Caros amigos,
Essa é nossa segunda semana de quarentena coletiva em Roma.
Primeiro foram as escolas e muita gente passou a trabalhar em casa, deixar as
crianças com os avós não é uma opção. Fomos orientados a não sair e evitar
lugares fechados e aglomerados.
Até que essa semana o governo “fechou” a Itália.
Agora somos autorizados a sair apenas para trabalhar (os que
ainda saem para trabalhar), fazer compras ou ir para o hospital. Nada mais.
A natação e a capoeira das crianças estão fechadas, o
dentista desmarcou a consulta do meu filho e sábado não vai ter o jogo do
campeonato de futebol dele, a cia aérea cancelou minha passagem para Madrid,
também não vai ter o show da Gal, a faculdade avisou que tampouco tem data para
a próxima prova. As escolas já trabalham com a possibilidade de seguirem
fechadas até maio.
O país inteiro fechou.
Nós também nos fechamos nesse novo arranjo doméstico porque
eu ainda tenho que estudar, Gui ainda tem que trabalhar e Gael tem o cronograma
da escola para cumprir. A professora tem nos orientado remotamente sobre o
conteúdo de cada dia e nos vemos professores dos nossos filhos, ás voltas com o
neolítico e os verbos auxiliares. Não sei o que seria de nós sem o Google.
Anita se encarrega de dar o toque de fim de mundo colocando
a casa abaixo enquanto eu mando ela deixar Gael terminar o compiti de italiano.
Passamos o dia de pijama. Vi uma vizinha receber o correio
de luvas, ninguém mais pega o mesmo elevador, sobe um vizinho de cada vez, é o
protocolo.
Ontem fui ao mercado. Na rua, as poucas pessoas usavam luvas
cirúrgicas e, na falta de máscara, lenço ou cachecol cobrindo o nariz. Fila na
porta, todos respeitando a orientação de manter distância uns dos outros, a
entrada contingenciada, mais gente fora do que dentro do mercado. Cinco de cada
vez.
Ninguém reclama.
Pela primeira vez em 6 anos não sou a única com carrinho lá
dentro, os italianos, em geral, só compram o que podem carregar, mas agora
estão fazendo dispensa e já faltam alguns produtos nas prateleiras. Um corredor
para cada pessoa, ninguém se esbarra, o alto-falante fica repetindo para
respeitarmos a distância mínima. Na volta pra casa, reparo o comércio fechado,
os poucos cafés abertos espaçaram as mesas mas estão desertos. Estamos todos
isolados em casa.
Ontem, depois do anúncio da OMS decretando a pandemia,
outros países começaram a adotar as mesmas medidas para deter o avanço do vírus
que, por menos letal que seja, contamina tanto que mata muito. Na maioria dos
casos, idosos e pessoas com imunidade baixa e doenças pregressas. Mas não só
elas.
A flor no asfalto é a solidariedade. Não vejo, entre as
pessoas de meu convívio, pânico de ficar doente ou medo pelas nossas crianças
que, ao que parece, não são páreo para o coronavírus. Mas estamos todos
cuidando de quem não tem defesas suficientes para ele. Eu cuido do morador de
rua que dorme no frio, embaixo da marquise do meu prédio, das senhorinhas que
cumprimento no mercado, do senhor da loja de molduras. E, aqui em Roma, essas
pessoas viraram a prioridade de todos. Pensamos coletivamente numa onda de
cuidado com o outro, esse desconhecido, que eu nunca tinha vivido antes. As
crianças aprenderam a “tossir nos cotovelos” e o fazem até em casa. Foram
ensinadas que são estratégicas para conter a ameaça.
É triste, mas também é bonito, sabem?
Como escreveu por aqui meu amigo Francesco, não há saída que
não passe pela reconstrução paciente de uma resposta coletiva aos desafios.
Talvez seja didático estarmos vivendo, todos, ao mesmo tempo, essa crise. Fica
evidente que o engajamento de cada um de nós, pessoa a pessoa, é a melhor, se
não a única, defesa diante a pandemia. Ninguém pode dar-se ao luxo de ser
negligente. Acho que ficaremos com um aprendizado importante depois que tudo
isso passar.
Também pela primeira vez testamos uma nova organização do
trabalho. Ao mesmo tempo pessoas do mundo todo estão trabalhando de casa,
empresas e repartições com carga horária e staff reduzidos. Talvez esteja sendo
estabelecido um novo paradigma. Ainda não sabemos qual será o saldo, a história
nos ensina que evolução nem sempre é progresso. Mas eu, que não posso evitar a
esperança, acredito que tiraremos proveito desses dias de isolamento, quando
não podemos sequer nos abraçar, tocar e beijar. E, apesar disso, acredito que
esse vírus também possa desencubar a humanidade em nós.
Mas faremos esse balanço depois.
Por hora, lavem as mãos, ensinem as crianças, cuidem dos
idosos e, se puderem, amigos, fiquem em casa. E mandem seus funcionários para
casa. Não viajem. É preciso identificar e curar os que contraíram a doença
antes que ela se espalhe. O vírus já está aí, no nosso Brasil, não o
subestimem. Cobrem das autoridades, não acreditem em quem diz que “é só uma
gripe”, - eu já fui essa pessoa - não é! Não paguem para ver porque o preço é a
vida dos mais frágeis entre nós. As teorias conspiratórias só distraem até que
os médicos comecem a escolher quem, entre os necessitados, irão entubar. Até
que morra a avó de um amiguinho dos nossos filhos. Até que o colega de trabalho
safenado fique entre a vida e a morte numa UTI.
O momento não é de pânico, mas de cuidado e responsabilidade.
E união e solidariedade.
Essa mensagem é também um agradecimento pela preocupação e
carinho que tenho recebido nos últimos dias. Muito obrigada, aqueceu meu
coração nesse inverno que ainda persiste por aqui. Mas estamos todos diante o
mesmo desafio, meus caros, é preciso assumir esse compromisso.
Há um mês a China era longe, há três semanas a Lombardia
também era. Quando começou a quarentena eu também me revezava, junto com outras
mães e pais, nos grupos de WhatsApp, entre o desespero de ter que encaixar as
crianças, de repente, nos compromissos dos dias úteis e os memes - como nós, os
italianos também reagem com bom humor às adversidades. Hoje, em Roma, já não
podemos ignorar que o mundo diminuiu e que hoje somos todos vizinhos.
Desejo que meus conterrâneos não deem chance para a doença
no calor de nossa terra.
Cuidem-se. Uns dos outros. Fiquem firmes. Sairemos melhores
dessa.
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