Noli me tangere
Fra Angelico
1440-1442
Basílica de São Marcos, Florença,
Itália
“A harmonia invisível é mais
forte que a visível”, diz uma profundíssima frase de Heráclito. E nessas
Vésperas de Rachmaninov, em que a terra se une ao canto do céu, existe uma
alegria plena, certa e ao mesmo tempo contida, não totalmente manifesta, como
se esperasse a sua completa manifestação. Vem à mente o quatro de Fra Angelico
que fixa Jesus no ato de parar a Madalena que o quer segurar: Noli me
tangere, não me segures, ainda não subi ao céu para tomar posse
definitivamente de tudo”. Mas o Ressuscitado está ali presente, vivo. Cristo,
do qual tudo consiste, já iniciou a manifestação do Seu domínio sobre a
realidade. E o coro destaca isso muitas vezes ao longo das Vésperas, ora com um
caráter enérgico, ora com um sentimento tranquilo. Tudo deve ser visto,
percebido, reconhecido e aceito no interior dessa profundidade, dessa
perspectiva, à qual as vozes parecem se referir.
É a certeza da Ressurreição, o
triunfo da Ressurreição, aquilo que sustenta o pedido e acende a alegria no
canto dessas Vésperas, que é o canto do homem renovado: é na carne da nossa
vida, é no tempo dos nossos dias, é no tempo da nossa existência que essa face
renovada da terra deve ser experimentada. Somente o Pai sabe quando, somente o
Pai sabe o momento no qual a alegria se torna milagre, quer dizer, experiência
da promessa realizada, mas já existe a letícia, a espera segura, porque a
espera segura é letícia, mesmo que a alegria seja a explosão final.
Este é o gênio da cultura russa:
a unidade da vida. E as Vésperas são cheias dessa experiência do humano na sua
verdade.
A verdade da aparência traspassa,
transborda dos seus confins; nos faz descer na sua profundidade até tocar a
misteriosa origem de todas as coisas que nos aparecem, das coisas como nos
aparecem e onde se atesta o destino de todas as coisas, seja como movimento
experimentável, seja como fim no qual se define o seu sentido, o seu sentido
eterno: aquilo para o qual foram criadas, consistem e subsistem. Essa sua
tomada de posse das coisas (esse seu eterno caráter definitivo) foi anunciada
no dia da Ascensão ao Céu, iniciada na Páscoa à qual as Vésperas se referem, e
torna-se conteúdo da mensagem que, daquele instante em diante, é comunicada a
todo o mundo, penetrando toda a história. Ele já é vitorioso sobre a morte e,
portanto, sobre todas as forças que conduzem à morte, sobre todas as forças da
realidade que não O reconhecem como Senhor.
Há um segundo fator, um segundo
parâmetro da vida nova ao qual as Vésperas, de Rachmaninov, introduzem, tão
poderosamente e tão sugestivamente, e é o que é dito na Missa: “Mandai Vosso
Espírito para que nos tornemos um só corpo e um só espírito”. Um só corpo e um
só espírito, quer dizer, a unidade. A capacidade de unidade, a realização da
unidade entre os homens é o sinal, isto é, a demonstração que a verdade do
mundo é Cristo – o sinal para o mundo, para todas as pessoas, mas também para
você, o sinal, o que lhe torna convicto. E esta unidade, em Cristo, é possível.
Luigi Giussani
Para ouvir as Vésperas, op.37, de
Sergej Rachmaninov acesse o link: https://www.youtube.com/watch?v=U2NSfTXjEPI&feature=youtu.be
CHIERICI, Sandro; GIAMPAOLO, Silvia (orgs.). Spirto gentil: um invito all’ascolto dela grande musica guidati da Luigi Giussani. Milão: BUR Rizzoli, 2011, p.350-351.
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