Ao entardecer…» (Mc 4, 35): assim começa o Evangelho, que ouvimos. Desde há semanas que parece o entardecer, parece cair a noite. Densas trevas cobriram as nossas praças, ruas e cidades; apoderaram-se das nossas vidas, enchendo tudo dum silêncio ensurdecedor e um vazio desolador, que paralisa tudo à sua passagem: pressente-se no ar, nota-se nos gestos, dizem-no os olhares. Revemo-nos temerosos e perdidos. À semelhança dos discípulos do Evangelho, fomos surpreendidos por uma tempestade inesperada e furibunda. Demo-nos conta de estar no mesmo barco, todos frágeis e desorientados mas ao mesmo tempo importantes e necessários: todos chamados a remar juntos, todos carecidos de mútuo encorajamento. E, neste barco, estamos todos, todos. Tal como os discípulos que, falando a uma só voz, dizem angustiados «vamos perecer» (cf. 4, 38), assim também nós nos apercebemos de que não podemos continuar estrada cada qual por conta própria, mas só o conseguiremos juntos.
Rever-nos nesta narrativa, é fácil; difícil é entender o comportamento de Jesus. Enquanto os discípulos naturalmente se sentem alarmados e desesperados, Ele está na popa, na parte do barco que se afunda primeiro... E que faz? Não obstante a tempestade, dorme tranquilamente, confiado no Pai (é a única vez no Evangelho que vemos Jesus a dormir). Acordam-No; mas, depois de acalmar o vento e as águas, Ele volta-Se para os discípulos em tom de censura: «Por que sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?» (4, 40).
Procuremos compreender. Em que consiste esta falta de fé dos discípulos, que se contrapõe à confiança de Jesus? Não é que deixaram de crer N’Ele, pois invocam-No; mas vejamos como O invocam: «Mestre, não Te importas que pereçamos?» (4, 38) Não Te importas: pensam que Jesus Se tenha desinteressado deles, não cuide deles. Entre nós, nas nossas famílias, uma das coisas que mais dói é ouvirmos dizer: «Não te importas de mim». É uma frase que fere e desencadeia turbulência no coração. Terá abalado também Jesus, pois não há ninguém que se importe mais de nós do que Ele. De facto, uma vez invocado, salva os seus discípulos desalentados.
A tempestade desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a descoberto as falsas e supérfluas seguranças com que construímos os nossos programas, os nossos projetos, os nossos hábitos e prioridades. Mostra-nos como deixamos adormecido e abandonado aquilo que nutre, sustenta e dá força à nossa vida e à nossa comunidade. A tempestade põe a descoberto todos os propósitos de «empacotar» e esquecer o que alimentou a alma dos nossos povos; todas as tentativas de anestesiar com hábitos aparentemente «salvadores», incapazes de fazer apelo às nossas raízes e evocar a memória dos nossos idosos, privando-nos assim da imunidade necessária para enfrentar as adversidades.
Com a tempestade, caiu a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria imagem; e ficou a descoberto, uma vez mais, aquela abençoada pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos.
«Por que sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?» Nesta tarde, Senhor, a tua Palavra atinge e toca-nos a todos. Neste nosso mundo, que Tu amas mais do que nós, avançamos a toda velocidade, sentindo-nos em tudo fortes e capazes. Na nossa avidez de lucro, deixamo-nos absorver pelas coisas e transtornar pela pressa. Não nos detivemos perante os teus apelos, não despertamos face a guerras e injustiças planetárias, não ouvimos o grito dos pobres e do nosso planeta gravemente enfermo. Avançamos, destemidos, pensando que continuaríamos sempre saudáveis num mundo doente. Agora nós, sentindo-nos em mar agitado, imploramos-Te: «Acorda, Senhor!»
«Por que sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?» Senhor, lanças-nos um apelo, um apelo à fé. Esta não é tanto acreditar que Tu existes, como sobretudo vir a Ti e fiar-se de Ti. Nesta Quaresma, ressoa o teu apelo urgente: «Convertei-vos…». «Convertei-Vos a Mim de todo o vosso coração» (Jl 2, 12). Chamas-nos a aproveitar este tempo de prova como um tempo de decisão. Não é o tempo do teu juízo, mas do nosso juízo: o tempo de decidir o que conta e o que passa, de separar o que é necessário daquilo que não o é. É o tempo de reajustar a rota da vida rumo a Ti, Senhor, e aos outros. E podemos ver tantos companheiros de viagem exemplares, que, no medo, reagiram oferecendo a própria vida. É a força operante do Espírito derramada e plasmada em entregas corajosas e generosas. É a vida do Espírito, capaz de resgatar, valorizar e mostrar como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espetáculo, mas que hoje estão, sem dúvida, a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiros e enfermeiras, trabalhadores dos supermercados, pessoal da limpeza, curadores, transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho.
