Há cerca de 50 anos, o
epistemólogo francês George Canguilhem esclareceu a diferença entre ciência e
ideologia científica.
A ciência baseia seu
conhecimento em evidências factuais, obtidas pela observação dos fenômenos,
buscando apreender todos os aspectos que cada fenômeno apresenta, pela
observação e experimento e pela intersubjetividade proporcionada pela
comunidade científica. O objetivo da ciência é conhecer o fenômeno na
totalidade dos fatores que o compõem. Para isto, deve obedecer a exigências
metodológicas rigorosas.
A ideologia científica
usa de algumas das evidências tematizadas pela ciência retirando-as do âmbito
em que foram obtidas e definidas, generalizando-as e usando-as para construir
discursos “pretensamente científicos, sustentados por homens que na matéria são
apenas cientistas presumidos ou presunçosos” 1 (1977, p. 40).
Trata-se de discursos que
buscam algum modo de acesso direto à totalidade do universo ou alguma solução
geral de problemas ou algum tipo de persuasão, mas que também podem legitimar
interesses particulares de grupos de poder (intelectual, político, econômico,
etc...).
Nesse sentido, “a
ideologia é um conhecimento afastado do objeto que lhe é dado quanto crê
ajustar-se a este objeto”1 (p. 41). A ideologia científica pode ser também um
conjunto de ideias sobre um objeto ou de hipóteses ainda não verificadas. Quando
o conhecimento científico alcança a compreensão daquele objeto, a ideologia científica
deve ser substituída pelos resultados da ciência. Nessa situação, se
perseverarmos no uso da ideologia contra os resultados da ciência, evidentemente
se incorre na falsidade.
A diferença entre estas
duas posições é assinalada por Giussani quando em suas três premissas sobre o
método e conhecimento no livro o Senso Religioso 2 (2005) fala em realismo, em
uso não redutivo da razão e incidência da moralidade sobre o dinamismo de
conhecimento. Resumimos as três premissas em três frases:
“Realismo é a urgência de
não privilegiar um esquema que já tenhamos em mente, em detrimento de uma
observação global, apaixonada, e insistente do fato, do acontecimento real”
(2005, p. 20)
“A razão é abertura á
realidade, capacidade de agarrá-la e afirma-la na totalidade de seus fatores”
(2005, p. 36)
“Na aplicação ao campo de
conhecimento, esta é regra moral; amor à verdade do objeto mais do que o apego
as opiniões que já formamos sobre ele. Numa palavra, poderíamos dizer; “amar a
verdade mais do que a si mesmo” (2005, p. 55).
Estas considerações podem
alertar nossa atenção e provocar nosso juízo diante do debate que nestes dias
está se travando no Brasil acerca do uso do remédio hidroxicloroquina para a
cura do covid19. Sim.
Evidentemente, diante da epidemia
de coronavirus e do adoecimento e morte de tantas pessoas, a busca pela saúde e
pelo remédio respondem ao anseio humano de bem. Ao mesmo tempo, diante do
desconhecimento do vírus e da natureza complexa do mesmo, as ciências médicas
se deparam com sua impotência e com a necessidade de estudos e de
experimentação. Por isto, frente ao desconhecido, a atitude científica procede
com cautela e humildade, ao mesmo tempo em que realiza suas pesquisas
experimentais a respeito. Portanto, o anseio pela busca do remédio certo e
definitivo deve pacientemente reconhecer o fato de que ainda não há resultados
consolidados que possam fornecer uma resposta certa e definitiva. Assim, certa
pressa ou ufanismo que às vezes tem se manifestado na discussão sobre hidroxicloroquina
assemelha-se mais à atitude da ideologia científica do que da ciência. E pode
alimentar ilusões e abusos. Por exemplo, na declaração de dia 17 de maio, a
médica Nise Yamaguchi, ao defender o uso da cloroquina no tratamento de
pacientes com Covid-19 numa entrevista à CNN Brasil afirmou que se houver
disponibilização desse remédio para a população e o medicamento for bem
distribuído a todas as regiões, “o Brasil não será um epicentro, e sim um
exemplo. Eu tenho a certeza que estas normas podem ser incorporadas rapidamente
a um modelo de atuação que seja ágil, concreto e eficiente” (O Antagonista, dia
17 de maio de 2020). Esta certeza parece
mais fruto de uma vontade voltada a encontrar rápida solução; mas na semana
anterior, vários artigos científicos foram publicados em revistas científicas internacionais
a respeito do uso desse remédio, já mostrando resultados que contradizem as
afirmações da médica. Um deles, o mais importante, foi realizado com pacientes
hospitalizados do estado de Nova York e é o maior deste tipo. Ao todo, 1.438
pacientes de 25 hospitais foram avaliados pelos pesquisadores. Os pacientes
foram divididos em quatro grupos: o primeiro foi tratado apenas com
hidroxicloroquina; o segundo, só com azitromicina; o terceiro, com ambos os
medicamentos; o último, com nenhum dos dois. “Entre os pacientes hospitalizados
com Covid-19, o tratamento com hidroxicloroquina, azitromicina ou os dois não
foi associado à diminuição significativa da mortalidade”, concluíram os
pesquisadores. Ainda de acordo com eles, os pacientes que tomaram a combinação
da hidroxicloroquina com a azitromicina tiveram duas vezes mais chances de
sofrer parada cardíaca do que as pessoas que não receberam nenhum medicamento. Citamos
na bibliografia este artigo e outros que corroboram estas conclusões3,4,5,6.
