A fé é uma questão do olhar
Foto Fabrizio
Arigossi
(arquivo
Centro de Recuperação e Educação Nutricional -CREN)
Ana
Na manhã de Domingo de Ramos
enquanto me lembrava de Jesus que entrava triunfante em Jerusalém aclamado pela
multidão que gritava “Hosana ao Filho de Davi” e revivia a cena, experimentei
subitamente um enorme desgosto pela humanidade. Com um grande mal estar pensava:
como os seres humanos são detestáveis. Que hipocrisia absurda! Que
superficialidade bestial! Dali a 6 dias, os mesmos, gritariam mandados pelos
chefões: ‘Crucifica-o! Crucifica-o!’
Preencheu-me também, uma grande
perplexidade pela própria ação de Jesus. Por que ele se submetia a essa farsa
se sabia que tudo era um sopro de vento sem consistência e firmeza, pois dali a
pouco mudariam completamente de posição e cuspiriam no seu rosto? Por que
aceitou participar dessa espécie de farsa? Não era evidente que o rei que a
multidão aclamava era postiço e não era o que ele queria ser de verdade?
Enquanto era tomada por esses
pensamentos e emoções e sentia um mal estar angustiante veio-me à mente um
pensamento: ‘você está olhando para o lugar errado’. Compreendi que se
permanecesse com o olhar fixo nas pessoas que gritavam, não podia entender o
gesto de Jesus e que eu devia voltar o olhar para ele. Quando fiz isso comecei
a “ver” finalmente. A entrada em Jerusalém para ele era uma passagem
fundamental e necessária. Era inclusive uma passagem entrevista pelos profetas
nas escrituras antigas. Havia algo importantíssimo a transmitir a todos e a
deixar como parte final do seu anúncio enquanto ainda na terra: Ele precisava mostrar
que era um rei humilde e manso montado num burrinho (e não transportado num
trono como os outros reis do seu tempo). Ele precisava que todos vissem e que o
resto do mundo se lembrasse através desse episódio, que ele era sim rei, mas
manso e humilde montado no burrinho como qualquer pastor ou camponês quando
entrava na cidade. Jesus vai até o fim para demonstrar sua realeza antes de
morrer. Sobretudo no encontro com Pilatos quando este lhe pergunta: ‘você é
rei?’ E ele diz: ‘tu o dizes, mas o meu reino não é deste mundo, por isso não
será um exército de homens a me defender’.
Este pequeno episódio reflete bem
o que a tradição da igreja diz sobre o que é a fé; e mostra o dinamismo da fé. A
fé é o que acontece em nós quando fixamos o olhar em Jesus. Ela depende de onde
olharmos. Por isso, é tão importante o dizer de Isaías quando afirma ‘fecha os
olhos para não ver o mal’. A fé é fruto de uma experiência que precisa se repetir
frequentemente até chegar a uma convicção que cresce sempre mais, e que depende
de onde fixamos o nosso olhar. Se olharmos frequentemente para Jesus e observarmos
atentamente o que ele diz, como ele se move e os episódios da sua vida,
“entenderemos”, teremos luz, seremos iluminados, discerniremos o caminho certo,
o ponto mais verdadeiro em cada situação. Isso que ele quer dizer quando
afirma: ‘eu sou o caminho, a verdade, e a vida’. A fé nasce e cresce do olhar
para ele. De fixar o olhar nele. Se é assim a fé vem do olhar, vem de algo que
eu vejo e que entra em nós pelo nosso olhar. Não é um comportamento, um ‘crer’,
um raciocínio, mas antes de tudo, um ‘ver’ a partir de um determinado ângulo.
São fatos reais e não raciocínios ou algo que nasce dentro de nós que penetram
em nós primeiramente através do olhar, e depois também do ouvir e dos outros
sentidos.
Há um detalhe importante: no
livro o Senso Religioso L. Giussani 1explica que este olhar
tem que querer realmente ver algo com a curiosidade de uma criança. Pois há
olhares que não são para fora, mas só para dentro, fechados em si mesmos, que escolhem
alguns aspectos da realidade como pretexto para ver o que já se definiu a
priori querer ver, para se justificar ou afirmar uma posição. Ou seja: não “veem”,
mas abusam da realidade para afirmar um ponto de vista. Ao fazer assim,
inventam uma realidade ilusória que só existe na sua cabeça; mas que,
invariavelmente, com o passar do tempo, mostrará sua falsidade. A posição
contrária a essa é a de quem quer descobrir realmente quem foi Jesus e começa a
olhar para ele, e para tudo o que lhe diz respeito, com muita atenção e
curiosidade.
