sexta-feira, 24 de abril de 2020

A HARMONIA ESCONDIDA


                                                                                        Noli me tangere
                                                                                        Fra Angelico
                                                                                        1440-1442
                                                                                        Basílica de São Marcos, Florença, Itália


“A harmonia invisível é mais forte que a visível”, diz uma profundíssima frase de Heráclito. E nessas Vésperas de Rachmaninov, em que a terra se une ao canto do céu, existe uma alegria plena, certa e ao mesmo tempo contida, não totalmente manifesta, como se esperasse a sua completa manifestação. Vem à mente o quatro de Fra Angelico que fixa Jesus no ato de parar a Madalena que o quer segurar: Noli me tangere, não me segures, ainda não subi ao céu para tomar posse definitivamente de tudo”. Mas o Ressuscitado está ali presente, vivo. Cristo, do qual tudo consiste, já iniciou a manifestação do Seu domínio sobre a realidade. E o coro destaca isso muitas vezes ao longo das Vésperas, ora com um caráter enérgico, ora com um sentimento tranquilo. Tudo deve ser visto, percebido, reconhecido e aceito no interior dessa profundidade, dessa perspectiva, à qual as vozes parecem se referir.

É a certeza da Ressurreição, o triunfo da Ressurreição, aquilo que sustenta o pedido e acende a alegria no canto dessas Vésperas, que é o canto do homem renovado: é na carne da nossa vida, é no tempo dos nossos dias, é no tempo da nossa existência que essa face renovada da terra deve ser experimentada. Somente o Pai sabe quando, somente o Pai sabe o momento no qual a alegria se torna milagre, quer dizer, experiência da promessa realizada, mas já existe a letícia, a espera segura, porque a espera segura é letícia, mesmo que a alegria seja a explosão final.

Este é o gênio da cultura russa: a unidade da vida. E as Vésperas são cheias dessa experiência do humano na sua verdade.

A verdade da aparência traspassa, transborda dos seus confins; nos faz descer na sua profundidade até tocar a misteriosa origem de todas as coisas que nos aparecem, das coisas como nos aparecem e onde se atesta o destino de todas as coisas, seja como movimento experimentável, seja como fim no qual se define o seu sentido, o seu sentido eterno: aquilo para o qual foram criadas, consistem e subsistem. Essa sua tomada de posse das coisas (esse seu eterno caráter definitivo) foi anunciada no dia da Ascensão ao Céu, iniciada na Páscoa à qual as Vésperas se referem, e torna-se conteúdo da mensagem que, daquele instante em diante, é comunicada a todo o mundo, penetrando toda a história. Ele já é vitorioso sobre a morte e, portanto, sobre todas as forças que conduzem à morte, sobre todas as forças da realidade que não O reconhecem como Senhor.

Há um segundo fator, um segundo parâmetro da vida nova ao qual as Vésperas, de Rachmaninov, introduzem, tão poderosamente e tão sugestivamente, e é o que é dito na Missa: “Mandai Vosso Espírito para que nos tornemos um só corpo e um só espírito”. Um só corpo e um só espírito, quer dizer, a unidade. A capacidade de unidade, a realização da unidade entre os homens é o sinal, isto é, a demonstração que a verdade do mundo é Cristo – o sinal para o mundo, para todas as pessoas, mas também para você, o sinal, o que lhe torna convicto. E esta unidade, em Cristo, é possível.

Luigi Giussani


Para ouvir as Vésperas, op.37, de Sergej Rachmaninov acesse o link: https://www.youtube.com/watch?v=U2NSfTXjEPI&feature=youtu.be


CHIERICI, Sandro; GIAMPAOLO, Silvia (orgs.). Spirto gentil: um invito all’ascolto dela grande musica guidati da Luigi Giussani. Milão: BUR Rizzoli, 2011, p.350-351.

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