segunda-feira, 27 de abril de 2015

Imigração e acolhida: um desafio para Europa e para o mundo

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De onde nasce o movimento migratório que leva tantas pessoas à morte no Mediterrâneo?
Padre Mussie Zerai, sacerdote da Eritreia que cuida dos migrantes afirma que as causas do êxodo são ligadas às dificuldades da sobrevivência em países cujos governos ditatoriais são extremamente violentos tais como a Eritreia, a Somália, o Sudão do Sul, a Gâmbia, a Síria, o Mali [1]. Em muitos casos os prófugos fogem da perseguição religiosa, por serem cristãos e ameaçados pelo avanço do terrorismo islâmico nas regiões da África e Médio Oriente.
Em artigo publicado n’O Estado de São Paulo comprova-se esta leitura e revelam-se outros aspectos desta dramática realidade através de alguns depoimentos de Daouda Boubacarr e Fares Albashawat, duas pessoas que aspiram a imigrar da África: Albashawat, por exemplo, afirma que o perigo da travessia “não é nada perto do que vimos na Síria” [2].
“Buscavam a felicidade” afirmou Papa Francisco em 21 de abril, ao referir-se aos desaparecidos no último grave naufrágio no Mediterrâneo: “os desaparecidos são homens e mulheres como nós, irmãos nossos que buscam uma vida melhor, famintos, perseguidos, feridos, explorados, vítimas de guerras… Eles buscavam a felicidade” [3].
De fato, como afirma Giussani (2009), a busca da felicidade expressa “aquela energia que domina toda a mobilidade humana, provocando-a, sustentando-a, redefinindo-a continuamente, compreendendo inclusive a própria mobilidade dos povos e seu vagar pelo mundo” [4].
Esta busca e sua urgência trágica é perversamente instrumentalizada pela chaga do tráfico humano, como têm revelado os fatos recorrentes dos naufrágios no Mediterrâneo.
A acolhida aos sobreviventes constitui, hoje, para Europa, um desafio. Diante destes fatos, os bispos europeus afirmaram que a reação da comunidade europeia será um teste revelador para os valores em torno dos quais se reúne a Europa: “Nada justifica que se fechem os olhos à tragédia humana que decorre no Mediterrâneo e que a União Europeia deve enfrentar”. É preciso passar, urgentemente, “das palavras aos atos”, e assumir “posições concretas para a implementação de uma política humana de asilo e de migração” [5].
Os chefes de Estado e os políticos europeus e do restante do mundo estão discutindo políticas de migração e de acolhimento dos refugiados, que envolvam não apenas os países geograficamente mais próximos. Várias soluções foram sugeridas também por ONGs, como por exemplo a proposta de Jan Egeland [6] de se criar corredores humanitários para as pessoas que buscam asilo político, a partir de pontos de triagem dos pedidos a serem realizados nas embaixadas de seus países de origem – Sudão, Etiópia, Líbia.
Na União Europeia (UE) foi recentemente realizada uma reunião extraordinária para tomar medidas. Mas o grande impasse, difícil de ser superado, é afirmar uma política comum de acolhida. O que está em jogo e encontra muita dificuldade para ser realizado é, de fato, acolher o outro. Diante da tragédia de quem foge para evitar a morte, evidenciam-se posições incapazes de formular uma resposta eficaz. Exemplo disso é a resposta do primeiro ministro inglês, James Cameron, ao afirmar que a Inglaterra oferecerá ajuda com a condição de que não se conceda asilo aos imigrantes que, segundo ele, deveriam ser levado para os países mais próximos, como a Itália; ou a disponibilização pela UE de apenas 5.000 vagas, número irrisório diante dos milhões de prófugos; ou as posições de governos, como o alemão, que dizem se empenhar em salvar vidas, mas não em dar asilo; ou das direitas de vários países da Europa (Itália, França, Alemanha etc.) que querem negar seja asilo político, sejam operações para a salvação dessas vidas e que pressionaram para a extinção do programa de busca e resgate Mare Nostrum da Marinha italiana que, no passado, conseguiu resgatar muito mais vidas do que o atual e menos custoso programa da UE, o Triton.
A dificuldade, hoje, está no fato de que a consciência cultural do valor da vida humana e a dimensão ética da acolhida estão em questão na Europa e no mundo. A capacidade de acolher a necessidade e a carência do outro nasce da clareza acerca do valor absoluto da pessoa humana, de uma educação a respeito disto e de uma prática social. Escrevia Giussani (2006): 
a acolhida e a partilha são a única modalidade de um relacionamento humanamente digno, porque somente nelas a pessoa é exatamente pessoa, ou seja relação com o Infinito. (...) É por isso que na acolhida de um pobre e na acolhida da pessoa mais amada deve residir, em ultima instância, a mesma gratuidade [7].
Neste sentido, não existe solução de continuidade entre a questão dos imigrantes e o que vemos acontecer no cenário europeu e mundial. É contemporânea a estes fatos, por exemplo, a posição de Peter Singer, docente de ética na Universidade de Princeton acerca da necessidade de infanticídio das crianças com deficiências para reduzir os custos do sistema de saúde estatais e dos planos de saúde [8]. Segundo ele, o direito à vida seria subordinado à capacidade intelectual da pessoa, a qual se demonstraria na capacidade de expressar preferências. Somente quem puder pagar um prêmio suplementar a planos de saúde poderá ter este direito garantido. 
Em vários países da Europa que estão se posicionando contra a acolhida aos imigrantes, a eutanásia é garantida pela lei: na França, foi aprovada a lei de François Holland sobre a sedação em estado terminal no dia 17 de março de 2015 [9]; na Bélgica, desde 2014, vigora a lei de eutanásia das crianças com deficiências e malformações e, agora, está se propondo que a mesma lei se aplique também para os dementes [10].
Num Ocidente marcado por estas concepções que são fruto de uma cultura de morte, que nega o direito absoluto à vida, e marcado por estas práticas de negação da vida, é difícil que possa surgir uma disponibilidade ao acolhimento de quem foge da morte em busca da vida. Tudo isto também nos leva a uma séria interrogação sobre que tipo de cultura (e de ética) está sendo afirmada pelas políticas dos Estados como também pelo ensino escolar e universitário.
É comum ver que professores de história e autores de manuais escolares maculam, em nome de ideologias niilistas, a tradição cultural do ocidente cristão quanto à afirmação do valor absoluto da pessoa humana. Esta tradição, porém, possibilitou à Europa ser capaz de integrar em si povos tão diversos como eram as populações da primeira Idade Média: para os mosteiros beneditinos que, em muitos casos, deram origem aos núcleos urbanos, acolher o estrangeiro e sua demanda por cuidado era um gesto sagrado, por ele ser como o próprio Cristo. Hoje, estamos diante da constatação de que a negação desta raiz na atual sociedade europeia determinou, nas pessoas e nas nações, graves atitudes de fechamento diante da exigência urgente de acolher quem está pedindo asilo. Os acontecimentos de nossa história contemporânea trazem, portanto, à tona a raiz perversa do individualismo niilista moderno.  
A incapacidade da UE de se posicionar diante do problema das migrações nos parece afundar nestas raízes. Chegou a hora de se questionar sobre se estas concepções sejam de fato humanas (ou seja razoáveis) ou escondam, em seu âmago, a mesma lógica animalesca, perversa e brutal que levou, há poucas décadas, a experiências como a do nazismo. Arendt (1989) afirma que o preparo para o terror “triunfa quando as pessoas perdem o contato com os seus semelhantes e com a realidade que as rodeia” [11]. A incapacidade de se compadecer pelo sofrimento do outro é uma expressão desta perda de contato.
Por outro lado, cabe apoiar, difundir o conhecimento, valorizar, se solidarizar com todas as experiências reais que, de fato, neste momento no mundo, estão acolhendo e protegendo a vida humana também à custa de sua própria. E, com efeito, não são poucas. O Núcleo Cultural Lux Mundi se propõe a contribuir para que o conhecimento destas iniciativas, experiências e pessoas possa ser conhecido também no Brasil.

