quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

A Importância da Liturgia para as comunidades leigas - 1



A inevitabilidade da experiência religiosa

Eu acho que o homem é religioso como é bípede. Tem Deus no começo e no fim. No meio fica a gente esperneando. Se espernear de acordo, isto é, com sinceridade, esbarra NELE, não tem conversa. Adelia Prado – Solte os cachorros1
Como diz Adelia Padro, não é possível separar o ser humano da experiência religiosa, porque até o ateísmo, do ponto de vista gnosiológico, é uma experiência que pertence ao âmbito da experiência religiosa (Arendt, 2013)2.
Bonaccorso no seu livro Celebrar a Salvação (1996)3 diz que “a existência humana se suspende entre o real e o imaginário, a posse e o desejo, a conquista e a esperança, o passado e o futuro, a decisão e a dúvida; nunca pertence a um só lado, nem pode ser planificada segundo um modelo que elimine completamente a ambiguidade”, uma vez que a sua dinâmica é polar.
O ser humano tem necessidade para viver e não morrer desesperado, de ter sempre à mão a possibilidade de abrir uma janela sob o horizonte que está fora e além da sua vida quotidiana, onde pode ver o transcendente, isto é, aquilo que é bom, belo e verdadeiro para ele. Ninguém acorda de manhã e diz: ‘tudo aquilo que desejo verdadeiramente hoje é sofrer e ver coisas feias’. Se isto fosse verdadeiro, a depressão não existiria. Dostoevskij diz justamente no seu livro Os Demônios4:
Minha imortalidade é indispensável, porque Deus certamente não desejará cometer uma injustiça e extinguir completamente o fogo do amor por ele, aceso em meu coração. E o que é mais precioso que o amor? O amor é superior à existência, é a coroação da existência, e como é possível que a existência não esteja sujeita a ele? Se comecei a amá-lo e fiquei feliz com meu amor, como é possível que Ele me destrua e minha alegria se transforme em nada? Se Deus existe, eu também sou imortal! [...] Toda a lei da existência humana reside apenas no fato de que o homem sempre pode se curvar diante do infinitamente grande. Se os homens fossem privados do infinitamente grande, não poderiam mais viver e morreriam em desespero. O infinito e o imenso são igualmente indispensáveis ao homem, tanto quanto este pequeno planeta em que ele habita.

Como exprimir a experiência religiosa uma vez que esta é inevitável para viver?

Se a experiência religiosa é uma constante em todas as culturas de todos os tempos, assim como uma certa experiência religiosa não pode ser excluída nem mesmo do ateísmo, é fundamental para nós cristãos a necessidade de expressar essa dimensão da vida de um modo adequado. Assim, a pergunta para nós católicos hoje e que se sucede à essa constatação é: “como” viver de modo persuasivo a experiência religiosa, uma vez que o modus operandi da liturgia, fortemente fixado no Concílio de Trento, se distanciou cada mais da realidade das sociedades modernas?
O distanciamento progressivo dos cristãos da língua latina, uma maior compreensão da importância da consciência individual e do respeito por ela, uma maior escolaridade e o reconhecimento do direito a essa que todo ser humano tem, a consequente disseminação da alfabetização e do direito de todas as pessoas de ler livros (particularmente a Bíblia), o crescente e imperativo desejo de relações humanas mais igualitárias e sinodais, o crescimento das grandes cidades e uma nova compreensão da importância e contribuição da dimensão feminina para a sociedade contemporânea. Tudo isto levou a uma mudança na forma de como vemos o ser humano, como vivemos as relações humanas na sociedade e, consequentemente, na forma de lidar com o Totalmente Outro.

A experiência religiosa como expressão litúrgica

Bonaccorso (1996) afirma que a experiência religiosa é incindível da celebração litúrgica. Explica em seu livro O Rito e o Outro (2001)5 que:
a inteligência humana age e se move em muitas direções, mas inevitavelmente permanece ancorada a uma origem distante no tempo, a uma ação primordial quase inatingível, a uma linguagem profunda cujas palavras são entendidas apenas no silêncio mais intenso. A fé, entendida como a "substância das coisas que se espera e prova daquelas que não se veem" (Heb 11,1), é uma coisa só com essa linguagem, com esse tempo e com essa ação. Acima de tudo, é atenta para encontrar, nos dias atuais da história, os tempos, as linguagens e as ações que possam anunciar as coisas esperadas e não vistas.
Portanto, o problema de como celebrar é muito importante. O grande liturgista S. Marsili afirmava que "a liturgia é uma coisa viva, mas frágil; morre nas mãos daqueles que não sabem tratar dela."
O mistério celebrado é sempre celebrado em uma comunidade. A comunidade celebrante é parte integrante do mistério que se celebra; pois a palavra de Deus cria a comunidade; fazendo-se carne, entra na comunidade; e se relaciona com a comunidade (Bonaccorso, 1996). "A liturgia é, portanto, a própria fonte da vida comunitária, uma vez que é a síntese original da relação fundadora" (Grillo, 2019)6.
Mas há uma pré-condição para cada celebração cristã, como explica o nº 9 do Sacrosantum Concilium: "Antes que os homens possam se aproximar da liturgia, eles devem ser chamados para a fé e se converter: 'Como eles poderiam invocar aquele em quem eles não acreditam ...'". E assim voltamos ao problema de como celebrar, porque é evidente que a profundidade da compreensão da experiência da fé e do conhecimento da história da salvação será decisiva na forma de celebrar; bem como a cultura, a percepção da beleza e o bem que cada comunidade vive.

Notas:
1. A. PRADO. Solte os cachorros, Coleção Sabiá, Lisboa, 2003.
2. H. ARENDT. Religione e Política, Feltrinelli Editore, Roma, 2013.
3. G. BONACCORSO. Celebrare la Salvezza, Lineamenti di liturgia, Edizioni Messaggero, Padova, 1996.
4. F. DOSTOEVSKIJ. Os Demônios.
5. G. BONACCORSO. Il Rito e L’Altro, La liturgia come tempo, linguaggio e azione. Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano, 2001.
6. A. GRILLO. Dispensa del Corso Introduzione alla Liturgia STBI, Gennaio 2019.

