Por que se está
discutindo a questão da autonomia universitária? A Constituição de 1988
estabeleceu a autonomia didático-científica, administrativa e de gestão
financeira e patrimonial das universidades dessa forma:
a
autonomia da universidade é assim o poder que possui esta entidade de
estabelecer normas e regulamentos que são o ordenamento vital da própria
instituição, dentro da esfera da competência atribuída pelo Estado, e que este
repute como lícitos e jurídicos.
Diante da crise estrutural atual, o plano Futura-se do MEC propõe formas de autonomia financeira que,
todavia, poderiam acarretar a perda da autonomia didático-científica, por
exemplo. Com efeito, o Futura-se ao propor que os recursos privados sejam a principal fonte de
financiamento das instituições federais de ensino superior, em especial das
universidades, substituindo, em grande medida, o financiamento estatal que hoje
sustenta essas instituições, poderia eliminar a liberdade das universidades, submetendo-as
a objetivos particulares das entidades financiadoras. Além disto, haveria o risco de destruir áreas que
são aparentemente menos operativas, pois o Futura-se fomentaria a captação de recursos próprios, algo
muito difícil para áreas do conhecimento que aparentemente não teriam produtos
de imediata utilização social, como as áreas de humanas. Por
isso, as formas de financiamento precisam ser desenhadas de modo a respeitar a
autonomia universitária e a evitar que financiadores possíveis, por desconhecimento,
prejudiquem as universidades.
O problema - autonomia versus financiamento - já foi enfrentado positivamente pelas
melhores universidades de outros países. Em muitos desses casos, os principais
financiadores são associações de ex-alunos que dão bolsas para até 70-80% dos
alunos e financiam projetos de pesquisas nas áreas em que eles se formaram, ou
seja, em todas. Não se concebe em muitas das maiores universidades do mundo,
como Cambridge por exemplo, que alguém se forme e não dê um pouco de dinheiro
regularmente para a universidade que o formou. Há inúmeros ex-alunos que doam até
suas heranças para as universidades que os formaram.
Desde a origem das universidades, a contribuição de
financiadores privados sempre esteve presente. A percepção que financiadores
externos estrangulariam as áreas de humanas poderia ser parcial na medida em
que se implementar grande quantidade e diversificação de financiadores
potenciais como os ex-alunos. É errado pensar que os financiadores seriam apenas
algumas grandes empresas com interesses específicos e lucrativos. Não é isso
que acontece lá fora.
Mas há um grande passo a ser dado no Brasil para
que isso aconteça, e ele é urgente: é preciso que as pessoas ricas do Brasil,
que são justamente as que cursaram, ou tem filhos que cursaram as nossas
melhores universidades, reconheçam o valor dessas instituições para si e para o
país. É preciso que essas famílias reconheçam que ajudar o financiamento das
universidades com cotas e doação dos ex-alunos, significa, em última análise, um
benefício que retornará para si mesmas e para seus filhos. É isso que acontece
fora do Brasil. É preciso que essas famílias que tem curso superior reconheçam
o quanto receberam das universidades que as formaram, ou formaram seus filhos.
É preciso mudar a mentalidade de que o dinheiro ganho deve ser gasto exclusivamente
consigo mesmas e seus filhos.
O Estadão de dia 30 de
agosto de 2019 dedica uma inteira noticiando a iniciativa da UNESP
(Universidade do Estado de São Paulo) de criar o Programa Parceiro UNESP para
possibilitar a arrecadação de doações de particulares e de empresas para o
sustento da instituição1. O reitor relata que o ponto de partida da
iniciativa foi a decisão de um empresário, Alexandre Leite
Lopes que quis fazer sua doação quando levou a filha, aprovada no vestibular da Unesp deste ano,
para conhecer o campus. Ao ver nesse local faixas dizendo que os funcionários e docentes
da instituição estavam com o décimo terceiro salário atrasado, “ficou muito
impactado por aquela situação”, e mandou uma carta para o diretor do curso
falando da intenção de doar.