Em suma, voltando às dicas de
Giussani, a
observação atenta do fenômeno possibilitada pelo estudo citado e por outros
semelhantes (realismo), o uso da razão aberta a totalidade dos fatores e uma
postura moral no conhecimento impõem reconhecer evidências que nem sempre
correspondem a opiniões, expectativas e fáceis soluções aos desafios da
realidade. Nessa perspectiva, por exemplo, deve ser evitado o uso ideológico das
indicações para remédios (como no exemplo da hidroxicloroquina).
O uso ideológico de uma
possibilidade que poderia até ser comprovada pelo teste da realidade contradiz o amor à verdade e o imperativo da
ética médica de preservar a vida e a saúde das pessoas. A humildade e o cuidado
pela pessoa humana sempre acompanham a verdadeira ciência e a verdadeira
medicina.
Notas :
1. Canguilhem, G.(1977) O que é uma ideologia
científica? (1969). Em: Ideologia e racionalidade nas ciências da vida, Lisboa:
Edições 70
2. Giussani, L. (2009). O senso religioso. Braislia:
Editora Universa
3. Association of Treatment
With Hydroxychloroquine or Azithromycin With In-Hospital Mortality in Patients
With COVID-19 in NewYork State Eli S. Rosenberg,
PhD; Elizabeth M. Dufort, MD; Tomoko Udo, PhD; Larissa A. Wilberschied, MS;
Jessica Kumar, DO; James Tesoriero, PhD; PattiWeinberg, PA; James Kirkwood,
MPH; Alison Muse, MPH; Jack DeHovitz, MD; Debra S. Blog, MD; Brad Hutton, MPH;
David R. Holtgrave, PhD; Howard A. Zucker,MD. Journal American
Medical AssociationJAMA Published online May 11, 2020 (Downloaded From: https://jamanetwork.com/ on 05/16/2020
4. Should Clinicians Use Chloroquine or Hydroxychloroquine Alone or in Combination With Azithromycin for the Prophylaxis or Treatment of COVID-19? Living Practice Points From the American College of Physicians (Version 1) Amir Qaseem, MD, PhD, MHA; Jennifer Yost, RN, PhD; Itziar Etxeandia-Ikobaltzeta, PharmD, PhD; Matthew C. Miller, MD; George M. Abraham, MD, MPH; Adam Jacob Obley, MD; Mary Ann Forciea, MD; Janet A. Jokela, MD, MPH; and Linda L. Humphrey, MD, MPH; for the Scientific Medical Policy Committee of the American College of Physicians*
5. Hydroxychloroquine in patients with mainly mild to moderate coronavirus
disease 2019: open label, randomised controlled trial BMJ 2020; 369 doi: https://doi.org/10.1136/bmj.m1849 (Published 14 May 2020) Cite this as: BMJ 2020;369:m1849
6. Clinical
efficacy of hydroxychloroquine in patients with covid-19 pneumonia who require
oxygen: observational comparative study using routine care data BMJ 2020; 369 doi: https://doi.org/10.1136/bmj.m1844 (Published
14 May 2020)Cite this as: BMJ 2020;369:m1844