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Brasil: a riqueza de uma origem católica a preservar

Uma das principais características da forma católica de compreender a realidade é o conceito de razão. A mentalidade moderna reduziu a razão humana a um conjunto de categorias pré-definidas e estabelecidas ‘de modo lógico’ nas quais a realidade é obrigada a entrar: aquilo que não entra nessas categorias é definido como irracional, ou não racional. Para a tradição católica, pelo contrário, a razão é um olho escancarado para a realidade, “que bebe a realidade com avidez, grava os seus nexos, as suas implicações, discorre sobre ela, corre dentro do real, de uma coisa à outra, conservando-as todas dentro da memória, e tende a abraçar tudo”[1]. Assim a realidade, na sua imponderabilidade e complexidade, sempre precede e determina a maneira de a considerarmos, e não são as categorias lógicas pré-definidas pela nossa razão que permitem avaliar e medir a realidade de forma adequada.
O Brasil é um país onde a tradição católica, e esse modo de ver as coisas, teve uma influência determinante. Esta razão aberta e não pré-definida, que segue e obedece ao real, pode ser encontrada com facilidade em nossa história. Por exemplo, na época do Brasil colonial, a presença da Igreja, notadamente dos missionários da Companhia de Jesus, num cenário complexo e conflitivo marcado pela violência colonizadora e escravagista, levou-os a se colocarem como agentes mediadores entre atores e interesses contrastantes e em muitos casos opostos; possibilitando criar diálogo e convivência onde em principio seria impossível, e permitindo a criação de um corpo social mestiço aonde de outra forma somente poderia haver negações, contraposições e separações. Suassuna referia-se a esta unidade como uma “harmonia entendida à moda barroca”, como “composição de contrários”. A receptividade às dissonâncias inerente ao universo cultural brasileiro seria, segundo o escritor, uma “característica popular, brasileira e barroca, de união harmônica de termos antinômicos”, raiz esta da unidade profunda que perpassa todas as obras brasileiras de arte e literatura, ao longo do tempo; e que permite ao intelectual brasileiro “dar ouvido a todas as vozes”. [2]   
João Câmara Cascudo afirma que no Brasil há mescla entre tradições populares de diferentes etnias. Ao abordar a gênese da canção popular brasileira, formula uma hipótese sobre a modalidade em que esse amalgama aconteceu:
"No primeiro século da colonização, portugueses, índios e negros acharam-se em frente um dos outros, e diante de uma natureza esplendida, em luta, tendo por armas o obuz, a flecha e a enxada, e por lenitivos as saudades da terra natal. (...), todos deviam cantar, porque todos tinham saudade (....). Cada um devia cantar as canções de seu País. De todas elas amalgamadas e fundidas em um só molde – a língua portuguesa, a língua do vencedor, é que se formaram nos séculos seguintes os nossos cantos populares" [3]
A expressão “porosidade de identidades” qualifica bem a peculiaridade do processo de formação da cultura brasileira, onde diversas posições culturais presentes “não se perdem misturando-se, mas também não se opõem entre si, nem se aproximam por simples justaposição ou paralelismo, mas se tornam porosas umas às outras, enriquecendo-se criativamente, reinterpretando-se mutuamente no interior do seu próprio ser, sem deixar de se afirmar em suas diferenças” [4].
É preciso frisar que a abertura à diversidade do real não significa relativização de tudo. A busca pela verdade demanda a presença de diferentes perspectivas acerca da realidade que em sua complexidade somente pode ser apreendida pela limitação humana num contexto intersubjetivo. A confusão entre relativismo e abertura à alteridade deve ser questionada, pois trata-se de posições ultimamente opostas. Ao relativizar a verdade, o relativismo moderno nega a utilidade e a eficácia do dialogo intersubjetivo. A posição católica é agudamente descrita numa encíclica genial Caritas in veritate cujo conteúdo vale a pena retomar:
“A verdade há de ser procurada, encontrada e expressa na « economia » da caridade, mas esta por sua vez há de ser compreendida, avaliada e praticada sob a luz da verdade. Deste modo teremos não apenas prestado um serviço à caridade, iluminada pela verdade, mas também contribuído para acreditar a verdade, mostrando o seu poder de autenticação e persuasão na vida social concreta. Facto este que se deve ter bem em conta hoje, num contexto social e cultural que relativiza a verdade, aparecendo muitas vezes negligente se não mesmo refratário à mesma. [...] a verdade (ao contrário) é « lógos » que cria « diá-logos » e, consequentemente, comunicação e comunhão. A verdade, fazendo sair os homens das opiniões e sensações subjetivas, permite-lhes ultrapassar determinações culturais e históricas para se encontrarem na avaliação do valor e substância das coisas. A verdade abre e une as inteligências no logos do amor: tal é o anúncio e o testemunho cristão da caridade. No atual contexto social e cultural, em que aparece generalizada a tendência de relativizar a verdade, viver a caridade na verdade leva a compreender que a adesão aos valores do cristianismo é um elemento útil e mesmo indispensável para a construção duma boa sociedade e dum verdadeiro desenvolvimento humano integral. Um cristianismo de caridade sem verdade pode ser facilmente confundido com uma reserva de bons sentimentos, úteis para a convivência social mas marginais. Deste modo, deixaria de haver verdadeira e propriamente lugar para Deus no mundo. Sem a verdade, a caridade acaba confinada num âmbito restrito e carecido de relações; fica excluída dos projetos e processos de construção dum desenvolvimento humano de alcance universal, no diálogo entre o saber e a realização prática.”
A retomada desta posição na vida concreta dos cristãos brasileiros é urgente e necessária. Pois na história da evangelização do Brasil, foi justamente uma posição moldada por essa aliança entre caridade e verdade que possibilitou aos missionários promover mediações e integrações. No Brasil de hoje, a perda dessa capacidade de diálogo em que verdade e caridade se complementam é um fato totalmente novo e preocupante. Nas redes sociais polarizações, expressas pelos rótulos de “esquerdistas” e “fascistas”, pensamento em branco-e-preto que divide a realidade artificiosamente entre bons e maus e assume tons verbais agressivos e desrespeitosos, são fruto de posturas de preconceito reativo. Pois o preconceito ocorre “quando o homem se coloca diante da realidade proposta tendo a reação como critério de juízo e não apenas como condicionamento a ser superado numa abertura de pergunta”; ao passo que “é a superação do preconceito que torna possível alcançar um significado que exceda aquilo que você já sabe (ou crê saber)” (Giussani, pp. 145-146). A partir do preconceito, se desenvolve a ideologia, “uma construção teórico-prática baseada sobre um aspecto, ainda que verdadeiro, da realidade, mas considerado, de certa forma, unilateral e tendenciosamente absoluto por uma filosofia ou projeto político” (p. 147). A ideologia é construída com base numa sugestão que a própria experiencia fornece, mas é tomada depois como pretexto para uma “operação determinada por preocupações estranhas ou exorbitantes” (p. 147). A complexidade da realidade é assim reduzida a uma simplificação grotesca.
O Brasil, país multiétnico onde convivem populações de raízes étnicas e culturais entre si muito diferentes, pela sua própria essência, não conseguiria ficar se pé e sustentar-se, sem o convívio, a tolerância e o diálogo entre as diferenças. A polarização poderia leva-lo a um processo de autodestruição...Por isto, retomando ainda a encíclica Caritas in veritate:
“O desenvolvimento tem necessidade de cristãos com os braços levantados para Deus em atitude de oração, cristãos movidos pela consciência de que o amor cheio de verdade, do qual procede o desenvolvimento autêntico, não o produzimos nós, mas é-nos dado. Por isso, inclusive nos momentos mais difíceis e complexos, além de reagir conscientemente devemos sobretudo referir-nos ao seu amor. O desenvolvimento implica atenção à vida espiritual, uma séria consideração das experiências de confiança em Deus, de fraternidade espiritual em Cristo, de entrega à providência e à misericórdia divina, de amor e de perdão, de renúncia a si mesmo, de acolhimento do próximo, de justiça e de paz.”[5]
Fora desta posição, mesmo usando palavras cristãs, somente se produzirão rupturas e reduções ideológicas que levarão a uma crescente violência e intolerância. Mas sobretudo, perde a nação brasileira sua característica mais peculiar!


