segunda-feira, 3 de outubro de 2016

A qual poder pertencemos?


Nesse período marcado pela confusão e o descrédito acerca da política, propomos aqui uma síntese de algumas reflexões de Luigi Giussani acerca das relações entre o sentido do humano e a relação com o poder, conteúdo de uma conferência proferida por ele em Pádova (Itália), no ano de 1987, mas ainda hoje de grande atualidade.
Giussani (2000) parte das reflexões propostas pelo filósofo e teólogo Romano Guardini, num livro instigante chamado Il potere [1], em que discute a dimensão inquietante do poder. Segundo Guardini (1963), o poder é um fenômeno propriamente humano que implica a presença de uma energia capaz de modificar, a consciência, a vontade que estabelece metas e a força para atingi-las. Giussani (2000) comenta que Deus é poder, já que Ele goza de todas estas características. Mas como Ele fez o homem à Sua imagem e semelhança, o poder é também dado ao homem e é algo que tem que ver com essa semelhança. O erro, porém, se insinua na medida em que, “na história moderna, o poder voltou-se contra o Transcendente, afirmou-se como autônomo”, fixando-se a si mesmo como referência última. Desse modo, o homem moderno empreendeu o “caminho para sua autodeificação” [2].  O ponto mais agudo desse percurso é o conceito de Estado moderno como realidade absoluta, fonte e origem de todos os direitos. Para ter dignidade o ser humano deve pertencer a ele.
Desse modo, conforme escreveu João Paulo II em Dives in misericordia,
não obstante declarações “humanistas” o homem contemporâneo tem medo de que, com o uso dos meios inventados por este tipo de civilização, cada um dos indivíduos, e também os ambientes, as comunidades, as sociedades e as nações, possam vir a ser vítimas da violência de outros indivíduos, ambientes e sociedades [3].


Além do mais, segundo Giussani (2000), “os meios de comunicação, os instrumentos do poder determinam os limites do pensamento e censuram valores que, de outro modo, poderiam muito bem ser encontrados numa atenta observação sobre si” [4].
As principais consequências desse erro no uso do poder, concebido como autônomo e autodeificante, são:
1. A perda da dignidade da pessoa: “Quando a dignidade do homem não é adequadamente fundamentada, quanto maior o poder, tanto maior o direito de se usar a pessoa como se quer” [5];
2. A idolatria do poder: “tudo quanto se identificava com Deus, agora se identifica com o poder” [6]. Lembrando que “ídolo é a identificação da explicação total do viver com algo que pode ser compreendido pela razão e, por isto, como algo que pode ser dominado, manipulado pelo homem” [7].
Em suma, “eliminando a relação com a Transcendência, o homem perde sua dignidade, e quem tem o poder tem campo livre para intervir segundo aquilo que considera melhor” [8].
Neste momento, Giussani (2000) relembra a frase de Cristo: “Glorifica teu Filho para que teu Filho te glorifique [...]. Tu lhe deste poder sobre toda carne” [9]. Cristo faz esta afirmação movido pela paixão pelo homem:
anunciou o Pai, porque sua paixão pelo homem declarava de forma tão evidente que não é possível salvar o homem (não na eternidade mas no sentido de afirmar sua dignidade, o respeito a ele, o amor a ele, a justeza do serviço a ele), a não ser reconhecendo no próprio homem, em cada homem, o relacionamento com o Pai, o relacionamento com o Transcendente. Isto está na origem da dignidade do indivíduo! (...) É necessário Deus para o homem ser reconhecido [10].


Então, todo poder deve reconhecer-se servidor, deve se colocar a serviço “participando assim da grande condescendência de Deus que, por amor a cada homem, deu-se a si mesmo” [11]. Somente quando em nossa consciência estamos diante de um Outro, nos concebemos diante do Mistério, podemos exercer o poder como serviço, percebendo também “no âmago do empenho, a humildade da nossa própria inadequação, e compreendemos que outros caminhos podem ser pensados e tentados” [12]. O homem se torna responsável ao se conceber como resposta ao Mistério. Sem esta religiosidade, continua Giussani, o homem se torna instrumento do homem. E não se trata apenas do dinamismo do poder das Nações ou das multinacionais, mas também da relação entre homem e mulher, pais e filhos, amigos sobre amigos, etc.
Quando a responsabilidade com Deus falta, o valor do gesto justifica-se não mais em base a uma moral objetiva, mas pelo consenso e a isto é reduzida a moralidade. E o poder ateu, para se estabelecer, reduz as exigências, de modo que “certos aspectos das exigências tornam-se clamorosos, e outros são escondidos”. Assim, “a resposta é determinada pela propaganda”, ou seja, “a resposta está já dentro os termos daquilo que o poder pretende” [13].  
Pelo contrário, segundo Giussani (2000), a unidade não se constrói sobre as exigências e sim sobre as respostas às próprias exigências que acontece através do diálogo, da colaboração, na convivência.
Por fim, Giussani (2000) frisa que “o poder que alguém encontra em suas próprias mãos coincide sempre com um pertencer” [14]: “mesmo se alguém tivesse nas mãos um poder total sobre o mundo, conceberia a si mesmo como pertencente a alguma coisa, por exemplo a um fluxo histórico, naquele momento, afortunado” [15]. Só o pertencer a Deus, dá o poder mais forte:  “o poder da própria dignidade à qual não se renuncia tranquilamente, o poder da coerência com a própria consciência, da limpidez da própria consciência, o poder da humildade de reconhecer os próprios erros” [16].
O pertencer a Cristo e à Igreja, também através dos fenômenos dos carismas, dos movimentos, garante ao homem um lugar de liberdade: “é o lugar de defesa contra o poder, quando este se corrompe, seja ele civil ou eclesiástico” [17]. E a unidade dos cristãos proclamada na sociedade, pode se tornar lugar de exaltação e de defesa do homem e das relações entre os homens.

Notas:
[1] GUARDINI, Romano. Il potere: tentativo di un orientamento. Brescia: Morcelliana, 1963 (original alemão de 1951).
[2] GIUSSANI, Luigi. O eu, o poder, as obras: contribuição de uma experiência. São Paulo: Cidade Nova, 2000, p. 16.
[3] JOÃO PAULO II. Carta Encíclica Dives in misericordia. Vaticano, 30 de novembro de 1980, § 11. Disponível aqui.
[4] GIUSSANI, 2000, p. 19.
[5] GIUSSANI, 2000, p. 20.
[6] GIUSSANI, 2000, p. 21.
[7] GIUSSANI, 2000, p. 22.
[8] GIUSSANI, 2000, p. 21.
[9] Jo 17, 1-2
[10] GIUSSANI, 2000, p. 23.
[11] GIUSSANI, 2000, p. 23.
[12] GIUSSANI, 2000, p. 24.
[13] GIUSSANI, 2000, p. 26.
[14] GIUSSANI, 2000, p. 26.
[15] GIUSSANI, 2000, p. 27.
[16] GIUSSANI, 2000, p. 27.
[17] GIUSSANI, 2000, p. 29.

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