O que 2 milhões de pessoas ocupando as ruas de Roma e se concentrando no Circo Máximo e suas imediações, no último dia 30 de janeiro [1], pode ter que ver conosco, no Brasil? Para além da rua como palco de manifestações públicas, para além do fato de vivermos todos num contexto de Democracias plurais, está também em jogo a afirmação de algo que também nos interessa: o valor da família como fundamento para a lei e a sua relação com as bases da vida social.
Há, nas bases desse evento, uma discussão que ultrapassa sua mera constatação jornalística e as evidentes críticas que acabam por se fazer. Estamos falando, em última instância, de um acontecimento que toca em cheio o que, contemporaneamente, se vem chamando de multiculturalismo [2].
Mas, o que aconteceu? Em dezembro de 2013, os Senadores italianos Monica Cirinnà e Ciro Falanga assumiram o papel de relatores do Projeto de Lei n. 14 para disciplinar as uniões civis na Itália, proposto em março daquele mesmo ano pelos parlamentares Luigi Manconi e Paolo Corsini. O texto que, desde então, vem sendo analisado e sofrendo inúmeras alterações, passou a ser conhecido como Projeto de Lei Cirinnà [3] e, entre outras coisas, prevê e regula, por um lado, as uniões civis entre pessoas do mesmo sexo e, por outro lado, estabelece uma definição de família que, segundo a Senadora, “também [atenção para este advérbio!] pode ser, naturalmente, formada por pessoas de sexo diverso” [4], abrindo, outrossim, a possibilidade de adoção de filhos e enteados por casais homossexuais, além de abrir precedentes para a prática de “barriga de aluguel”. Estando para ser aprovado no Senado italiano, o projeto de lei não passou sem a atenção de vários setores da sociedade, acendendo os ânimos e levando milhões de pessoas às ruas.
E qual é a questão de fundo neste fato? Trata-se de se perguntar como garantir, na esfera pública, em democracias plurais, a legitimidade de uma das várias vozes que a constituem. Ainda: por que pode ser justo que um grupo de pessoas se mova para que um valor que os guia seja ouvido, respeitado? Ou, para usar as palavras de Habermas (2014): como a esfera pública enfrenta as questões típicas das sociedades complexas, que só conseguem se manter coesas graças a uma solidariedade entre seus cidadãos devidamente mediada pelo direito? [5]
Em se tratando, portanto, de um evento dessa natureza, para bem entendê-lo, é preciso chamar a atenção para três aspectos do multiculturalismo como fenômeno político: em primeiro lugar, somos obrigados a ouvir a maior quantidade possível dos partícipes da esfera pública, se não todos os envolvidos em cada um dos tantos eventos que interessam à vida dessas democracias complexas; não como quem, simplesmente, acusa a existência da diversidade e, no fim, continua a afirmar o ipsus e a rechaçar o alius; mas como quem experimenta aquela tolerância capaz de “perdoar a diversidade” [6].
Em segundo lugar – mas não em grau de importância –, devemos considerar, numa perspectiva histórica, a própria construção das democracias modernas que, desde a Carta de São Francisco e da Declaração Universal dos Direitos Humanos [7], buscam a afirmação do reconhecimento do ser humano como valor por excelência, independente de caprichos de quaisquer tipos, sobretudo os religiosos e políticos.
E, finalmente, uma terceira constatação fundamental diz respeito exatamente ao significado desse “valor por excelência” nessas sociedades onde coexistem “identidades, comunidades e tradições religiosas e culturais muito diversas, e em alguns casos estranhas, e inclusive hostis, às tradicionalmente dominantes” [8]; sociedades que acabaram por substituir a universalidade do valor do homem por uma primazia da diversidade, de forma que a pessoa humana deixa de ser um valor objetivo e real, e passa a ser objeto de voluntarismos e interesses, todos em nome de uma forçada coesão social, idealizada segundo um projeto de poder [9]. Todorov (2012) chega a dizer, a este respeito, que “o primeiro adversário da democracia é a simplificação que reduz o plural ao único, abrindo assim o caminho para o descomedimento” [10], que pretende uma “cidadania inclusiva”, supostamente capaz de se colocar, sozinha, como mediadora na relação com e entre as diversas culturas e minorias, através, pura e simplesmente, do reconhecimento de direitos culturais [11]. No entanto, o que se vê é que, na verdade, esses direitos são relativizados, visto que nada se pode dizer acerca do valor das culturas: “todos diferentes, todos iguais”, custe o que custar, é a bandeira desse multiculturalismo conflitivo [12] e diferencialista [13], típico do terceiro milênio. Em outras palavras, sob a égide da afirmação do igualitarismo, uma ditadura se esconde: a ditadura de uma igualdade que exclui qualquer possibilidade de diferença. O resultado disso acaba por ser fragmentação da sociedade, separação das minorias, relativismo cultural na esfera pública, incomunicabilidade do ser humano do ponto de vista cultural, homologação etc. No fim, nem se fala mais em pessoa humana, se fala tão somente de cidadão [14], de um ente que, em última instância, vaga nos espaços das Democracias sem saber de si e de seu fim último.