Referências:

[1]Giussani, L. Senso religioso, Brasília, Universa, 2009, p. 17

[2] Suassuna. A. (2003). Farsa da Boa Preguiça. Rio de Janeiro, José Olympio Editora (Original, 1964). Prólogo.

[3] Cascudo, L. C. (2002/1999). Superstição no Brasil. São Paulo: Global. p. 280.

[4] Sanchis, P. (2012). O “som Brasil”: uma tessitura sincrética? Em: Massimi, M.; Jacó-Vilela, A.M.; Dantas, C.; Facchinetti, C.; Mahfoud, M; P. Sanchis. Psicologia: Cultura e História: perspectivas em diálogo (pp. 15-54). Rio de Janeiro: Outras Letras Editora. P. 45.


quinta-feira, 26 de setembro de 2019

A consciência e a Universidade

As histórias conectadas de Henry Newmann, Josef Ratzinger e Sophie Scholl


O ministro da Educação Abraham Weintraub afirmou numa viagem ao Nordeste, que as universidades do Nordeste não deveriam oferecer cursos de sociologia e filosofia. Para ele, as unidades de ensino deveriam priorizar o ensino de agronomia. E noutra ocasião disse que o governo estuda descentralizar investimento em faculdades de filosofia e sociologia (humanas) por elas não terem retorno imediato e não gerarem renda e bem-estar para as famílias brasileiras (26 de abril de 2019). A visão veiculada pelo ministro parece focar a função da Universidade na formação profissional, mas desconsidera uma das mais importantes missões da Universidade, função pela qual são essenciais disciplinas como filosofia, história, literatura, sociologia, etc..: a formação das consciências.
A formação da consciência é o centro da concepção de universidade de um grande intelectual católico inglês H. Newman (1801-1890), fundador da Universidade católica da Irlanda, (que entre outros será canonizado no dia 13 de outubro pelo Papa Francisco), expressa em conferências proferidas em 1851 e reunidas num livro chamado “A ideia de Universidade”.
Segundo a tese do livro de Newman, houve um gradual deslizamento da concepção da Universidade: da universitas scientiarum (conjunto universal de todo o conhecimento) medieval chegou-se à universidade do século XXI, tida como provedora do mercado de trabalho. Newman, ao pressentir o problema buscou recuperar e atualizar a concepção original de Universidade, formulando-a como um lugar onde se ensina um conhecimento universal e onde se forma a consciência das pessoas segundo um ideal de liberdade. A Universidade é uma comunidade composta por professores, pesquisadores e alunos que, embora estudem ciências diferentes, se beneficiam desse convívio: um habitat comum, familiar. Por isto, a Universidade medieval era chamada também de alma mater, ou seja, “mãe carinhosa”. Nesse ambiente, o aluno vive inserido em uma tradição intelectual e forma uma posição humana que durará toda a vida, cujos atributos são elencados por Newman no Quinto Discurso contido no livro: a liberdade, a equidade, a calma, a moderação e a sabedoria. Assim, a posse de um conhecimento deve proporcionar uma experiência de “satisfação” para a pessoa, pelo fato de forma-la para a fruição da verdade, do bem, da beleza, da justiça. Por isso, segundo Newman, no âmbito universitário deve-se falar não em instrução, mas em educação O conhecimento que mais propriamente serve de fundamento para a satisfação dessas exigências da razão humana é o filosófico; sendo este indispensável componente da formação universitária. No saber filosófico, ocorre aquele processo de aprendizagem pelo qual o intelecto, ao invés de ser formado em um propósito particular ou acidental, como, por exemplo, as habilidades e competências necessárias para dada profissão, ofício, estudo ou ciência específicos, é dirigido para a apreensão do seu objeto próprio, ou seja, a compreensão das coisas assim como elas são. No Discurso n XXX, Newman afirma que esse tipo de estudo “remove a obscuridade do olho da mente; fortalece e aperfeiçoa sua visão; capacitá-la a olhar fora no mundo diretamente adiante, firme e verdadeiramente; dá à mente clareza, exatidão, precisão; capacitá-la a usar as palavras corretamente, a entender o que cada uma diz, a conceber com justeza o que pensa, a abstrair, comparar, analisar, dividir, definir, e raciocinar, corretamente”. Em suma, aptidões essas, todas importantes para a vida cotidiana das pessoas e das sociedades. Além do mais, continua Newman, a universidade é o lugar do pluralismo, “o lugar onde mil escolas fazem contribuições; onde o intelecto pode em segurança vaguear e especular, certo de encontrar seu igual em alguma atividade antagonista, e seu juiz no tribunal da verdade. É um lugar onde a investigação é empurrada para frente, e as descobertas verificadas e aperfeiçoadas, e a precipitação se torna inócua, e o erro é exposto, pela colisão de mente com mente, e conhecimento com conhecimento”. É o lugar “onde o professor se torna eloquente, e é um missionário e um pregador, exibindo sua ciência em sua mais completa e vitoriosa forma, derramando-a com o zelo do entusiasmo, e acendendo o seu próprio amor por ela no peito de seu ouvinte”.
Desse modo, segundo Newman, a Universidade contribui para aumentar o nível intelectual médio da sociedade. Ela inspira a mentalidade, forma o gosto, propõe princípios, contribui para um melhor exercício do poder político e proporciona o intercâmbio pessoal e a reflexão sobre as opiniões e juízos.
