Assim como a amizade no casamento cristão (confira post do dia 31/08/2018) nasce do compartilhar a vocação comum de construir uma família, gerar vida, cuidar da vida de todos os membros da família e, portanto, também um do outro, a amizade na vida consagrada nasce da vocação comum de se entregar totalmente a Cristo numa relação esponsal. Pois a vocação à vida consagrada se não se tornar, afetivamente, no relacionamento com Cristo e no amor à sua Igreja, uma relação esponsal, não será verdadeira vocação, não gerará vida, mas sepultura para o coração. A energia do coração morrerá e tornar-se-á duro como pedra. E, antes ou depois, este coração poderá fugir do relacionamento com Cristo e buscará fora, desesperado, todo tipo de compensação.
Assim, a amizade na vida consagrada nasce a partir da sintonia que existe entre dois ou mais corações que entraram no mundo espiritual. E esta sintonia cresce à medida que estes corações conhecem progressivamente o mundo do inefável, que não pode ser explicado com os lábios se não grosseiramente e muito imperfeitamente. E quem entrar no mundo espiritual descobrirá que este é mais real do que o mundo das aparências visíveis. A expressão da amizade na vida consagrada, portanto, é uma comunhão de corações não, antes, de corpos. Por isso, essa comunhão será tanto mais forte e mais profunda, viva e deliciosa (“Como é bom e como é suave os irmãos viverem juntos como irmãos” [1]), quanto mais cada um viver uma verdadeira solidão, necessária para o encontro com Cristo.
O que é a vida de solidão a que o consagrado é chamado? O grande monge contemporâneo Thomas Merton explica que a solidão é necessária para todos, pois é nesse espaço que acontece o nosso encontro com o nosso verdadeiro eu interior.
Todos necessitam de certa dose de silencio e solidão, para permitir-lhes ouvir, ao menos ocasionalmente, a voz interior profunda do seu verdadeiro ‘eu’. Quando essa voz não é ouvida, quando o ser humano não consegue atingir a paz espiritual que vem do fato de estarmos em perfeita união com o nosso ser verdadeiro, a vida se torna desgraçada e exaustiva. Pois o ser humano não pode por muito tempo ser feliz se não se mantém em contato com as fontes da vida espiritual, ocultas nas profundezas da sua alma. Se vive constantemente alheio ao que em si possui de mais íntimo, exilado da própria morada interior, impossibilitado de se encontrar com a solidão espiritual, deixa de ser uma pessoa. Não vive mais como um ser humano. Nem mesmo é um animal sadio. Torna-se uma espécie de autômato; funciona sem alegria porque perdeu toda a espontaneidade. Não é mais movido por dentro, mas apenas do exterior. Não toma as próprias decisões, mas deixa que outros o façam. Não age sobre o mundo exterior, consente que esse haja sobre ele. É empurrado, atravessando a vida por meio de uma série de choques com forças externas. Sua vida não é mais a de um ser humano, mas a de uma bola de bilhar passiva, de um ser sem finalidade e sem nenhuma correspondência profunda e válida com a realidade. [2]
Se é assim para todas as pessoas, quanto mais para aqueles que são chamados por Cristo para viver com Ele e como Ele. Don Luigi Giussani dizia que a pessoa consagrada é a porta-bandeira que mostra e conduz a sociedade a olhar para Cristo. Onde Ele habita se não no mundo espiritual, que não está fora deste mundo, mas é a sua verdade e sua essência? Por isso, a amizade na vida consagrada nasce da entrega verdadeira que cada um faz a Cristo no silêncio e na solidão. Se alimenta do relacionamento sincero e diário com o Senhor que chamou a cada um dos amigos.
O que os amigos consagrados têm para compartilhar entre si e se alegrar mutuamente se não a profunda alegria, leveza, paz, força, coragem, esperança que nasce do viver um relacionamento esponsal com Cristo?
Eu, prisioneiro do Senhor, imploro que vivais uma vida digna da vossa vocação. Suportai-vos uns aos outros caridosamente, com completo desapego, gentileza e paciência. Façam tudo o que for possível para preservar a unidade de espírito pelo vínculo da paz que vos une. Há um só Corpo, um só Espírito, assim como vós fostes chamados juntos na mesma esperança. [3]
Ana Lydia Sawaya
Notas:
[1] Sl 133.
[2] MERTON, Thomas. A vida Silenciosa. Petrópolis: Vozes, 1964, pp. 177-178.
[3] Ef 4, 1-5.
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