Notas:
[*] Foto extraída de <http://www.cosenza1special.it/leggi_news_2014.asp?id=2299>. Acesso em 26 abr. 2015.

[1] cf. GROTTI, Leone. "Centinaia di profughi sono ammassati sulle coste libiche, le milizie li obbligano ad andare alla morte in mare". Tempi, 17/02/2015. Disponível em: <http://www.tempi.it/centinaia-di-profughi-sono-ammassati-sulle-coste-libiche-le-milizie-li-obbligano-ad-andare-alla-morte-in-mare#.VTomzXl0xjo>. Acesso em 26 abr. 2015.

[2] THE ECONOMIST. O povo dos barcos e a Europa. O Estado de São Paulo, 24/04/2015. Disponível em: <http://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,o-povo-dos-barcos-e-a-europa-imp-,1675109>. Acesso em 26 abr. 2015.

[3] REDAÇÃO. O papa reitera o apelo para que sejam evitadas novas mortes no Mediterrâneo. Zenit, 21/04/2015. Disponível em: <http://www.zenit.org/pt/articles/o-papa-reitera-o-apelo-para-que-sejam-evitadas-novas-mortes-no-mediterraneo>. Acesso em 26 abr. 2015.

[4] GIUSSANI, Luigi. O senso religioso. Brasília: Universa, 2009, p. 75.

[5] REDAÇÃO. Naufrágios no Mediterrâneo: episcopado da UE pede medidas. Rádio Vaticano, 22/04/2015. Disponível em: <http://pt.radiovaticana.va/news/1138637>. Acesso em 26 abr. 2015.

[6] REDAÇÃO. Naufragio migranti. Jan Egeland: "Ocorre migliorare le squadre di ricerca e soccorso". RaiNews, 22/04/2015. Disponível em: <http://www.rainews.it/dl/rainews/media/Jan-Egeland-f662faaa-422b-41fe-ac3b-a2355df6fbda.html>. Acesso em 26 abr. 2015.

[7] GIUSSANI, Luigi. Milagre da hospitalidade. São Paulo: Companhi Ilimitada, 2006, p. 16.

[8] EXCLUSIVE. Princeton prof: kill severely disabled infants under Obamacare. WND, 19/04/2015. Disponível em: <http://www.wnd.com/2015/04/princeton-prof-kill-severely-disabled-infants-under-obamacare/#leE0qFFP3yY8CqEI.99>. Acesso em 26 abr. 2015.

[9] GROTTI, Leone. Francia verso l'eutanasia. "Ma se la vita di una sola persona diventa 'inutile', tutta la società è ferita". Tempi, 27/03/2015. Disponível em: <http://www.tempi.it/francia-eutanasia-sedazione-terminale-ma-se-la-vita-di-una-sola-persona-diventa-inutile-e-tutta-la-societa-ad-essere-ferita#.VT7jEyFVhBd>. Acesso em 26 abr. 2015.

[10] GROTTI, Leone. Belgio, un anno fa la legge sull'eutanasia ai bambini. "Ora tocca ai dementi. Tutta la società è in pericolo". Tempi, 03/03/2015. Disponível em: <http://www.tempi.it/belgio-un-anno-fa-la-legge-eutanasia-ai-bambini-ora-tocca-ai-dementi-tutta-la-societa-e-in-pericolo#.VT7jhyFVhBd>. Acesso em 26 abr. 2015.

[11] ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras 1989, p. 526.

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