Esse potencial da vida universitária enfatizado por Newman ecoou no coração de alguns jovens universitários seus leitores na Alemanha à época do nazismo.
O jovem Joseph Ratzinger passou pelos horrores da Alemanha nazista e viu os efeitos devastadores do nacional-socialismo nas consciências de seus concidadãos alemães. Quando entrou no seminário, em 1946, a catástrofe alemã era evidente: como isso poderia ter acontecido?  Perguntavam-se entre si professores e alunos. Felizmente, eles tinham os escritos de Newman, pois suas obras mais importantes haviam sido traduzidas para o alemão entre as guerras. Relembrando esse período em 1990, o cardeal Ratzinger observou: "A doutrina de Newman sobre a consciência (...) atraiu a todos nós com seu fascínio. (...) Tínhamos experimentado a reivindicação de um partido totalitário, que foi concebido como a plenitude da história e que negava a consciência do indivíduo. Hermann Göring havia dito sobre seu chefe: "Não tenho consciência! Minha consciência é Adolf Hitler ”. A imensa ruína do homem resultante disso estava diante de nossos olhos. Portanto, era um fato libertador e essencial para nós sabermos que o "nós" da Igreja não se baseava na eliminação da consciência, mas poderia desenvolver-se apenas a partir da consciência».
Outros jovens universitários a ele contemporâneos, Hans e Sophie Scholl, foram tocados pela posição de Newton através das aulas de um docente, filósofo e historiador da cultura Theodor Haecker. Haecker traduziu sete obras de Newman e, em várias ocasiões, leu trechos deles durante as reuniões ilegais secretas convocadas por Hans Scholl para seus amigos, reunidos num movimento chamado de Rosa Branca. Além disto esse professor levou aqueles jovens a ler a literatura e filosofia alemã, e comparar com o discurso do Hitler, para verificar se efetivamente este expressara o espírito de seu povo. E aqueles jovens verificaram então a falácia do nazismo. Sophie Scholl foi uma das iniciadoras do movimento de resistência Rosa Branca, ao lado do irmão Hans, três anos mais velho, e de outros universitários e intelectuais. A partir do verão de 1942, o grupo passou a conclamar a população, em panfletos que surgiam em diferentes cidades, à resistência pacífica contra o regime de Hitler. A 18 de fevereiro de 1943, Sophie, Hans e seu amigo Christoph Probst distribuíam um novo panfleto — o sexto de sua autoria — pelos corredores da Universidade de Munique, onde estudavam, quando chamaram a atenção de um zelador. Presos, os três jovens foram julgados e condenados à morte quatro dias mais tarde. Apenas três horas após o pronunciamento da sentença, morreram decapitados. Sophie tinha 21 anos ao ser executada,
Quando o noivo de Sophie, um jovem chamado Fritz Hartnagel, foi convocado no exercito da Frente Oriental em 1942, o presente de despedida de Sophie foram dois volumes dos sermões de Newman. Dentre eles, um dos sermões "The Witness of Conscience" onde ele explica que a consciência é um eco da voz de Deus que ilumina para cada pessoa a verdade moral em circunstâncias precisas. Cada um de nós, diz Newman, tem o dever de obedecer a uma consciência correta antes e além de todas as outras considerações. Perguntada pela Gestapo em fevereiro de 1942, Sophie disse que foi sua consciência cristã que a forçou a se opor ao regime nazista de maneira não violenta. Como seu irmão, ele encontrou em Newman e em outros autores cristãos os recursos e a inspiração para entender o significado do mundo demoníaco no qual ele se viu imerso.
É provável que as palavras finais do quarto folheto da Rosa Branca tenham sido escritas sob a influência de Newman: "Não vamos ficar calados, somos a voz da sua má consciência". (1)
As histórias desses jovens universitários mostram a importância dos estudos de matérias como filosofia, literatura, etc..para a formação da consciência das novas gerações. O que teria sido deles, se suas consciências não tivessem recebido esses alimentos?
Sem o ensino da filosofia, da literatura e das Humanidades (hoje ameaçadas de serem considerados saberes de subcategoria e retirados do ensino universitário), será mais fácil nos tornarmos meros instrumentos nas mãos dos poderosos e dos totalitarismos que ainda hoje ameaçam nosso mundo buscando nos reduzir a meros executores de ordens e compradores/consumidores de produtos.

Referências

Newman, J. H. (1973), The Idea of a University. Oxford: Oxford University Press.
(1) Um docente do Magdalen College School, em Oxford, Paul Shrimpton, relata a história num livro lançado recentemente Conscience Before Conformity: Hans e Sophie Scholl.

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Uma esperança que não morre





  
Por Luigi Giussani

Wolfgang Amadeus Mozart
Concerto para piano e orquestra n. 20, K 466 1


Estuda-se bem aquela música que entra como por osmose na nossa alma e não aquela que se estuda com a batuta (dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, dó). Que caminho infinito, que caminho longo, que trajeto sem fim, cheio de pedras, deve percorrer 99% das pessoas do mundo para chegar à ternura da inflexão musical do viver – e, assim, da percepção de si e dos relacionamentos –, da qual o Concerto n. 20 para piano, de Mozart, é o maior exemplo que temos na história.