A fé, portanto, não é uma crença
em algo que não se vê, como diziam alguns filósofos modernos. Mas é sempre
“ver” algo no real: ver tudo tendo como framework ou estrutura, Cristo.
Em outras palavras, é ver a realidade com um olhar habituado a olhar para
Cristo e reconhecer nela a ação do Verbo que agora tudo possui e determina, sem
tirar a liberdade do ser humano. E essa liberdade se expressa exatamente aqui:
escolher fixar o olhar em quem dá a vida ou em quem gera a morte. Façamos a
escolha!
Daniel
Lendo teu texto me veio à mente
uma passagem bonita de um livro que eu li um tempo atrás; a escritora S.
Aleksiévitch foi Nobel em 2015 e o livro é um compilado de relatos sobre o
desastre em Chernobyl e a evacuação forçada que o sucedeu. As pessoas eram
obrigadas a deixar tudo para trás, abandonar suas vidas, de uma hora para
outra. Um dia depois da tragédia, todos os moradores subiam no camburão e
partiam sem saber para onde, impedidos de levar qualquer coisa, até a própria
carteira, porque tudo estava contaminado com radiação. Não sei por que, mas me
veio à mente, acho que é porque é um olhar habituado a olhar para Cristo e
reconhecer na realidade a ação do Verbo como você dizia, mesmo numa situação
trágica como essa.
Nós partimos... Quero contar
como a vovó se despediu de casa. Ela pediu ao papai para apanhar no celeiro um
saco de painço e espalhou tudo pelo jardim: “Para os passarinhos de Deus”.
Recolheu os ovos num cesto e despejou no pátio: “Para o nosso gato e para o
cachorro”. Cortou toucinho para eles. Tirou todas as sementes dos saquinhos: de
cenoura, abóbora, pepino, cebola, de vários tipos de plantas e flores... E
espalhou tudo pela horta: “Que vivam na terra”. Depois, se inclinou diante da
casa. Diante do celeiro. Percorreu as macieiras e se inclinou diante de cada
uma delas.
E o vovô, quando
estávamos saindo, tirou o chapéu.2
Ulisses
Acabei de ler o texto de vocês. A
questão da importância do olhar para a fé, portanto da dependência numa certa
atitude do sujeito diante do mundo para se perceber os sinais do mistério
presente na realidade, é uma das caraterísticas mais belas do Divino; esta
discrição, esta sutileza (com a qual Einstein gostava de descrever as leis da
natureza - Raffiniert ist der Herr Gott, aber boshaft ist er nicht- O Senhor
Deus é sutil, mas ele não é malicioso) são ao mesmo tempo uma grande graça
e uma grande esperança para a liberdade humanas. Graça, porque a preservam da
dominação de um poder, pelo qual tão facilmente os homens se deixam escravizar,
principalmente nos momentos de dificuldade, tentando salvar-se. E são esperança
para a liberdade humana porque a convidam a fazer um caminho, gradual, talvez
longo, mas seguro porque pautado pelos muitos momentos de reafirmação que
tornam a experiência sólida e certa, ao contrário da avalanche do desejo
saciado num momento, e que depois, relegado ao passado, torna-se esquecido,
matéria dos sonhos...
Às vezes eu gosto de exercitar
esta dinâmica do olhar que você descreve, Ana, fazendo um exercício na leitura
do antigo testamento, olhando para as vicissitudes daqueles homens e daquele
povo e me perguntando como veria os eventos descritos sem a revelação da
Presença de Deus que o narrador nos torna explícita. Penso que na nossa vida
podemos sempre também olhar os eventos com estes dois olhares: aberto ou
fechado à hipótese da fé. Externamente os dois mundos parecem iguais - de fato,
a externalidade da Presença é sempre sutil, quase imperceptível - mas o abismo do
sentido os separa por debaixo. Como no quadro de Bruegel O Sermão de São
João Batista, no Museu de Budapeste. O Profeta prega em meio à grande
multidão, mas apenas poucos - incluindo os dois personagens em primeiro plano -
se atentam para Aquele entre eles que o discreto sinal do profeta indica, e por
quem eles ansiosamente esperam a vida toda...
O Sermão e São João Batista
Pieter Bruegel, o Velho
Museum of Fine Arts, Budapest
Notas:
1 . GIUSSSANI, L. O Senso Religioso. Paço Editora, Campinas, 2017.
2 . ALEKSIÉVITCH, S. Vozes de
Chernobil, Companhia das Letras, São Paulo, p. 342, 2016.