segunda-feira, 2 de março de 2015

O momento atual: partir de um acontecimento que exalta a dignidade da pessoa

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Diante da conjuntura atual brasileira, dos escândalos de corrupção, das dificuldades na economia, que vão se mostrando dificuldades também para a vida das pessoas, cresce a tendência de adquirirmos uma posição de comodismo frustrado (“o Brasil é assim mesmo”, “os políticos são todos iguais”, etc.) ou de uma raiva que se torna cada vez mais violenta. Sabemos, de antemão, que estas duas posições não constroem, mas, neste contexto, de onde pode nascer uma novidade real, um caminho de mudança?

Um caminho de mudança verdadeiro, que não se revele ilusório, nem repita os mesmos erros que veio combater, não nasce de uma postura ideológica em particular, mas de um acontecimento: “para começar a compreender palavras como humanidade e justiça (...) é necessário participar de um acontecimento” [1], “um acontecimento em que o significado destas palavras é afirmado de maneira dramaticamente descoberta”, mesmo que sempre dentro a consciência da inadequação, de que “falta sempre algo mais”. Em que consiste então este acontecimento revelador do valor das palavras decisivas? “O conteúdo do acontecimento é um encontro com uma realidade integralmente humana, tal como se encontra pela rua o antigo professor que diz frases boas sobre humanidade e justiça” [2]. Um acontecimento assim tem a força de gerar um povo: “um povo nasce de um acontecimento, constitui-se como realidade que quer afirmar-se em defesa da sua vida típica contra quem a ameaça. Imaginem duas famílias que vivem em palafitas no meio de um rio que vai enchendo. A unidade dessas duas famílias e depois de cinco, de dez famílias, à medida que vão crescendo as gerações, é uma luta pela sobrevivência e, em última instancia, uma luta para afirmar a vida” [3].
A tentação do momento seria pensar que grandes protestos populares e manifestações de rua, por seu impacto político-social, seriam automaticamente acontecimentos deste tipo. Mas isto não é sempre verdade. Um acontecimento gerador do novo tem que nascer ou remeter ao nascimento de uma experiência de descoberta e afirmação da própria humanidade, da própria dignidade pessoal. Uma manifestação que não remete a este momento se torna apenas um gesto de descontentamento, que pode ser usado (ou instrumentalizado) politicamente, mas que não carrega em si a força do novo que surge.
Este é o momento de, no curto e médio prazo, recuperar aqueles acontecimentos, encontros e construções coletivas em que descobrimos nossa humanidade, aprendemos e reaprendemos a compreender nossa dignidade, e procurar entender que consequências trazem para a organização da sociedade e para as práticas políticas. Este resgate será fundamental para que manifestações e movimentos políticos não se percam nem sejam instrumentalizados, para que consigamos utilizar este momento de crise para a construção de uma sociedade realmente nova e melhor. Diante da crise, a solução não é propor uma guerra de ideias, como pretende fazer Obama para se contrapor ao Estado Islâmico [4].  Numa época de crise e desilusão com as ideologias, a verdadeira unidade social e a autêntica solução dos conflitos não nascerá de uma ideologia hegemônica, mas da experiência de uma humanidade compartilhada. 
A médio e longo prazo, contudo, devemos ter claro que só uma experiência educativa pode gerar uma novidade consistente. Os jovens de hoje são filhos de uma cultura que exalta a reação instintiva ou conformista, mas não o discernimento diante das coisas que acontecem. Esta atitude se verifica em manifestações como as que vimos nos dias da Copa, nos movimentos passe-livre etc., onde os jovens se mobilizaram para uma ação reivindicatória que nascia de um desejo real de justiça e reconhecimento da dignidade de todos. Mas, devido à falta deste discernimento, os jovens encontram cada vez mais dificuldade de reconhecer caminhos de construção de uma realidade alternativa, cedendo frequentemente à raiva e caindo na violência. Por exemplo, diante da exigência da verdade, eles “não sabem o que é a verdade, porque ninguém lhes diz e ninguém se envolve com eles num caminho positivamente endereçado. Em razão da retirada da confiança na educação, um ceticismo, uma ironia negativa e uma insuficiente confiança transformam em poeira ao vento (...) esta que é a atividade mais apaixonadamente humana que se possa conceber: a educação” [5]. A educação, portanto, é o principal caminho a trilhar e a restabelecer para a reconstrução de pessoas, de um povo, de uma sociedade e da atividade política.
A frágil criatura, o eu humano, volta a ser o único ponto do qual é possível partir de novo [...] A frágil criatura geradora de povo, portanto, de história” [6]. Dela se deve partir para reconstruir “cidades destruídas”. Este olhar carregado de paixão pela pessoa humana, por cada um de nós, em toda nossa fragilidade e grandeza, não pode ser visto como um romantismo ineficiente, mas como a origem de uma racionalidade política capaz de orientar-se rumo ao bem comum e não à tomada do poder.

Francisco Borba Ribeiro Neto
Paulo R. A. Pacheco

Notas:
[*] FRIEDRICH, Caspar David. Der Wanderer über dem Nebelmeer. Óleo sobre tela, 94,8×74,8 cm, 1818. Coleção do Hamburger Kunsthalle.
[1] GIUSSANI, Luigi. O eu, o poder, as obras. São Paulo: Cidade Nova, 2001, p. 244.
[2] Idem, p. 245.
[3] Idem, p. 248.
[4] cf. TREVISAN, Cláudia. Obama quer guerra de ideias contra Estado Islâmico. Estado de São Paulo, 19 de fevereiro de 2015
[5] GIUSSANI, 2001, p. 246.
[6] Idem, p. 250.

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