Mas de onde nasce esse sentimento de si e da existência tão ardente, vivo e, ao mesmo tempo, tão comovido?

Experimentalmente, é mesmo verdade que a atividade original do homem é reconhecer e constatar. Não há nada mais intenso do que a atividade de alguém que, com os olhos arregalados, olha um quadro ou um rosto que lhe agrada; não há nada mais entusiasmante, mais concentrado, mais vibrante, quer dizer, mais ativo. Creio que a criação artística não seja mais do que isso. Aliás, a criação artística – a meu ver – depende disso, é uma trabalhosa resultante disso, porque a moralidade é “tender para”. “Tender para” quer dizer afirmar um Tu, é a suprema gratuidade que faz abraçar tudo.

Reduzir-se a ouvir a proibição ou a respeitar uma lei sem tender a surpreender o pressentimento da posse de algo maior é como o solfejo. Quando, ao invés, se vislumbra o segundo nível, como neste concerto de Mozart… é uma coisa do outro mundo. Você se torna melhor. Assim, mesmo na dramaticidade, a certeza e a letícia, a alegria e a paz constituem o sentimento predominante que o homem tem de si.

A Beleza é o nexo entre o presente e o eterno, por isso o presente é sinal do eterno, é o início do eterno, é experiência inicial do eterno, por isso o gosto da vida começa a palpitar com certa nota inconfundível, a nota do permanente: a justiça, o amor. Em uma palavra: a exigência de satisfação total, a exigência de realização do eu (é somente por causa de uma presença alegre que o nosso coração se torna, por sua vez, alegre: por nossa conta, a felicidade não pode florescer em nós). É esta a tensão interior que vibra na melodia tão fascinante, tão comovente, tão humana e tão divina, porque canta uma esperança que não morre.


Nota : [1]  CHIERICI, Sandro; GIAMPAOLO, Silvia (orgs.). Spirto gentil: um invito all’ascolto dela grande musica guidati da Luigi Giussani. Milão: BUR Rizzoli, 2011, p.63-64. Traduzido sem revisão dos autores por Fábio Henrique Viana.

domingo, 1 de setembro de 2019

A questão da autonomia universitária



Por que se está discutindo a questão da autonomia universitária? A Constituição de 1988 estabeleceu a autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial das universidades dessa forma:
a autonomia da universidade é assim o poder que possui esta entidade de estabelecer normas e regulamentos que são o ordenamento vital da própria instituição, dentro da esfera da competência atribuída pelo Estado, e que este repute como lícitos e jurídicos.

Diante da crise estrutural atual, o plano Futura-se do MEC propõe formas de autonomia financeira que, todavia, poderiam acarretar a perda da autonomia didático-científica, por exemplo. Com efeito, o Futura-se ao propor que os recursos privados sejam a principal fonte de financiamento das instituições federais de ensino superior, em especial das universidades, substituindo, em grande medida, o financiamento estatal que hoje sustenta essas instituições, poderia eliminar a liberdade das universidades, submetendo-as a objetivos particulares das entidades financiadoras. Além disto, haveria o risco de destruir áreas que são aparentemente menos operativas, pois o Futura-se fomentaria a captação de recursos próprios, algo muito difícil para áreas do conhecimento que aparentemente não teriam produtos de imediata utilização social, como as áreas de humanas. Por isso, as formas de financiamento precisam ser desenhadas de modo a respeitar a autonomia universitária e a evitar que financiadores possíveis, por desconhecimento, prejudiquem as universidades.

O problema - autonomia versus financiamento - já foi enfrentado positivamente pelas melhores universidades de outros países. Em muitos desses casos, os principais financiadores são associações de ex-alunos que dão bolsas para até 70-80% dos alunos e financiam projetos de pesquisas nas áreas em que eles se formaram, ou seja, em todas. Não se concebe em muitas das maiores universidades do mundo, como Cambridge por exemplo, que alguém se forme e não dê um pouco de dinheiro regularmente para a universidade que o formou. Há inúmeros ex-alunos que doam até suas heranças para as universidades que os formaram.

Desde a origem das universidades, a contribuição de financiadores privados sempre esteve presente. A percepção que financiadores externos estrangulariam as áreas de humanas poderia ser parcial na medida em que se implementar grande quantidade e diversificação de financiadores potenciais como os ex-alunos. É errado pensar que os financiadores seriam apenas algumas grandes empresas com interesses específicos e lucrativos. Não é isso que acontece lá fora.

Mas há um grande passo a ser dado no Brasil para que isso aconteça, e ele é urgente: é preciso que as pessoas ricas do Brasil, que são justamente as que cursaram, ou tem filhos que cursaram as nossas melhores universidades, reconheçam o valor dessas instituições para si e para o país. É preciso que essas famílias reconheçam que ajudar o financiamento das universidades com cotas e doação dos ex-alunos, significa, em última análise, um benefício que retornará para si mesmas e para seus filhos. É isso que acontece fora do Brasil. É preciso que essas famílias que tem curso superior reconheçam o quanto receberam das universidades que as formaram, ou formaram seus filhos. É preciso mudar a mentalidade de que o dinheiro ganho deve ser gasto exclusivamente consigo mesmas e seus filhos.

O Estadão de dia 30 de agosto de 2019 dedica uma inteira noticiando a iniciativa da UNESP (Universidade do Estado de São Paulo) de criar o Programa Parceiro UNESP para possibilitar a arrecadação de doações de particulares e de empresas para o sustento da instituição1. O reitor relata que o ponto de partida da iniciativa foi a decisão de um empresário, Alexandre Leite Lopes que quis fazer sua doação quando levou a filha,  aprovada no vestibular da Unesp deste ano, para conhecer o campus. Ao ver nesse local  faixas dizendo que os funcionários e docentes da instituição estavam com o décimo terceiro salário atrasado, “ficou muito impactado por aquela situação”, e mandou uma carta para o diretor do curso falando da intenção de doar.