Perante o sofrimento, onde se mede o verdadeiro desenvolvimento dos nossos povos, descobrimos e experimentamos a oração sacerdotal de Jesus: «Que todos sejam um só» (Jo 17, 21). Quantas pessoas dia a dia exercitam a paciência e infundem esperança, tendo a peito não semear pânico, mas corresponsabilidade! Quantos pais, mães, avôs e avós, professores mostram às nossas crianças, com pequenos gestos do dia a dia, como enfrentar e atravessar uma crise, readaptando hábitos, levantando o olhar e estimulando a oração! Quantas pessoas rezam, se imolam e intercedem pelo bem de todos! A oração e o serviço silencioso: são as nossas armas vencedoras.
«Por que sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?» O início da fé é reconhecer-se necessitado de salvação. Não somos autossuficientes, sozinhos afundamos: precisamos do Senhor como os antigos navegadores das estrelas. Convidemos Jesus a subir para o barco da nossa vida. Confiemos-Lhe os nossos medos, para que Ele os vença. Com Ele a bordo, experimentaremos – como os discípulos – que não há naufrágio. Porque esta é a força de Deus: fazer resultar em bem tudo o que nos acontece, mesmo as coisas más. Ele serena as nossas tempestades, porque, com Deus, a vida nunca morre.
O Senhor interpela-nos e, no meio da nossa tempestade, convida-nos a despertar e ativar a solidariedade e a esperança, capazes de dar solidez, apoio e significado a estas horas em que tudo parece naufragar.
O Senhor desperta, para acordar e reanimar a nossa fé pascal. Temos uma âncora: na sua cruz, fomos salvos. Temos um leme: na sua cruz, fomos resgatados. Temos uma esperança: na sua cruz, fomos curados e abraçados, para que nada e ninguém nos separe do seu amor redentor. No meio deste isolamento que nos faz padecer a limitação de afetos e encontros e experimentar a falta de tantas coisas, ouçamos mais uma vez o anúncio que nos salva: Ele ressuscitou e vive ao nosso lado. Da sua cruz, o Senhor desafia-nos a encontrar a vida que nos espera, a olhar para aqueles que nos reclamam, a reforçar, reconhecer e incentivar a graça que mora em nós. Não apaguemos a mecha que ainda fumega (cf. Is 42, 3), que nunca adoece, e deixemos que reacenda a esperança.
Abraçar a sua cruz significa encontrar a coragem de abraçar todas as contrariedades da hora atual, abandonando por um momento a nossa ânsia de omnipotência e possessão, para dar espaço à criatividade que só o Espírito é capaz de suscitar. Significa encontrar a coragem de abrir espaços onde todos possam sentir-se chamados e permitir novas formas de hospitalidade, de fraternidade e de solidariedade. Na sua cruz, fomos salvos para acolher a esperança e deixar que seja ela a fortalecer e sustentar todas as medidas e estradas que nos possam ajudar a salvaguardar-nos e a salvaguardar. Abraçar o Senhor, para abraçar a esperança. Aqui está a força da fé, que liberta do medo e dá esperança.
«Por que sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?» Queridos irmãos e irmãs, deste lugar que atesta a fé rochosa de Pedro, gostaria nesta tarde de vos confiar a todos ao Senhor, pela intercessão de Nossa Senhora, saúde do seu povo, estrela do mar em tempestade. Desta colunata que abraça Roma e o mundo desça sobre vós, como um abraço consolador, a bênção de Deus. Senhor, abençoa o mundo, dá saúde aos corpos e conforto aos corações! Pedes-nos para não ter medo; a nossa fé, porém, é fraca e sentimo-nos temerosos. Mas Tu, Senhor, não nos deixes à mercê da tempestade. Continua a repetir-nos: «Não tenhais medo!» (Mt 14, 27). E nós, juntamente com Pedro, «confiamos-Te todas as nossas preocupações, porque Tu tens cuidado de nós» (cf. 1 Ped 5, 7).
Vaticano, 27 de março de 2020
Para acessar a íntegra da cerimônia:
sexta-feira, 27 de março de 2020
quarta-feira, 25 de março de 2020
O eco de uma outra Beleza (1)
Às
vezes, escutando a Nona Sinfonia de Beethoven, digo a mim mesmo: “Se todas as
coisas pudessem ser ditas com a força da beleza com que Beethoven exprime os seus
sentimentos!”.
