sexta-feira, 31 de agosto de 2018

A amizade vocacional no casamento cristão

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Os amigos verdadeiros são aqueles que se ajudam, um ao outro, a se encontrar consigo mesmo, a descobrir o verdadeiro eu de cada um, a reconhecer os talentos reciprocamente; assim como se ajudam no estudo, no trabalho e na vida. Para tanto, há duas formas estáveis de vida ou duas maneiras de viver a amizade na experiência da Igreja: o casamento cristão e a comunidade de consagrados.
É preciso distinguir o casamento cristão de outros tantos tipos de casamento. E a diferença está exatamente no convite e exortação que Cristo faz ao propor o casamento cristão para que um homem e uma mulher vivam entre si uma amizade preferencial, idealmente indissolúvel, como companhia íntima entre si, para a vida inteira.

O casamento cristão de forma particularíssima em relação a outras culturas e religiões nasce da amizade de um homem com uma mulher chamados a condividir completamente tudo, sua realidade corporal e sua realidade espiritual. Ele não é um contrato social de duas famílias afins, não é a relação familiar de um homem com duas a quatro mulheres que vivem em diferentes casas enquanto o marido passa de uma casa à outra ou dorme ora em uma casa, ora em outra. E não é também um âmbito onde se expressa primordialmente ou se desafoga a nossa sexualidade. Cristo, ao contrário, propõe que o casamento cristão, da mesma forma que se propôs como o Deus que quis se tornar nosso amigo, seja a amizade profunda entre um homem e uma mulher. 
Os artigos anteriores debruçam-se um pouco mais detalhadamente nas características da amizade verdadeira. Os filósofos gregos diziam que a condição para que esta aconteça é que cada um busque o bem, a beleza e a verdade, e no relacionamento com o amigo seja leal e gere confiança; e o cristianismo acrescenta a caridade como condição para a amizade.
Uma exortação, conhecida como Carta a Diogneto, escrita por um cristão anônimo, por volta do ano 120 d.C., respondendo à indagação de um pagão culto, que buscava conhecer melhor a nova religião que revolucionava os valores da época, particularmente os da fraternidade e solidariedade de relacionamento entre os seres humanos, e se espalhava com tanta rapidez pelo Império Romano, exemplifica bem essa característica do cristianismo:
Os cristãos não se distinguem dos demais homens, nem pela terra, nem pela língua, nem pelos costumes. Nem, em parte alguma, habitam cidades peculiares, nem usam alguma língua distinta, nem vivem uma vida de natureza singular. Nem uma doutrina desta natureza deve a sua descoberta à invenção ou conjectura de homens de espírito irrequieto, nem defendem, como alguns, uma doutrina humana. Habitando cidades Gregas e Bárbaras, conforme coube em sorte a cada um, e seguindo os usos e costumes das regiões, no vestuário, no regime alimentar e no resto da vida, revelam unanimemente uma maravilhosa e paradoxal constituição no seu regime de vida político-social. Habitam pátrias próprias, mas como peregrinos: participam de tudo, como cidadãos, e tudo sofrem como estrangeiros. Toda a terra estrangeira é para eles uma pátria e toda a pátria uma terra estrangeira. Casam como todos e geram filhos, mas não abandonam à violência os recém-nascidos. Servem-se da mesma mesa com os outros, mas não do mesmo leito. Encontram-se na carne, mas não vivem segundo a carne. Moram na terra e são regidos pelo céu. Obedecem às leis estabelecidas e superam as leis com as próprias vidas. Amam todos e por todos são perseguidos. Não são reconhecidos, mas são condenados à morte; são condenados à morte e ganham a vida. São pobres, mas enriquecem muita gente; de tudo carecem, mas em tudo abundam. São desonrados, e nas desonras são glorificados; injuriados, são também justificados. Insultados, bendizem; ultrajados, prestam as devidas honras. Fazendo o bem, são punidos como maus; fustigados, alegram-se, como se recebessem a vida. São hostilizados pelos Judeus como estrangeiros; são perseguidos pelos Gregos, e os que os odeiam não sabem dizer a causa do ódio. Numa palavra, o que a alma é no corpo, isso são os cristãos no mundo. A alma está em todos os membros do corpo e os cristãos em todas as cidades do mundo. A alma habita no corpo, não é, contudo, do corpo; também os cristãos, se habitam no mundo, não são do mundo. A alma invisível vela no corpo visível; sabe-se também que os cristãos estão neste mundo, mas a sua religião permanece invisível. A carne odeia a alma, e, apesar de não a ter ofendido em nada, faz-lhe guerra, só porque se lhe opõe a que se entregue aos prazeres; da mesma forma, o mundo odeia os cristãos que não lhe fazem nenhum mal, porque se opõem aos seus prazeres. A alma ama a carne, que a odeia, e os seus membros; também os cristãos amam os que os odeiam. A alma está encerrada no corpo, é todavia ela que sustém o corpo; os cristãos também se encontram retidos no mundo como em cárcere, mas são eles que sustêm o mundo. A alma imortal habita numa tenda mortal; também os cristãos habitam em tendas mortais, esperando a incorrupção nos céus. Provada pela fome e pela sede, a alma vai-se melhorando; também os cristãos, fustigados dia-a-dia, mais se vão multiplicando. Deus pô-los numa tal situação, que lhes não é permitido evadir-se.
Não é difícil compreender, então, que o grande problema para tantos divórcios e separações (mais de 50% na atualidade!) reside no fato que o casal não teve oportunidade ou não foi ajudado a aprender a viver entre si uma verdadeira amizade. Tantos casamentos nascem e se apoiam na paixão, uma experiência que exalta sobretudo nossa corporeidade e instinto, e como todas as realidades corporais, passa e acaba (os cientistas dizem que uma paixão pode durar em média 2 a 3 anos). Estar apaixonado um pelo outro não quer dizer ser amigo. A paixão nasce instintivamente, sem esforço, enquanto a amizade exige convivência, confiança, fé no outro, e para isso é necessário muito mais tempo e uma convivência adequada. A paixão faz parte da vida, é boa, e foi criada por Deus ao criar o ser humano, mas não é suficiente para o casamento cristão. Pois este exige a dedicada construção de uma amizade verdadeira entre os dois.
Ana Lydia Sawaya

Nota
[*] Carta a Diogneto.

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