Na mesma página um artigo do Professor Marcus Kisil (USP) descreve as grandes dificuldades criadas para este tipo de iniciativas pelo sistema burocrático brasileiro e pela falta de uma “cultura da doação”. E comenta “O recurso não precisa ser canalizado a uma estrutura do Estado, mas sim servir à res publica desde a ação de cidadãos, como iniciativas de organizações da sociedade civil que atuem em setores específicos. Essas ações, muitas vezes, vêm em apoio à definição e implementação de políticas públicas essenciais, como é a criação de creches e melhoria da educação básica”.  Segundo o docente, também houve o empecilho de “uma interpretação limitada da Constituição de 1988”. Diante do postulado de que “direito do cidadão é dever do Estado”, “normalmente se faz uma leitura ideológica de que o Estado deve ser o único provedor de saúde, educação, cultura. Neste sentido, a cidadania não floresce e os serviços passam a ser uma exigência a ser cumprida pelo Estado. Essa ação reivindicatória leva muitas vezes a uma demora nas ações necessárias, com o deterioro da situação original”.

A iniciativa evidencia a importância de um horizonte cultural, social e político que supere a mentalidade individualista e egoísta que caracterizou historicamente (salvo poucas exceções) as elites brasileiras, sendo ela o empecilho maior para o crescimento do País e para a diminuição das desigualdades sociais, tornando indispensável a intervenção exclusiva do Estado. Da mudança dessa mentalidade depende também o futuro das universidades.

No sentido que foi assinalado por Kisil, a falta de visão dos brasileiros mais ricos de que a universidade é um bem tão importante para todos, a ponto de receber muitas fontes diferentes de financiamento é acompanhada por leis que dificultam e até impedem que pessoas físicas doem dinheiro, e recebam incentivos fiscais para isso. Não se trata de privatizar as universidades públicas. Não é disso que estamos falando. Mas de multiplicar as fontes de financiamento mantendo estas universidades públicas, e mantendo a gratuidade. E não só. Esse financiamento deveria possibilitar a oferta de bolsas para subsistência e a moradia para os alunos mais carentes. Para tanto será importante também a mudança da legislação e conforme assinala Kisil, “uma maior atenção dos poderes públicos federais e também dos governos estaduais, para que percebam o papel do recurso privado em apoiar as causas públicas.

A fuga do problema incentivando a emigração das jovens gerações para países com futuros aparentemente mais promissores é, na verdade, expressão de uma cegueira irracional quanto ao futuro do Brasil; assim como da situação presente no mundo. Por isso, um dos grandes desafios do Brasil é a educação humana e política da população para que não se aliene da vida civil do país.

É neste sentido também que se faz necessário o engajamento da Igreja (sobretudo através dos leigos cristãos) em voltar a se propor como sujeito educativo no âmbito universitário; de modo a, com sua presença, educar alunos, docentes e famílias dos discentes a reconhecer e cuidar do valor da universidade na sociedade brasileira. Mais uma vez retomando a origem da Universidade na Idade Média, precisamos lembrar que seu próprio nome deriva de uma visão de mundo inspirada pelo cristianismo, já que o sentido de universitas vem a coincidir com a etimologia grega do termo “católico” (universal) e já que a própria Igreja medieval estimulou com todas as suas forças o nascimento e o crescimento das universidades nas diversas cidades da Europa.


Somente então, pela presença de sujeitos (pessoas e comunidades) atuantes, que assumam uma responsabilidade pelos rumos da Universidade, a autonomia financeira das universidades proposta pelo projeto Futura-se, ou pelo programa Parceiro UNESP, se tornaria algo viável. Sem sujeitos políticos reais do tipo que descrevemos torna-se apenas um escape do poder político quanto a sua responsabilidade; e um caminho para um ulterior sucateamento e destruição da universidade pública.


sábado, 24 de agosto de 2019

Rezar pela Amazônia e defender a Vida no Planeta!



"A criação geme e sofre as dores de parto" (Rm 8,22).

As notícias e imagens dos devastadores incêndios que destroem a floresta amazônica causaram perplexidade, tristeza e indignação diante de um crime ambiental de proporções alarmantes, com consequências imprevisíveis e danos que podem tornar-se irreparáveis e irreversíveis.

Tais fatos e sua repercussão mundial envergonham o Brasil e os brasileiros. Chefes de Estado e governantes de diversas nações expressaram sua preocupação e veemente reprovação. Cidadãos no Brasil e no exterior se unem em manifestações populares para mostrar que a defesa da vida humana e do bem comum passa pelo cuidado com o Planeta Terra, que o Papa Francisco denomina na Encíclica Laudato Si' de "casa comum".

Sim, o Planeta é a "casa comum" e a preservação da floresta amazônica, com suas árvores, seus animais e sua rica biodiversidade não diz respeito só ao Brasil, mas é direito e dever de toda a humanidade. O que está em jogo é o oxigênio que se respira, a água a que todos têm direito, o ciclo natural das chuvas, a preservação das espécies e a sustentabilidade da vida no Planeta.
Denunciar a devastação e ocupar-se da preservação da Amazônia não representa ameaça à soberania; pelo contrário, o que a ameaça é a ganância, a insensatez e o retrocesso que os brasileiros estão assistindo nos dias atuais, especialmente corroborado pelas lamentáveis declarações de autoridades governamentais.

É momento de rezar, tomar consciência, assumir um processo interior de conversão, resgatar os verdadeiros valores, isto é, um modo de agir sóbrio e coerente. É a hora de exercer a cidadania por meio de atitudes nobres, firmes e corajosas, na vida pessoal e social, que comprovem uma real e eficaz mudança de comportamento em favor da vida, da justiça, da paz e de um mundo ecologicamente sustentável.