Sem
essa perfeição, como é possível falar de coisas imensamente mais profundas?
Essa
torrente de notas que é a Nona Sinfonia, essa respeitável catedral de notas que
enche o espaço com a imponência e a perfeição da sua beleza, não é nada mais
que o eco de uma outra Beleza e Perfeição.
As
notas da sinfonia de Beethoven são uma pequenina e frágil semente, símbolo do
ímpeto grandioso que entrou no mundo através de uma semente que foi colocada no
ventre de Nossa Senhora. É ali que a alegria se tornou “fato”; é ali que a
urgência do homem, a sua busca de um destino de felicidade recebe uma resposta;
é ali que a intuição humana de uma paternidade misteriosa é sustentada pela
certeza de que tudo aquilo que o coração sugere tem um caminho definitivamente
traçado. E como a semente das notas de Beethoven é imponente aos ouvidos de
quem as escuta, assim também a semente colocada no seio de Maria é
irresistível. É como um canto irresistível, que nada impedirá, destinado a
preencher não apenas um instante de emoção estética, mas todas as expressões do
eu humano e todos os movimentos da vida do povo humano, isto é, todas as
expressões da história do homem.
Se
fosse possível falar de certas coisas com a potência intuitiva e expressiva de
um gênio como Beethoven! Mas cada um de nós pode fazer aquilo que consegue:
como as nossas crianças balbuciam, assim também nós adultos balbuciamos entre
nós as grandes coisas pelas quais somos feitos e às quais somos destinados.
Porém, um pouco as intuímos: um pouco de Beethoven existe – mais ou menos – em
cada um de nós. E também por isso, escutando as notas geniais da música de
Beethoven, o coração sempre se incendeia em nós.
Nós
somos como uma sinfonia, pequena diante daquilo que deveria ser, um pouco
mesquinha, um pouco amedrontada, um pouco intimidada. E, no entanto, em relação
à Nona Sinfonia (que, apesar da sua grandiosidade, não dura, é destinada a
desvanecer), a nossa catedral, não de notas, é feita para preencher a história.
Deste destino nós nos aproximamos obedecendo a uma tarefa, aderindo com a nossa
liberdade à tarefa que nos é confiada. E que tarefa é essa? A tarefa da vida é
a paternidade e a maternidade; isto é, chegar à maturidade do amor. A tarefa da
vida é imitar o Pai continuando o canto de Jesus na história.
Luigi Giussani
Para ouvir, use o link abaixo, copiando e colando no seu navegador
https://www.youtube.com/watch?v=JOaI93Ob2B4
[1] CHIERICI,
Sandro; GIAMPAOLO, Silvia (orgs.). Spirto
gentil: um invito all’ascolto dela grande musica guidati da Luigi Giussani.
Milão: BUR Rizzoli, 2011, p.116 e 117.
terça-feira, 24 de março de 2020
Emergência COVID-19: uma perspectiva na fenomenologia.
A solidariedade humana é
muito importante, mas não é suficiente. Para sustentar a força espiritual temos
necessidade de uma abertura à transcendência para poder ver as coisas humanas sub
specie aeternitates. Não só podemos mas devemos voar alto e colocarmo-nos
desde um ponto de vista superior: a morte é uma passagem que todos deveremos
realizar e que dá valor à vida vivida na sua plenitude. Portanto, é necessário
agir aqui, bem e imediatamente; fazendo o possível mas, em seguida,
entregarmo-nos a algo que transcende, porque não estaremos para sempre aqui.
Imanência e transcendência se encontram e se entrelaçam na experiência de cada
um de nós.
Com grande afeto a todos
vocês.
Angela Ales Bello
sexta-feira, 20 de março de 2020
Informativo Coronavírus | Província Marista Brasil Centro-Sul
Neste informativo, em parceria com a TV Evangelizar, o Professor e Consultor de Biologia do Grupo Marista Claudio Piechnik orienta, junto ao Irmão Vanderlei Siqueira, Diretor executivo da Rede de Educação Básica do Grupo Marista e ao Pe. Márcio Luiz Fernandes, Padre e Professor do curso de Teologia da PUCPR, boas práticas para evitar ainda mais a contaminação pelo COVID-19. Além disso, os entrevistados trazem orientações oficiais para prevenção em cerimônias religiosas e como irão manter os métodos de ensino no ambiente escolar.
https://youtu.be/MQ8M2a3ZWbE
quarta-feira, 18 de março de 2020
"Tudo contribui para aqueles que amam a Deus"
De um diálogo entre amigos que se ajudam a viver as circunstâncias presentes com realismo e esperança.
