quarta-feira, 28 de setembro de 2016

"Prefiro as FARC no Congresso do que causando dor"

Reproduzimos uma entrevista publicada no último dia 26 de setembro de 2016, no caderno Internacional de O Estado de São Paulo, que relata como a colombiana Fabiola Perdomo, mulher de um dos 11 deputados sequestrados e mortos pelas FARC, em 2002, ouviu o pedido de perdão dos guerrilheiro.


Por Fernando Simas

"Prefiro ver as Farc no Congresso, transmitindo suas visões por meio de palavras e debates do que vê-las no campo atirando e causando mais dor." Essa é a opinião de Fabiola Perdomo, mulher de um dos 11 deputados de Valle de Cauca sequestrados pela guerrilha em 2002. Como parte do processo de paz, há duas semanas, as Farc pediram perdão pela primeira vez e assumiram total responsabilidade pela morte dos deputados, ações que levaram Fabíola a ter certeza de que a guerrilha mudou e a decidir fazer campanha pelo "sim" no plebiscito de 2 de outubro para saber se a população ratifica o acordo. 
Em entrevista ao Estado por telefone, Fabíola relembra os cinco anos que lutou pela vida do marido, Juan Carlos Narváez, e como foi ouvir que ele estava morto. A seguir, a entrevista:

A senhora acreditava em um acordo de paz?
Sempre esperei isso. Sou desses colombianos que acreditavam que a única forma de solucionar o conflito interno era por meio de uma negociação política, do diálogo, pois temos certeza de que o que se consegue pela força, só se mantém pela força. Tivemos muitas dúvidas, principalmente nos anos de radicalização das FARC, quando sequestraram meu marido, tínhamos um governo que só via a guerrilha de forma intransigente e possível de combater militarmente. Quando o atual presidente começou a trabalhar nisso (negociações de paz), fiquei muito feliz de ver que poderia haver um caminho diferente. Aí não duvidava de que chegaríamos a uma saída.

Como foi ouvir o pedido de desculpas das FARC?
Muito doloroso, mas antes de nos pedirem perdão pudemos fazer o que queríamos havia muito tempo: transmitir nossa dor, reclamar por todo o mal que nos causaram e mostrar os danos que sofremos. Foi um encontro de mais de 3 horas e, antes de pedirem perdão, nos disseram a verdade, responderam às perguntas que tínhamos. Depois veio o pedido, o clamor por perdão por parte do secretariado das FARC às famílias dos deputados de Valle de Cauca. Foi um momento muito doloroso, de muitas lágrimas, que ficará gravado na nossa memória, mas que também foi de esclarecimento para as vítimas. Perdoar não é apenas perdoar os que fizeram o mal, é nos dar o direito, como vítimas, de tirar dúvidas, nos livrar do rancor, do ressentimento. Hoje posso dizer que estou trabalhando a dor, posso começar a fechar esse capítulo, o que não pude por 14 anos porque não tinha respostas. 

Hoje a senhora pode dizer que finalmente conhece a verdade sobre tudo o que aconteceu?
Posso dizer que 90%. Faltam esclarecer questões que eles (FARC) ainda precisam explicar e, para isso, pediram uma nova reunião em algumas semanas para terem todas as informações. Mas só o fato de ter visto a mudança de atitude de uma guerrilha que deixou de ser arrogante e desumana, que sentiram vergonha diante de nós e suplicaram nosso perdão, para mim já é suficiente.

O que falta ser sanado?
Duas coisas. Nos encontramos com os comandantes do sequestro, mas queremos encontrar quem deu a ordem para disparar os tiros. Para reconstruir a memória de nossos parentes, queremos saber o que ocorreu, como eles viviam. Também pedimos para ter de volta qualquer pertence de nossos maridos que ainda estejam em posse das FARC, como diários, artefatos. Queremos fechar esse capítulo.