Na
mesma página um artigo do Professor Marcus Kisil (USP) descreve as grandes
dificuldades criadas para este tipo de iniciativas pelo sistema burocrático
brasileiro e pela falta de uma “cultura da doação”. E comenta “O recurso não precisa ser canalizado a uma estrutura do Estado,
mas sim servir à res publica desde a ação de cidadãos, como iniciativas de
organizações da sociedade civil que atuem em setores específicos. Essas ações,
muitas vezes, vêm em apoio à definição e implementação de políticas públicas
essenciais, como é a criação de creches e melhoria da educação básica”. Segundo o docente, também houve o empecilho
de “uma interpretação limitada da Constituição de 1988”. Diante do postulado de
que “direito do cidadão é dever do Estado”, “normalmente se faz uma leitura
ideológica de que o Estado deve ser o único provedor de saúde, educação,
cultura. Neste sentido, a cidadania não floresce e os serviços passam a ser uma
exigência a ser cumprida pelo Estado. Essa ação reivindicatória leva muitas
vezes a uma demora nas ações necessárias, com o deterioro da situação original”.
A iniciativa evidencia a importância de um
horizonte cultural, social e político que supere a mentalidade individualista e
egoísta que caracterizou historicamente (salvo poucas exceções) as elites
brasileiras, sendo ela o empecilho maior para o crescimento do País e para a
diminuição das desigualdades sociais, tornando indispensável a intervenção exclusiva
do Estado. Da mudança dessa mentalidade depende também o futuro das universidades.
No sentido que foi assinalado por Kisil, a falta de
visão dos brasileiros mais ricos de que a universidade é um bem tão importante
para todos, a ponto de receber muitas fontes diferentes de financiamento é
acompanhada por leis que dificultam e até impedem que pessoas físicas doem
dinheiro, e recebam incentivos fiscais para isso. Não se trata de privatizar as
universidades públicas. Não é disso que estamos falando. Mas de multiplicar as
fontes de financiamento mantendo estas universidades públicas, e mantendo a
gratuidade. E não só. Esse financiamento deveria possibilitar a oferta de bolsas
para subsistência e a moradia para os alunos mais carentes. Para tanto será
importante também a mudança da legislação e conforme assinala Kisil, “uma maior atenção dos poderes públicos federais e também dos
governos estaduais, para que percebam o papel do recurso privado em apoiar as
causas públicas.”
A fuga do problema incentivando a emigração das
jovens gerações para países com futuros aparentemente mais promissores é, na
verdade, expressão de uma cegueira irracional quanto ao futuro do Brasil; assim
como da situação presente no mundo. Por isso, um dos grandes desafios do Brasil
é a educação humana e política da população para que não se aliene da vida
civil do país.
É neste sentido também que se faz necessário o
engajamento da Igreja (sobretudo através dos leigos cristãos) em voltar a se
propor como sujeito educativo no âmbito universitário; de modo a, com sua
presença, educar alunos, docentes e famílias dos discentes a reconhecer e
cuidar do valor da universidade na sociedade brasileira. Mais uma vez retomando
a origem da Universidade na Idade Média, precisamos lembrar que seu próprio
nome deriva de uma visão de mundo inspirada pelo cristianismo, já que o sentido
de universitas vem a coincidir com a etimologia grega do termo
“católico” (universal) e já que a própria Igreja medieval estimulou com todas
as suas forças o nascimento e o crescimento das universidades nas diversas
cidades da Europa.
Somente então, pela presença de sujeitos (pessoas e
comunidades) atuantes, que assumam uma responsabilidade pelos rumos da
Universidade, a autonomia financeira das universidades proposta pelo projeto Futura-se, ou pelo programa Parceiro UNESP, se tornaria algo
viável. Sem sujeitos políticos reais do tipo que descrevemos torna-se apenas um
escape do poder político quanto a sua responsabilidade; e um caminho para um
ulterior sucateamento e destruição da universidade pública.
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