Semana Santa: enquanto tudo faz com que não pensemos em Cristo, a memória de um amor por nós sem medidas ao ouvir os "Responsórios" da Semana Santa de Victoria.
Tenebrae Responsories - Caligaverunt
Tenebrae Responsories - Amicus meus
Tenebrae Responsories - Eram quasi
Tenebrae Responsories - Animam meam
Por Luigi Giussani
Se tivéssemos escutado sempre e somente rock, ou músicas semelhantes, precisaríamos de um tempo antes de entender a música clássica [1]. Num primeiro impacto não a entenderíamos. Seria como quando o meu falecido pai me arrastava, ainda pequeno, para escutar a música polifônica, que ele gostava muitíssimo, e eu ficava todo irritado, porque no meio daquela que me parecia uma enorme confusão de notas, de vozes, não via a ordem, isto é, não intuía a chave. A primeira vez que comecei a entender alguma coisa foi, aos treze anos, no dia em que ouvi um coro entoando o Caligaverunt de Victoria. Depois das primeiras notas, assim que entrou a segunda voz, tive a chave para compreender. E, desde então, gostei sempre mais da polifonia. Toda.
Assim comecei a me sentir inebriado por esta música que parece – e, muitas vezes, é – sempre idêntica a si mesma, como repetida continuamente. E, no entanto, nunca cansa, porque alarga o horizonte do ânimo e do coração, enchendo-os de luz e de calor, como deve ter sido o coração cristão de Victoria quando escrevia estes Responsórios da Semana Santa. Todos os esforços religiosos são interpretativos do Mistério. Ao invés, o método cristão é repetir a palavra ouvida. Repetir, isto é, seguir. Não se pode repetir uma palavra vinte vezes sem sermos mudados por ela.
Victoria é um grande companheiro de caminho que Deus nos deu, o maior polifonista, tão grande quanto humilde e, por isso, menos aclamado que outros. A voz humana tem um poder infinitamente superior àquele de qualquer orquestra e a polifonia representa o vértice expressivo da música vocal.
Os Responsórios da Sexta-feira da Paixão de Victoria são, na nossa memória, o ponto de referência mais alto, mais profundo, mais sugestivo do canto religioso.
Os motetos da Semana Santa comunicam a emoção consciente e afeiçoada, adorante e dolorosa daquilo que Cristo é para o homem. O Caligaverunt é certamente uma das peças mais belas: com o ânimo atravessado por essa música sublime, podemos entender bem aquilo que a nós normalmente falta e que aqui é evidente. Nele não domina o próprio sentimento diante daquele Homem que morre, mas precisamente a dor daquele Homem, por aquele Homem que morre. “Si est dolor similis sicut dolor meus”, se há uma dor semelhante à minha: mas isto o diz quem está debaixo da cruz, Nossa Senhora, São João. Em primeiro plano, é colocada a realidade do Homem-Deus assassinado, a dor por Cristo. Este canto documenta um aspecto da consciência do ser pecadores não facilmente encontrado: aquele “si est dolor” é certamente o grito mais humano que se possa escutar na música, mais humano e mais humanamente religioso de toda a música, junto ao choro que se segue: “sicut dolor meus”. A verdadeira ruptura que a consciência do próprio pecado realiza é a dor de Cristo – como a dor da criança diante do choro de sua mãe: é o outro que domina, não a preocupação pela própria merecida tranquilidade ou pela paz recuperada. É a dor de Cristo – “vós todos, ó povos, olhai se há uma dor semelhante à minha” –, a dor por Cristo, a dor diante de Cristo por como o temos tratado.
Eis, neste ponto, um novo passo ao qual nos introduz Victoria: a afeição recusada, a eleição recusada, a trama entorno dele, ainda mais pérfida porque feita pelo amigo, pelo discípulo. Contra Ele estão os anciãos do povo, aqueles que deveriam ter maturidade e que naquele momento se demonstram pior do que os outros. Os sumo sacerdotes, a religião, os fariseus, a lei, os intelectuais de então: “Vinde – dizem –, coloquemos veneno no seu pão e o eliminemos da terra dos vivos”. Arranquemo-lo do sentido da vida, Ele não é necessário para que a nossa vida tenha sentido – justamente Ele que é a raiz de tudo! –, arranquemo-lo da terra dos vivos, eliminemo-lo. E, depois, o abandono dos seus: “Não fostes capazes de vigiar por uma hora”. Por isso o mundo é como uma grande escuridão na qual a fonte da luz é a morte, supremo paradoxo: a morte da vida, a morte de Cristo.
Este ódio a Cristo, como o próprio Jesus disse no seu último discurso antes de morrer, caracteriza a história; nele se articula, torna-se concreta, dia após dia, através de todos os poderes, daquele político-econômico àquele “clerical”, a ação do pai da mentira: o ódio a Ele é o tema necessário a todo poder humano que não tire a sua origem consciente, humilde e dramática da obediência ao poder supremo que faz todas as coisas, ao destino de vitória e de glória próprio de Cristo, justiça de Deus. O mundo está todo na mentira, diz a Bíblia. Ultimamente é a violência que define o destino de todo poder: “Vinde, coloquemos veneno no seu pão para arrancá-lo da terra dos viventes”, que não se fale mais dEle. Este é o conteúdo último de toda a pedagogia que o mundo adota em todas as suas expressões: não fazer pensar mais em Cristo. Cristo é um nome até mesmo honrado, ao qual se pode pensar lendo um livro, mas totalmente exilado da vida inteira do homem, aquela social, começando da família, da educação das crianças e continuando na convivência dos operários, do trabalho.
E, enfim, os Responsórios nos introduzem no assassinato – o auge da injustiça –, aceitado por Ele por amor a nós. Os amigos ou dormiam ou o traíram; o mundo, os intelectuais, os religiosos, o poder, tramaram. Até mesmo o Pai o abandonou? Não. É que a Sua obediência deveria ir até o fundo: “Pai, em Tuas mãos entrego o meu espírito”.
Mas o tremendo e o piedoso, justiça e misericórdia, como fazem para estarem juntos? Como faz para estar junto o “tremendo”, ao qual estamos participando, esta injustiça que escutamos na polifonia de Victoria, e o “piedoso” de Cristo, que escutamos sobre o rosto e no coração de Maria? É uma injustiça porque “estava todo dia próximo de vós ensinando no templo”, em plena luz, no meio do povo; viestes me prender com o engano, de noite, porque sois injustos. Mas diante desta injustiça, maior do que esta injustiça, a Sua misericórdia transborda os limites; uma vez que não se encontrou ninguém que me reconhecesse, “ainda não se encontrou o justo que me reconheça”. A única foi Maria. Mas é o mesmo para cada um de nós, porque há algo em nós – ainda que tímido, confuso, contraditório – que te reconhece, Jesus. Devemos deixar livre, devemos liberar este ângulo de sentimento exato, de juízo verdadeiro, de afeição incipiente. Devemos deixar livre o nosso coração enquanto tem algo de originariamente justo diante de Cristo. A isto nos convida Victoria com suas esplêndidas notas.
A polifonia é um vértice: e, no entanto, buscar a verdade, viver a verdade é uma música ainda maior que as sinfonias de Beethoven e os motetos de Palestrina e Victoria: a isto somos chamados.
Notas:
[1] Texto traduzido de CHIERICI, Sandro; GIAMPAOLO, Silvia (orgs.). Spirto gentil: um invito all’ascolto dela grande musica guidati da Luigi Giussani. Milão: BUR Rizzoli, 2011, pp. 483-487.
Nenhum comentário:
Postar um comentário