"Ana, é verdade. Esta afirmação continua válida. Mais do que
tudo, esta situação está obrigando a todos a viver de modo diferente, que é uma
oportunidade para parar e pensar como levávamos a vida e o dia a dia, o que
estava no centro - e uma oportunidade para recolocar no centro as coisas mais
verdadeiras. Se você me perguntar, já me peguei por vários momentos olhando meu
dia agora com um certa gratidão curiosa e pacífica, pela oportunidade de viver
certas coisas e de certo modo que não estavam mais no meu horizonte, porque eu
tinha construído uma vida onde elas não tinham espaço.
É claro que há apreensão
pelo futuro, pois a situação objetivamente é de crise, e haverá perdas e
sofrimento, mas precisamos ter fé de que aí se esconderá algo para o destino de
cada um. E mesmo que o amanhã seja diferente da nossa imagem dele - porque esta
situação aguda deixará consequências mais duradouras, eu acho - devemos ter fé
na maior criatividade de Deus, que vê tudo, e que sabe melhor que nós - “uma
sabedoria que não é a nossa” diria Miguel Manara.
Esperar a novidade com
alegria e fé, como descrevia Gustavo Corção na “Descoberta do Outro”. Livres diante de um futuro que
agora, mais do que antes, não terá sido tão completamente engendrado por nós."
terça-feira, 17 de março de 2020
O bonito depoimento de uma brasileira residente em Roma
Caros amigos,
Essa é nossa segunda semana de quarentena coletiva em Roma.
Primeiro foram as escolas e muita gente passou a trabalhar em casa, deixar as
crianças com os avós não é uma opção. Fomos orientados a não sair e evitar
lugares fechados e aglomerados.
Até que essa semana o governo “fechou” a Itália.
Agora somos autorizados a sair apenas para trabalhar (os que
ainda saem para trabalhar), fazer compras ou ir para o hospital. Nada mais.
A natação e a capoeira das crianças estão fechadas, o
dentista desmarcou a consulta do meu filho e sábado não vai ter o jogo do
campeonato de futebol dele, a cia aérea cancelou minha passagem para Madrid,
também não vai ter o show da Gal, a faculdade avisou que tampouco tem data para
a próxima prova. As escolas já trabalham com a possibilidade de seguirem
fechadas até maio.
O país inteiro fechou.
Nós também nos fechamos nesse novo arranjo doméstico porque
eu ainda tenho que estudar, Gui ainda tem que trabalhar e Gael tem o cronograma
da escola para cumprir. A professora tem nos orientado remotamente sobre o
conteúdo de cada dia e nos vemos professores dos nossos filhos, ás voltas com o
neolítico e os verbos auxiliares. Não sei o que seria de nós sem o Google.
Anita se encarrega de dar o toque de fim de mundo colocando
a casa abaixo enquanto eu mando ela deixar Gael terminar o compiti de italiano.
Passamos o dia de pijama. Vi uma vizinha receber o correio
de luvas, ninguém mais pega o mesmo elevador, sobe um vizinho de cada vez, é o
protocolo.
Ontem fui ao mercado. Na rua, as poucas pessoas usavam luvas
cirúrgicas e, na falta de máscara, lenço ou cachecol cobrindo o nariz. Fila na
porta, todos respeitando a orientação de manter distância uns dos outros, a
entrada contingenciada, mais gente fora do que dentro do mercado. Cinco de cada
vez.
Ninguém reclama.
Pela primeira vez em 6 anos não sou a única com carrinho lá
dentro, os italianos, em geral, só compram o que podem carregar, mas agora
estão fazendo dispensa e já faltam alguns produtos nas prateleiras. Um corredor
para cada pessoa, ninguém se esbarra, o alto-falante fica repetindo para
respeitarmos a distância mínima. Na volta pra casa, reparo o comércio fechado,
os poucos cafés abertos espaçaram as mesas mas estão desertos. Estamos todos
isolados em casa.
Ontem, depois do anúncio da OMS decretando a pandemia,
outros países começaram a adotar as mesmas medidas para deter o avanço do vírus
que, por menos letal que seja, contamina tanto que mata muito. Na maioria dos
casos, idosos e pessoas com imunidade baixa e doenças pregressas. Mas não só
elas.