Nota : trecho da carta enviada por Dom Pedro Luiz Stringhini, bispo de Mogi das Cruzes à sua diocese, em 23 de agosto de 2019

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Em defesa da Universidade


Estão em pauta várias questões ligadas à gestão, à autonomia e à identidade das universidades públicas. A proposta pelo MEC do Programa Futura-se prevê a autonomia financeira das universidades através de captação de dinheiro por meio de parcerias público-privadas, cessão de prédios, lotes e até a criação de fundos para autonomia financeira. Tem sido feitas várias tentativas dos poderes políticos federais e estaduais de ingerência nas decisões e na gestão da vida universitária, tais como a escolha de reitores e gestores. A falta de repasse das verbas do Ministério da Ciência para o Centro Nacional de Pesquisa (CNPq) paralisou a concessão de bolsas e auxílios para pesquisa e eventos científicos.
Ligada a esses fatos, se difundiu no Brasil uma visão negativa das universidades públicas, veiculada principalmente pela ideologia de Olavo de Carvalho e seus seguidores. Carvalho crítica abusivamente as universidades, pois para ele seriam meros lugares de aparelhamento ideológico, especialmente do PT. Eis alguns exemplos de suas postagens:
Universidades, no Brasil, são, em primeiro lugar, pontos de distribuição de drogas. Em segundo, locais de suruba. A propaganda comunopetista fica só em terceiro lugar. (11 de março de 2019).
As universidades brasileiras não têm mais conserto. Têm de ser, como já estão sendo passadas para trás pelos cursos particulares mais sérios. Meus próprios alunos já fundaram alguns desses cursos, que juntos vão formando aos poucos a ÚNICA universidade brasileira digna desse nome. Continuem fazendo o bom trabalho e daqui a dez anos um diploma da USP, da PUC ou da UNICAMP -- exceto em algumas raras áreas técnicas -- só servirá como garantia de desemprego. (6 junho 2016)
O Brasil não tem tradição universitária. Ele tem, ao contrário, uma tradição das faculdades isoladas, que, por não poderem exercer esta função mais elevada, acabavam virando centros de agitação política. O tempo que os estudantes perderam fazendo passeatas e revoluções foi tempo roubado à formação da elite intelectual nacional. A desvantagem que o Brasil leva no cenário internacional ocorre simplesmente pelo despreparo e pela burrice da sua elite política. Em vez de estudar, ficavam fazendo passeata. Hoje, temos como resultado esse Congresso de analfabetos. (2001, entrevista).
Olavo de Carvalho vive fora do Brasil e pode dar-se ao luxo de desprezar o espaço universitário público que se constituiu no País; mas o mesmo não podem fazer os milhões de brasileiros que vivem no País. Todas as informações acima são falsas e tendenciosas, com uma intenção muito forte de chamar a atenção sobre si e sobre as suas plataformas político-partidárias. Basta ver os números de publicações científicas crescentes, o número de doutores formados e atuantes, e tantos outros indicadores. Do trabalho desenvolvido nas universidades de tantas formas e maneiras, todos os brasileiros tem-se beneficiado. Como por exemplo as tecnologias de produção para etanol desenvolvidas no Brasil pela primeira vez. O melhoramento na produção de frutas, verduras, carne animal, etc. O desenvolvimento de vacinas, e novos medicamentos para inúmeras doenças. A grande contribuição que têm dado para o mundo a literatura, a arte, e a música brasileira, assim como a pesquisa nessas áreas. Mesmo os que pensam que Carvalho diz a verdade vão ao posto de saúde tomar vacinas, usam recursos da informática desenvolvidos aqui, buscam alimentos mais saudáveis desenvolvidos pelos centros de pesquisa em agricultura, se beneficiam de soluções desenvolvidas contra a degradação urbana e ambiental, gosam dos benefícios dos avanços em direitos humanos e para superação da pobreza desenvolvidos no Brasil e na vanguarda de muitos países (só lembrar as políticas de saúde desenvolvidas para o combate à disseminação da AIDS). Tudo isto tem a ver com universidade e o trabalho desenvolvido nela.
O desmonte da Universidade, portanto, implicaria um retrocesso do País cujas graves consequências para as futuras gerações seriam incalculáveis. Apesar da instituição universitária como tal remontar no Ocidente aos inícios do primeiro milênio, a universidade pública brasileira é uma instituição com um passado relativamente curto. Desde a expulsão da Companhia de Jesus e a extinção de sua rede de ensino no território nacional, até a criação das primeiras faculdades em 1827 e das primeiras universidades no início do século XX, os filhos da elite brasileira eram enviados para estudar no exterior. Dessa forma, grande parte da população só tinha acesso a formas de ensino doméstico, ou era autodidata, sem estrutura, sem financiamento e sem condições de oferecer oportunidades de transformação social. A consolidação da universidade brasileira e o seu fortalecimento cientifico no plano nacional e internacional pelo apoio de instituições de auxílio a pesquisa e capacitação docente (CNPq, Fapesp, Fapemig, Faperj, Capes, etc) é, portanto, uma grande conquista da história recente do País.
A acusação de Carvalho se aproveita da grave crise estrutural que avassala essas instituições no momento atual. E, ao invés de oferecer caminhos, opta pela via da destruição oportunista. Houve evidentemente erros de planejamento quanto à expansão das universidades públicas e na capacitação docente, houve excesso de gastos em função também de tentativas de aparelhamento ideológico ou por inaptidão na gestão; e há uma gravíssima crise econômica no País que evidentemente atinge também a comunidade universitária. Mas muitos professores estão trabalhando para encontrar soluções. Em 16 de agosto de 2019, o Reitor da Unesp Sandro Valentini afirmou:
Nos últimos anos, além da crise conjuntural que o País atravessa, também começou a se implantar nas universidades uma crise estrutural (..). Precisamos trabalhar juntos para encontrar uma solução para essa crise estrutural de financiamento, mas ao invés de tentar entender o problema e contribuir para a solução, muitos setores da sociedade preferiram construir uma narrativa negativa contra a autonomia de gestão e contra as universidades
Assim como o reitor da Unicamp, Marcelo Knobel reforçou a necessidade de:
mostrar de maneira mais efetiva, para os políticos e para a sociedade, o que a universidade de fato é e o que ela representa. Nós geramos empresas, nós atendemos a população em nossos hospitais, criamos cultura, inovação, oportunidades, isso sem contar a formação de recursos humanos que ocupam os cargos de liderança desse País.

Por isso tudo, nós reiteramos a todos os que amam o Brasil e que desejam ver a melhoria da vida nesta nação que acompanhem essas preocupações construtivas emitidas pelos reitores e rechacem as tentativas incendiárias de desqualificação e destruição do que foi construído pelas universidades brasileiras, por quem não vive aqui e escolheu outro país.



quarta-feira, 29 de maio de 2019

O martírio dos cristãos no mundo: uma realidade quase cotidiana....