A verdadeira democracia. Giussani (2000) lembra que a “democracia verdadeira e viva” consiste na vigilância e na colaboração para que os valores comuns que guiam uma sociedade não signifiquem uma “homologação que leve a obliterar e a cancelar as diferenças incômodas, e com isso, em última instância, as identidades reais” [15]. Portanto, se o ideal da democracia deve surgir como exigência de relações exatas, justas, entre pessoas e grupos, o ponto de partida para isso deverá, necessariamente, ser a exigência de que a convivência ajude a afirmar a pessoa humana, de que as relações sociais não atrapalhem o crescimento da personalidade. Nesse sentido, Giussani afirma que uma democracia assim entendida só pode nascer “como diálogo e colaboração entre entidades humanas que se estimam como identidades precisas, e se respeitam não porque estabelecem limites entre si, mas pelo imperscrutável Destino da diferença, que é ‘caminho diferente para o destino comum’” [16]. E o espírito de uma autêntica democracia deve mobilizar a atitude de cada um em um respeito ativo para com o outro, ou seja, do diálogo em correspondência, que tende a afirmar o outro nos seus valores e na sua liberdade.
Notas:
[1] CAZZULLO, Aldo. Family day, non c’è un clima di scontro politico-sociale. Corriere della Sera, 30 de janeiro de 2016. Disponível aqui.
[2] cf. PRADES, Javier; ORIOL, Manuel (org.s). Los retos del multiculturalismo: en el origen de la diversidad. Madrid: Encuentro, 2009.
[3] ITÁLIA. Disegno di legge n. 14. Disciplina delle coppie di fatto e delle unioni civili. Senato della Repubblica, 04 de fevereiro de 2016. Disponível aqui.
[4] DDL CIRINNA'. Cosa prevede veramente la legge sulle unioni civili? RaiNews, 14 de janeiro de 2016. Disponível aqui.
[5] HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações sobre uma categoria da sociedade burguesa. São Paulo: Ed. UNESP, 2014.
[6] Cf. GIUSSANI, Luigi. O milagre da hospitalidade: diálogos com as Famílias para a acolhida. São Paulo: Companhia Ilimitada, 2006.
[7] Para a Carta de São Francisco: NATIONS UNIES. Charte des Nations Unies et Statut de la Cour internationale de Justice, 26 de junho de 1945. Disponível aqui. Para a Declaração Universal: UNITED NATIONS HUMAN RIGHTS OFFICE OF THE HIGH COMMISSIONER. Universal Declaration of Human Rights, 10 de dezembro de 1948. Disponível aqui.
[8] ORIOL, Manuel. Introducción. In: PRADES, Javier e ORIOL, Manuel (org.s). Los retos del multiculturalismo: en el origen de la diversidad (pp. 17-24). Madrid: Ediciones Encuentro, 2009, p. 19, tradução nossa.
[9] Cf. SCHOOYANS, Michel. Démocratie et valeurs: quelle stratégie dans une société pluraliste (pp. 31-63). In: PONTIFICIA ACADEMIA SCIENTIARIUM SOCIALIUM. Democracy: Reality and Responsibility (Proceedings of the Sixth Plenary Session of the Pontifical Academy of Social Sciences, 23-26 February 2000). Vatican City: Pontificia Academia Scientiarium Socialium Acta, 2001.
[10] TODOROV, Tzvetan. Os inimigos íntimos da democracia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 19.
[11] Cf. HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo: Loyola, 2002.
[12] Cf. BORGHESI, Massimo. Interculturalidad y misión Cristiana en la sociedad de hoy. In: PRADES, Javier e ORIOL, Manuel (org.s). Los retos del multiculturalismo: en el origen de la diversidad (pp. 204-229). Madrid: Ediciones Encuentro, 2009.
[13] Cf. BOTTURI, Francesco. Reconocimiento y cultura. Por un modelo de las subjetividades interculturales. In: PRADES, Javier e ORIOL, Manuel (org.s). Los retos del multiculturalismo: en el origen de la diversidad (pp. 99-113). Madrid: Ediciones Encuentro, 2009.
[14] Cf. DONATI, Pierpaolo. Desigualdades, diferencias y diversidades: la integración social más allá del multiculturalismo. In: PRADES, Javier e ORIOL, Manuel (org.s). Los retos del multiculturalismo: en el origen de la diversidad (pp. 136-152). Madrid: Ediciones Encuentro, 2009.
[15] GIUSSANI, Luigi. O eu, o poder, as obras: contribuição de uma experiência. São Paulo: Cidade Nova, 2000, p. 50.
[16] GIUSSANI, 2000, p. 51.
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