A flor no asfalto é a solidariedade. Não vejo, entre as
pessoas de meu convívio, pânico de ficar doente ou medo pelas nossas crianças
que, ao que parece, não são páreo para o coronavírus. Mas estamos todos
cuidando de quem não tem defesas suficientes para ele. Eu cuido do morador de
rua que dorme no frio, embaixo da marquise do meu prédio, das senhorinhas que
cumprimento no mercado, do senhor da loja de molduras. E, aqui em Roma, essas
pessoas viraram a prioridade de todos. Pensamos coletivamente numa onda de
cuidado com o outro, esse desconhecido, que eu nunca tinha vivido antes. As
crianças aprenderam a “tossir nos cotovelos” e o fazem até em casa. Foram
ensinadas que são estratégicas para conter a ameaça.
É triste, mas também é bonito, sabem?
Como escreveu por aqui meu amigo Francesco, não há saída que
não passe pela reconstrução paciente de uma resposta coletiva aos desafios.
Talvez seja didático estarmos vivendo, todos, ao mesmo tempo, essa crise. Fica
evidente que o engajamento de cada um de nós, pessoa a pessoa, é a melhor, se
não a única, defesa diante a pandemia. Ninguém pode dar-se ao luxo de ser
negligente. Acho que ficaremos com um aprendizado importante depois que tudo
isso passar.
Também pela primeira vez testamos uma nova organização do
trabalho. Ao mesmo tempo pessoas do mundo todo estão trabalhando de casa,
empresas e repartições com carga horária e staff reduzidos. Talvez esteja sendo
estabelecido um novo paradigma. Ainda não sabemos qual será o saldo, a história
nos ensina que evolução nem sempre é progresso. Mas eu, que não posso evitar a
esperança, acredito que tiraremos proveito desses dias de isolamento, quando
não podemos sequer nos abraçar, tocar e beijar. E, apesar disso, acredito que
esse vírus também possa desencubar a humanidade em nós.
Mas faremos esse balanço depois.
Por hora, lavem as mãos, ensinem as crianças, cuidem dos
idosos e, se puderem, amigos, fiquem em casa. E mandem seus funcionários para
casa. Não viajem. É preciso identificar e curar os que contraíram a doença
antes que ela se espalhe. O vírus já está aí, no nosso Brasil, não o
subestimem. Cobrem das autoridades, não acreditem em quem diz que “é só uma
gripe”, - eu já fui essa pessoa - não é! Não paguem para ver porque o preço é a
vida dos mais frágeis entre nós. As teorias conspiratórias só distraem até que
os médicos comecem a escolher quem, entre os necessitados, irão entubar. Até
que morra a avó de um amiguinho dos nossos filhos. Até que o colega de trabalho
safenado fique entre a vida e a morte numa UTI.
O momento não é de pânico, mas de cuidado e responsabilidade.
E união e solidariedade.
Essa mensagem é também um agradecimento pela preocupação e
carinho que tenho recebido nos últimos dias. Muito obrigada, aqueceu meu
coração nesse inverno que ainda persiste por aqui. Mas estamos todos diante o
mesmo desafio, meus caros, é preciso assumir esse compromisso.
Há um mês a China era longe, há três semanas a Lombardia
também era. Quando começou a quarentena eu também me revezava, junto com outras
mães e pais, nos grupos de WhatsApp, entre o desespero de ter que encaixar as
crianças, de repente, nos compromissos dos dias úteis e os memes - como nós, os
italianos também reagem com bom humor às adversidades. Hoje, em Roma, já não
podemos ignorar que o mundo diminuiu e que hoje somos todos vizinhos.
Desejo que meus conterrâneos não deem chance para a doença
no calor de nossa terra.
Cuidem-se. Uns dos outros. Fiquem firmes. Sairemos melhores
dessa.
quinta-feira, 5 de março de 2020
Eu estou convosco, estou à vossa disposição
No dia 4 de março de
2020, padre Luigino (Luís) Valentini realizou sua última e definitiva Viagem
para a casa do Pai.
A vida toda ele viveu em
longas viagens atravessando o Oceano, sobretudo entre Itália e Brasil. Ao
Brasil, ele, missionário italiano, chegou em 1970 para servir a Igreja numa
paroquia da periferia de São Paulo (São Mateus). E ao Brasil, à Igreja do
Brasil, ao povo brasileiro e especialmente as suas crianças, dedicou a vida
inteira.
