terça-feira, 7 de agosto de 2018

A amizade como caminho para a realização de si


O que é o amor ou a caridade (...) senão o amor do Bem? O amor, porém, supõe alguém que ame e alguém que seja amado com amor. Assim encontramos três realidades: o que ama, o que é amado e o próprio amor. O que é, portanto, o amor se não uma certa vida que enlaça dois seres, ou tenta enlaçar, a saber: o que ama e o que é amado? [1]
Que ninguém diga: "Não sei o que amar". Que ele ame o seu irmão e estará amando o próprio Amor. Pois assim conhecerá melhor o amor com que ama do que o irmão a quem ama. Pode desse modo ter de Deus um conhecimento maior do que o do irmão. Sim, Deus torna-se mais conhecido, porque lhe está mais presente. Deus lhe será mais conhecido porque lhe é mais íntimo. Mais conhecido porque mais seguro. Ao abraçar a Deus que é Amor, abraças a Deus por amor. (...) Quanto mais livres estivermos do cancro do orgulho, tanto mais cheios estaremos de amor. Ora, de que está cheio quem está cheio de amor, senão de Deus mesmo? (...). "Deus é amor: aquele que permanece no amor, permanece em Deus e Deus permanece nele" (1Jo 4,16). (...) E o que ama o amor, senão o que nós mesmos amamos com amor? Esse algo é nosso irmão. [2]
O amor não é afetividade no sentido psicológico, mas um ato salvífico, universal e gratuito. Enquanto a amizade é um relacionamento privado, recíproco, paritário, seletivo, fruitivo (que provoca deleite e prazer) e é facultativo; o amor é um dever que diz respeito a todos, é gratuito, obrigatório e oblativo (que se oferece). O amor é sempre querer e agir para o bem do outro, mesmo que ele seja nosso inimigo. É fazer tudo para o bem do outro. A amizade e o amor são dois âmbitos distintos, mas não opostos, que incluem um ao outro [3].

Quando se começa a sentir a plenitude do amor de Deus, então se inicia a amar o próximo no sentido espiritual. Este, de fato, é o amor do qual falam as escrituras. A amizade segundo a carne acaba muito facilmente pelo mínimo pretexto, porque falta de um vínculo espiritual (Diadoco de Fotica).
Habitam em cada pessoa duas realidades, a nossa corporeidade e sentimento (realidade mutável, efêmera e visível) e o nosso espírito (realidade eterna, imutável e invisível, onde reside o amor e a liberdade). Estas duas dimensões da nossa pessoa precisam ser vividas de forma unitária e equilibrada, sem que uma se sobrepuja à outra ou apague a outra, pois não somos só corpo e instinto nem só seres espirituais. A filosofia e cultura modernas tentaram apagar a realidade espiritual e hipervalorizaram a corporeidade e o instinto. Os antigos filósofos e Padres da Igreja nos ensinam que isso é um erro de visão, uma redução da dignidade da pessoa, que desconsidera a sua natureza humana integral e que, por isso, gera infelicidade.  Ao passo que, se respeitarmos, educarmos e aprendermos a viver, cada vez mais plenamente no caminho da vida estas duas dimensões, faremos a experiência da amizade verdadeira. Dizia sobre isso Cícero, escritor latino (106-43 a.C.): “A amizade é um acordo na benevolência e caridade sobre as coisas humanas e divinas”
Por isso, a amizade é o caminho para a realização plena de si e o método através do qual Deus restabeleceu sua relação conosco em Cristo. O que mais viveu e desejou Cristo senão ser amigo de cada pessoa que encontrava? Exatamente por querer ser nosso amigo, nunca Se impôs como Deus. E Ele podia!
Quando Jesus encontra João e André, os primeiros discípulos que se aproximam dEle, o que lhes propõe? Estar com Ele, viver uma amizade com Ele. Assim quando eles perguntam: "Mestre onde moras?" Ele responde: "Vem e vê". E eles vão à casa dEle e ficam com Ele o resto do dia.  Encontrar este amigo tão especial muda tudo na vida deles. Depois desse encontro passam a estar o tempo todo juntos e a condividirem tudo.
A vida cristã é autêntica quando permite, alimenta e gera verdadeiras amizades, que se transformam, aos poucos, quando se tornam estáveis, em comunidades eclesiais e em Igreja. Assim cada cristão é convidado a viver na sua intimidade uma experiência de amizade que nasce com Cristo, se alimenta de Cristo e desse amor que se infunde através do seu Espírito sempre presente no mundo. “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estarei com eles”. É essa força de união sobre-humana com este inigualável Amigo que permite e promove o encontro com outras pessoas e gera a comunidade cristã.
A amizade íntima, quando se torna estável dentro da comunidade cristã, gera duas formas de vida, e se torna amizade vocacional: o casamento cristão e a comunidade de consagrados. É nesses dois âmbitos que o cristão é chamado a viver, no dia a dia, esta experiência: “tinham um coração só e uma alma só fundidos no fogo da caridade” [5].

Ana Lydia Sawaya

Notas:
[1] AGOSTINHO. A Trindade, Livro VIII, 14, p. 284.
[2] AGOSTINHO. A Trindade, Livro VIII, 12, pp. 280ss.
[3] SANT'AGOSTINO. L’Amicizia. Roma: Città Nuova, 2012
[4] Mt 20, 18.
[5] AGOSTINHO. Contra Fausto, 5, 9.

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