Como foi apertar a mão do homem que planejou o sequestro de seu marido?
Decidi fazer isso, principalmente, em homenagem ao meu marido, que foi um grande homem. E fiz isso contando a eles (FARC) quem foi esse homem que mataram, que tiraram de mim. Poder fazer isso foi uma forma de reivindicar o nome do meu marido e mantê-lo na memória de todos, pois quem é mantido na memória nunca morre. Depois das conversas, um padre nos convidou a rezar uma missa e nesse momento tomei a decisão de dar as mãos a Iván Márquez e Catatumbo, me coloquei no meio dos dois, e durante toda a oração eu entreguei as palavras ao meu marido. Todos os pedidos de perdão entreguei a ele, para ele descansar e eu me despedir. Foi doloroso ter a mão dada a quem ordenou a morte de nossos parentes, foi um momento mais do que simbólico, foi um momento de grande nível espiritual, que nos permitiu sentir de verdade o perdão.

A senhora os perdoou depois do encontro?
Acredito que já os havia perdoado, faltava terminar algo que estava inacabado, que é o sofrimento. A dor é inevitável, vou carregar por toda minha vida. Hoje não tenho raiva, ódio, rancor, só uma dor enorme.

Como foi o sequestro de seu marido?
Foi em 2002. Ele era presidente da Assembleia departamental. Naquele dia, 12 deputados chegaram mais cedo para a sessão e estavam trabalhando quando a guerrilha entrou, disfarçada de Exército, dizendo que precisava esvaziar o local porque havia uma bomba. Eles entraram em uma espécie de van, mas não era o Exército. Ficaram em cativeiro por cinco anos e dois meses. Lutamos por cinco anos pela vida deles, por sua liberdade. Minha filha tinha 2 anos quando levaram meu marido. Após cinco anos mataram meu marido, em uma confusão entre eles mesmo, um confronto entre duas frentes. Eles (FARC) assumem toda a responsabilidade, não só porque foram incapazes de protegê-los, mas também porque foi com balas da mesma guerrilha que os mataram.

A senhora recebia notícias de seu marido nesses cinco anos?
Sim. A cada seis meses, nos chegavam provas de sobrevivência. Eram sempre vídeos com cerca de dois minutos para cada deputado falar com a família. Era principalmente para mostrar que estavam vivos. Eles aproveitavam o espaço para nos fazer perguntas, declarar seu amor e, claro, pedir ao governo uma solução.

A senhora se lembra de como recebeu a notícia da morte de seu marido?
Sim. Estava dormindo quando um jornalista me ligou e perguntou 'já viu a notícia de Ancol (uma espécie de agência das FARC)?'. Disse que não e perguntei se havia mais provas de sobrevivência. Então ele me disse 'não, mataram 11 dos 12 deputados'. Eu lhe perguntei 'Juan Carlos está vivo?' e ele me disse que não. Nesse momento senti que meu chão se abria, que tudo estava perdido e os cinco anos de luta haviam sido inúteis. 

Como contou para a sua filha?
Foi doloroso. Me fechei em um banheiro chorando e não sabia que ela estava me escutando. Há pouco ela contou que me escutou dizendo a  parentes por telefone 'mataram Juan, mataram Juan'. Essas foram as palavras que minha filha se lembrará por toda vida.

O que a senhora pensa agora das FARC ingressarem na vida política?
Prefiro ver as FARC no Congresso, transmitindo suas visões por meio de palavras e debates do que vê-las nos campos atirando, causando mais dor, mais sofrimento, deixando mais órfãos e mutilados nesse país. Acho que devemos dar a eles essa oportunidade e merecemos isso como colombianos. O dano que nos causaram é tão grande que estamos dispostos a ceder à justiça em troca de que  não repitam as ações. A não repetição é o melhor incentivo para que as vítimas apoiem esse processo de paz.

Hoje qual é a sensação de fazer campanha pelo sim no plebiscito?
Sentimos que há esperança, que mesmo as pessoas que não acreditavam no processo (de paz) e tinham muitos questionamentos começaram a acreditar, começaram a ver a mudança de atitude das Farc e entender que o processo foi construído milimetricamente, inclui muitos setores do país, desde as vítimas, passando pelos grupos étnicos, setores empresariais e militares. Acredito que seja um acordo sério, responsável e possível. Há uma grande esperança de que esse país mude e possamos virar a página da guerra, do terror, e começar a escrever uma nova página de esperança, perdão, acordo.

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