Uma série de atentados com explosões em igrejas católicas durante a celebração das missas que celebravam a Páscoa e em hotéis de luxo no Sri Lanka deixou 207 mortos e mais de 450 feridos no domingo de Páscoa 21 de abril. Em decorrência dessa situação, para evitar outros ataques, não foram rezadas missas nas igrejas, ao longo de algumas semanas.
Uma onda de ataques nas últimas semanas contra os cristãos em Burkina Faso chegaram a matar fieis e sacerdote na celebração da missa dominical: duas igrejas foram queimadas e dez cristãos (incluindo um padre e um pastor protestante) foram mortos. Depois, disso, na diocese de Ouahigouya, no dia 18 de maio, um grupo de terroristas islâmicos matou quatro fiéis em Singa, no município de Zimtenga, enquanto retornavam de uma procissão mariana. Em decorrência dessa situação, o bispo escreveu aos católicos: "Não levem sinais religiosos em público"
A irmã Ines Nieves Sancho, religiosa de 77 anos, foi encontrada morta na manhã de segunda-feira no vilarejo de Nola, perto de Berberati, na República Centro-Africana, onde ela ensinava as meninas a costurar e tentar melhorar sua vida. Seu corpo foi terrivelmente mutilado: a freira foi de fato decapitada.
O bispo de Ouahigouy, Monsenhor Kientega, pede aos seus fieis e a todos nós que se unam nessa oração:
"Que o Senhor, Príncipe da Paz e vencedor do Mal, conceda a paz ao nosso país. Que seja nossa força e nosso apoio, nossa esperança neste tempo de provação. Que ele conceda o descanso eterno aos nossos mártires e que o sangue derramado seja uma fonte de paz de fecundidade espiritual ”.
Se os atentados do dia de Páscoa foram pouco noticiados pelos jornais, muito menos os demais fatos aqui relatados. Mas o martírio dos cristãos no mundo está se tornando um acontecimento diário de nossos tempos.

domingo, 19 de maio de 2019

Não há maior amor do que dar a vida pelos amigos



Nestes tempos em que também no Brasil se debate o uso das armas de fogo e estamos ainda profundamente marcados pela tragédia ocorrida na escola de Suzano, vale a pena tomar conhecimento de algo que ocorreu há poucas semanas numa cidade americana.
Devon Erickson, de 18 anos, e Maya McKinney, de 16 anos foram presos pelo tiroteio ocorrido no inicio de maio no STEM School Highlands Ranch em Denver, Colorado, resultando em um morto e oito feridos. Há vinte anos, em Columbine, uma escola longe apenas alguns quilômetros, 12 estudantes e um professor foram massacrados por dois meninos armados que conseguiram ferir outros 24 antes de cometer suicídio.
Poderia ter ocorrido um massacre análogo, desta vez também, mas não aconteceu: porque em Denver algo, grande e inesperado, aconteceu: um menino, Kendrick Castillo, ao ver seus colegas Devon e Maya entrar na sala de aula com uma arma, jogou-se sobre eles, protegendo seus companheiros e assim permitindo que se escondessem atrás das mesas ou fugissem. Kendrick morreu dando a vida para salvar seus amigos.
Qual foi a mola que levou Kendrick a se atirar, armado apenas com carne e osso, contra a arma apontada por dois garotos como ele?
Pergunta-se a jornalista Caterina Gioielli: “Quando acontecem fatos como este, tentamos entender o que aconteceu, qual é a mola que acionou o dedo dos dois garotos no gatilho de uma arma; mas se cada momento de um menino é sua história e sua liberdade, qual foi a primavera que levou um menino a dar sua vida, um significado entre o momento e o todo?” (1).
Na noite após o tiroteio, numa vigília com mais de mil jovens presentes, Brendan Bialy, que junto com outro estudante ajudou Kendrick a confrontar os atiradores, comentou: "Quem entrou no edifício com um plano maligno e com absoluta covardia, tentando nos pegar de surpresa e com armas, perdeu de qualquer maneira. Eles tiveram que se render a pessoas boas”.
A atitude de Kendrick, que o levou a dar a vida pelos outros, não foi surpresa para quem o conhecia. Conta o pai de Kendrick, John Castillo, numa entrevista ao Denver Post: "Eu gostaria que ele tivesse corrido para se esconder mas não era do estilo dele: proteger as pessoas, ajudá-las, isso estava em suas cordas". Doce, simpático, engraçado, alegre: estas são apenas algumas das palavras usadas por professores e colegas de classe para descrever esse menino que estava prestes a se formar em tecnologia e robótica: "se alguém chorava ou estava com problemas, aqui estava Kendrick correndo para falar com ele”.
Mas onde Kendrick aprendeu esse modo tão verdadeiro de viver a experiência humana? Ele participava ativamente da vida da comunidade cristã de sua cidade: era coroinha na igreja, ajudava na cozinha e servia refeições durante os encontros das escolas católicas. Os amigos o viram carregando pesadas caixas de frutas, organizando almoços para os idosos, recitando o papel de Jesus na hora da religião. Certa vez, o pai ao conversar com Kendrick sobre a possibilidade de enfrentar uma pessoa armada, lhe disse "você não deve fazer atos heroicos". Kendrick sorriu para o pai dizendo que não pensaria duas vezes antes de salvar alguém em perigo: "você me criou assim, você me fez uma boa pessoa". Ele não realizou um ato heroico, mas viveu de modo heroico o cotidiano, de modo que o cotidiano se tornasse heroico.
Nesse período, no Brasil, os cidadãos dentre os quais muitos cristãos e católicos, discutem a pertinência da legislação que amplia dotar mais amplamente a população de armas para sua defesa e se dividem em facções que assumem posturas que mais parecem ditadas pela ideologia ou pelo medo, do que pela razoabilidade.
É importante que reconheçamos, através do testemunho de Kendrick, a indicação da posição autenticamente cristã diante do problema. Não se trata de pensar em defender-se e de agir determinados pelo medo da violência, mas de afirmar o valor absoluto da vida humana assim como o próprio Cristo fez: “dando a vida para seus amigos”, dando a vida para o mundo, quando for necessário. No testemunho de Kendrick, não há nenhuma dúvida a respeito, mas somente brilha a certeza de uma RAZÃO maior.

(1) Tempi, 11 maggio 2019 https://www.tempi.it