazem parte de um conjunto de 15 sonatas para violino e baixo contínuo, escritas provavelmente em 1674, e que servem como meditação para cada um dos mistérios gozosos, dolorosos e gloriosos do Rosário.


A Sonata n.10, em sol menor, “A crucificação”, tem alguns momentos tristes, mas não tem nada de lamentoso. O que sobressai é um caráter decidido, afirmativo, que faz lembrar o Evangelho de João (10, 18), em que Cristo fala: “Ninguém tira a minha vida, eu a dou por mim mesmo”.

A Sonata n.11, em sol maior, “A ressurreição”, começa com um trecho que gera grande expectativa, com uma base longa, parada, a partir da qual o violino começa a se movimentar, como se a vida surgisse da morte. Em seguida, vem um hino muito solene e alegre, em nada saltitante, de uma alegria profunda.

Para ouvir as sonatas, acesse os links abaixo: