quinta-feira, 5 de abril de 2018

A Doutrina Social da Igreja: o princípio do bem-comum


Nos próximos posts sobre a Doutrina Social da Igreja (DSI), vamos abordar os quatro princípios que orientam a compreensão que a Igreja tem da realidade social do homem, quais sejam: o bem-comum, a personalidade, a subsidiariedade e a solidariedade. Neste post trataremos especificamente do princípio do bem-comum. Antes, porém, iremos abordar brevemente duas questões fundamentais: a articulação entre os princípios e a necessidade de uma ação orientada por eles. Vale lembrar que, diante dos últimos eventos envolvendo a política nacional e diante, sobretudo, da iminência do pleito de 2018, uma reflexão iluminada pela DSI, pode nos oferecer critérios mais precisos no momento da escolha dos governantes que estarão à frente de processos que poderão culminar em importantes transformações políticas, com suas evidentes consequências nos âmbitos social e econômico.
Os quatro princípios referidos estão em evidente articulação uns com os outros, de maneira que não é possível uma compreensão isolada, a não ser pedagogicamente, e tampouco pode-se conceber a hipótese de um princípio se contrapor a outro. Com efeito, é dessa articulação mesma que nasce a possibilidade de uma compreensão mais aprofundada da realidade social e, assim, pensar ações sociais mais coerentes com um "compromisso concreto de vida".
Mas, qual a razão para que nos guiemos por esses princípios no momento de agir?
"Ser pessoas significa assumir responsabilidades. Ninguém pode estar fora da vida social. É através de outros que vivemos e somos responsáveis por eles ao longo da nossa vida. Pelo mandamento do amor a Deus e ao próximo, os cristãos são moralmente ainda mais profundamente obrigados a ajudar os outros, a servir ao bem comum, a assistir cada indivíduo no desenvolvimento de uma vida humanamente digna e proteger grupos e comunidades nos seus direitos" [1].
E do que se está falando, quando se menciona o princípio do bem-comum? Santo Tomás de Aquino, em sua Suma Teológica, afirma taxativamente que "é impossível a alguém ser bom, a não ser que esteja numa correta relação com o bem comum" [2]. Com essa afirmação, somos introduzidos muito adequadamente ao tema e somos ajudados a entender aquilo que, segundo foi definido pelo Concílio Vaticano II, é o bem-comum: "o conjunto das condições da vida social que permitem, tanto aos grupos como a cada um dos seus membros, atingir mais plena e facilmente a própria perfeição" [3]. Seja os indivíduos, sejam os grupos que compõem as sociedades, sejam as sociedades propriamente ditas, todos são chamados a realizar esse projeto de aperfeiçoamento nas condições da vida social. 
"O bem como precisa em primeiro lugar das condições básicas de uma ordem estatal que funcione como é próprio do Estado de direito. Depois deve cuidar da preservação das condições naturais da vida. Dentro deste quadro, há o direito de cada pessoa à alimentação, habitação, saúde, educação e acesso à formação. Deve haver também liberdade de opinião, de reunião e de religião." [4]
Bento XVI, em sua encíclica Caritas in veritate, afirma também que "amar alguém é querer o seu bem e trabalhar eficazmente pelo mesmo. Ao lado do bem individual, existe um bem ligado à vida social das pessoas: o bem comum. É o bem daquele 'nós-todos', formado por indivíduos, famílias e grupos intermédios que se unem em comunidade social" [5]
Uma questão que irremediavelmente emerge quando falamos do bem-comum é a que diz respeito aos bens da terra e à propriedade. Partindo do pressuposto de que Deus criou o mundo para todos e de que a terra produz frutos, por princípio esses frutos devem estar à disposição de todos, para o benefício de todos. É preciso que cada homem tenha respondido seu direito àquilo que é o necessário para a vida e que nada lhe seja retido, "mesmo quando se sabe que há um direito à propriedade e que haverá sempre entre os homens diferenças na propriedade dos bens. Quando alguém tem mais do que o suficiente e existe alguém que não tem o necessário, o que está em causa não é uma questão de caridade, mas sim e sobretudo de justiça" [6]. Isso não quer dizer que a DSI não reconheça o direito à propriedade: "de fato, o ser humano, privado de algo que possa 'dizer seu' e da possibilidade de ganhar com que viver por sua iniciativa, acaba por depender da máquina social e daqueles que a controlam, o que lhe torna muito mais difícil reconhecer a sua dignidade de pessoa e impede o caminho para a constituição de uma autêntica comunidade humana" [7]. Aliás, essa posição adotada pela DSI remonta à Política de Aristóteles, que no século IV a.C. já afirmava: "Onde não há propriedade também não há alegria para dar; aí, ninguém pode ter o gosto de ajudar os seus amigos, os viajantes e os que sofrem nas suas necessidades". O que, porém, a DSI afirma sobre a propriedade privada é que esse direito não deve ser absolutizado.
"Pelo contrário, quem dispõe de bens deve colocá-los ao serviço do bem comum. Isso vale para os bens públicos, como a iluminação das ruas, mas vale também para coisas privadas, como os telefones celulares. Assim, devo deixar que alguém que precise de ajuda se sirva do meu celular para fazer uma chamada de emergência. A propriedade privada só pode ser um instrumento para a melhor administração dos bens da terra. Cada um deve sentir-se responsável por determinadas coisas. Quando todos são responsáveis por tudo, na prática ninguém se sente responsável por nada. A propriedade privada não pode estar acima do bem comum, porque todos os bens devem servir para todos os homens" [8].
Finalmente, é preciso entender que servir-se de sua propriedade privada para o bem comum implica em pensar não apenas nos outros que lhe são contemporâneos, mas nas gerações futuras também. Com isso, entende-se algo daquela articulação entre os princípios da DSI, a que nos referimos no início desse texto, visto que estamos diante da ideia de sustentabilidade, que será objeto de um próximo post.
Como ilustração do que dissemos até aqui e, para encerrar, trazemos um trecho de um artigo publicado no dia 11 de junho de 1932, na G.K.'s Weekly - um semanário fundado em 1925 por Gilbert Keith Chesterton. Nesse artigo, originalmente intitulado "Duas dificuldades", Chesterton, falando da crise social e econômica que afligia a Inglaterra industrializada de então, afirma:
"Bem sabemos que o modo de se sanar as enfermidades de nossa civilização é levarmos a cabo uma real concepção de liberdade, restaurar a dignidade do homem e a independência da família, apropriadamente salvaguardada pela distribuição da propriedade. A riqueza e o poder tornaram-se a posse de uns poucos, o Estado tem mutilado a autoridade da família e o artesão tem sido reduzido ao nível de um servo. Duas dificuldades têm de ser vencidas, porém, antes que se possa aplicar a cura. Uma é que a liberdade não pode ser estabelecida por uma minoria impotente na política; outra, que cada vez mais gentes parecem dispostas a sacrificar sua liberdade e a liberdade de suas famílias por alguma sorte nominal de segurança econômica. [...] A fim de mudarmos as condições em que fomos colocados e em que, provavelmente, seremos colocados, será necessário, portanto, mudarmos as cabeças das pessoas; convencê-las de que a liberdade vale a pena, de que o homem tem uma dignidade para preservar, de que o trabalho com as mãos é honroso e de bom uso para a mente, de que um homem deveria ter uma casa real e protegê-la. A tarefa, ai de nós!, não é fácil. Exige que se argumente, que se escreva; exige sacrifícios pessoais, aborrecimentos ínfimos, pequenos sinais, sem dúvida, de estarmos a progredir. Se nós mesmos, porém, não virmos os resultados, outros verão. E permanece a ser considerada a possibilidade de que o abalo causado por desastres recentes pode ter tornado as pessoas mais receptivas a idéias corretas, ou lhes tenha aclarado na mente aqueles princípios que, conquanto não de todo abandonados, haviam sido parcialmente esquecidos, e aos quais as pessoas se mostraram instintivamente prontas a reagir em tempos de crises. Tantos quantos possam fazê-lo haverão de retornar, agora, para a terra ou para o artesanato, tentarão sustentar a si mesmos e a suas famílias sem dependerem de mestres poderosos e que só sabem olhar para finanças, assegurarão alguma pequena propriedade e submeter-se-ão em fidelidade na medida em que a deverem e na ordem correta. Estes são os pioneiros que devemos assistir, encorajar, imitar." [9]
Por Paulo Roberto de Andrada Pacheco

Notas
[1] CONFERÊNCIA EPISCOPAL AUSTRÍACA. DOCAT Brasil: como agir? São Paulo: Paulus, 2017, p. 93.
[2] I-II, q. 92, a. 1 ad 3.
[3] PAULO VI. Constituição Pastoral Gaudium et spes, sobre a Igreja no mundo atual. 7 dez. 1965, 26.
[4] CONFERÊNCIA EPISCOPAL AUSTRÍACA. DOCAT Brasil: como agir? São Paulo: Paulus, 2017, p. 94.
[5] BENTO XVI. Carta encíclica Caritas in veritate. 29 jun. 2009, 7.
[6] CONFERÊNCIA EPISCOPAL AUSTRÍACA. DOCAT Brasil: como agir? São Paulo: Paulus, 2017, p. 95.
[7] JOÃO PAULO II. Carta encíclica Centesimus Annus. 1 maio 1991, 13.
[8] CONFERÊNCIA EPISCOPAL AUSTRÍACA. DOCAT Brasil: como agir? São Paulo: Paulus, 2017, p. 96 (grifos do autor).
[9] CHESTERTON, Gilbert Keith. Two difficulties. G.K.'s Weekly, 11 jun. 1932. Disponível em: <http://distributistreview.com/two-difficulties/>. Acesso em 05 abr. 2018. (Versão em português, disponível em: <https://www.sociedadechestertonbrasil.org/duas-dificuldades/>)

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