Padre Luís, no Brasil apelidado
Gigio, era um filho de dois mundos: nascido em Porto San Giorgio, na Itália, no
dia 16 de julho de 1935, se tornou em 2016 cidadão honorário da cidade de São
Paulo no Brasil, pelo reconhecimento de suas atividades educativas. Com efeito,
no Brasil construiu creches, reforços escolares, casas de acolhida e oficinas
de artesanato. E construiu laços de caridade entre Itália, Brasil e Argentina, para
sustentar essas obras, educando assim à caridade tantas pessoas que de longe e
de perto contribuíram: trabalhando nelas ou contribuindo à manutenção por meio
do apoio econômico. Dentre elas, todas criadas nas regiões periféricas das
grandes metrópoles brasileiras, lembramos: em São Paulo, a Associação Menino
Deus que atende 1070 pessoas contando com o
Centro de Educação Infantil Menino Deus, creche que atende crianças de 1
a 4 anos; o Projetinho acolhedor que atende meninos de 5 anos; dois centros
para crianças e adolescentes (6 a 14 nos); um centro para a Juventude (de 15 a
17 anos); um Núcleo de Convivência para Idosos; uma unidade de Alfabetização de
adultos; um curso de beleza e um curso de moda. Em Brasília, a Associação Mãe
dos Homens atende 154 crianças de 2 a 4 anos. Em Belo Horizonte, as Obras
Educativas Padre Giussani atendem 769 pessoas na forma de creches, escolas e
associação esportiva. Na Argentina, a Fundación cultural y Educastiva Nuestra
Señora de Lujan atende cerca de 300 pessoas. Uma obra
análoga em Camaçari, importante cidade industrial perto de Salvador, também já está em funcionamento. Além de
ter dado vida a estas obras, padre Luís acompanhava, visitava sistematicamente
e buscava apoios para cada uma delas.
Padre Gigio se fazia
presente também na vida das pessoas que encontrava como amigo, conselheiro,
sacerdote; contagiava com seu entusiasmo e envolvia em sua aventura missionária.
Por isto, ele era profundamente amado por todos os que o encontravam, no Brasil
e na Itália. O encontro com ele mudou a vida de inúmeras pessoas. Como escreveu
um deles, “nenhum de nós seria o que é sem aquela semente que continua a
germinar, incansavelmente jovem dentro de nós, seguindo um Mistério que ‘renova
a juventude’, como era evidente em Pe Luigi”.[1] “Este modo de ser, cheio de vida e de
entusiasmo, comunicava-se a quem estava próximo dele, e também nós, jovens,
vivíamos o mesmo entusiasmo e com o mesmo ímpeto missionário”, escreveu outro,
que o acompanhou quando jovem em sua missão no Brasil[2].
No campo intelectual, a
contribuição de padre Valentini no Brasil se destacou, por ter sido um dos
pioneiros da introdução da Fenomenologia no Brasil com sua tese de doutorado e
com sua participação na fundação do Centro Fenomenológico junto a Pontifica
Universidade Católica de São Paulo.[3]
Na vida da Igreja, padre
Luís buscou a seiva para alimentar sua ação missionária: a arquidiocese de
Fermo a que pertencia, o Movimento Comunhão e Libertação, que ele contribuiu
ativamente para introduzir em sua terra natal e no Brasil, a Congregação do
Amor Misericordioso e na amizade com figuras que se destacaram na vida do
catolicismo contemporâneo. Através das
vicissitudes belas ou difíceis de sua vida, como ele mesmo declara em sua
autobiografia: “A Misericórdia foi uma realidade presente em toda a minha vida”
(2017, p. 21) [4]
O que o animava nesta
dedicação incansável? Ele mesmo nos diz em seu depoimento:
“A nossa fraqueza não nos
define, não nos derrota; a nossa fraqueza é superada pela força de Deus, pela
força de Jesus Cristo que venceu a morte, venceu a coisa mais terrível que
existe; e nos diz: Eu estou convosco, estou à vossa disposição”.
Hoje o sabemos
definitivamente participe da vida de Cristo vitorioso sobre a morte.
[2] Idem, p. 102.
[3]VALENTINI, Luigino. Idéia de horizonte e mundo na fenomenologia Husserliana.
Estudos psicologia. (Campinas) [online]. 1997, vol.14, n.3, pp.49-56.;
Valentini, L. O Caminho Fenomenológico do Fazer. São Paulo: Edições Companhia
Ilimintada, 1988.
[4] VALENTINI, Luigi.
Além do mar. Além do Homem. São Paulo: Companhia Ilimitada, 2017.
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