sexta-feira, 27 de março de 2020

Papa concede a benção Urbi et Orbi

(Vatican Media)

Ao entardecer…» (Mc 4, 35): assim começa o Evangelho, que ouvimos. Desde há semanas que parece o entardecer, parece cair a noite. Densas trevas cobriram as nossas praças, ruas e cidades; apoderaram-se das nossas vidas, enchendo tudo dum silêncio ensurdecedor e um vazio desolador, que paralisa tudo à sua passagem: pressente-se no ar, nota-se nos gestos, dizem-no os olhares. Revemo-nos temerosos e perdidos. À semelhança dos discípulos do Evangelho, fomos surpreendidos por uma tempestade inesperada e furibunda. Demo-nos conta de estar no mesmo barco, todos frágeis e desorientados mas ao mesmo tempo importantes e necessários: todos chamados a remar juntos, todos carecidos de mútuo encorajamento. E, neste barco, estamos todos, todos. Tal como os discípulos que, falando a uma só voz, dizem angustiados «vamos perecer» (cf. 4, 38), assim também nós nos apercebemos de que não podemos continuar estrada cada qual por conta própria, mas só o conseguiremos juntos.

Rever-nos nesta narrativa, é fácil; difícil é entender o comportamento de Jesus. Enquanto os discípulos naturalmente se sentem alarmados e desesperados, Ele está na popa, na parte do barco que se afunda primeiro... E que faz? Não obstante a tempestade, dorme tranquilamente, confiado no Pai (é a única vez no Evangelho que vemos Jesus a dormir). Acordam-No; mas, depois de acalmar o vento e as águas, Ele volta-Se para os discípulos em tom de censura: «Por que sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?» (4, 40).

Procuremos compreender. Em que consiste esta falta de fé dos discípulos, que se contrapõe à confiança de Jesus? Não é que deixaram de crer N’Ele, pois invocam-No; mas vejamos como O invocam: «Mestre, não Te importas que pereçamos?» (4, 38) Não Te importas: pensam que Jesus Se tenha desinteressado deles, não cuide deles. Entre nós, nas nossas famílias, uma das coisas que mais dói é ouvirmos dizer: «Não te importas de mim». É uma frase que fere e desencadeia turbulência no coração. Terá abalado também Jesus, pois não há ninguém que se importe mais de nós do que Ele. De facto, uma vez invocado, salva os seus discípulos desalentados.

A tempestade desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a descoberto as falsas e supérfluas seguranças com que construímos os nossos programas, os nossos projetos, os nossos hábitos e prioridades. Mostra-nos como deixamos adormecido e abandonado aquilo que nutre, sustenta e dá força à nossa vida e à nossa comunidade. A tempestade põe a descoberto todos os propósitos de «empacotar» e esquecer o que alimentou a alma dos nossos povos; todas as tentativas de anestesiar com hábitos aparentemente «salvadores», incapazes de fazer apelo às nossas raízes e evocar a memória dos nossos idosos, privando-nos assim da imunidade necessária para enfrentar as adversidades.

Com a tempestade, caiu a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria imagem; e ficou a descoberto, uma vez mais, aquela abençoada pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos.

«Por que sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?» Nesta tarde, Senhor, a tua Palavra atinge e toca-nos a todos. Neste nosso mundo, que Tu amas mais do que nós, avançamos a toda velocidade, sentindo-nos em tudo fortes e capazes. Na nossa avidez de lucro, deixamo-nos absorver pelas coisas e transtornar pela pressa. Não nos detivemos perante os teus apelos, não despertamos face a guerras e injustiças planetárias, não ouvimos o grito dos pobres e do nosso planeta gravemente enfermo. Avançamos, destemidos, pensando que continuaríamos sempre saudáveis num mundo doente. Agora nós, sentindo-nos em mar agitado, imploramos-Te: «Acorda, Senhor!»

«Por que sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?» Senhor, lanças-nos um apelo, um apelo à fé. Esta não é tanto acreditar que Tu existes, como sobretudo vir a Ti e fiar-se de Ti. Nesta Quaresma, ressoa o teu apelo urgente: «Convertei-vos…». «Convertei-Vos a Mim de todo o vosso coração» (Jl 2, 12). Chamas-nos a aproveitar este tempo de prova como um tempo de decisão. Não é o tempo do teu juízo, mas do nosso juízo: o tempo de decidir o que conta e o que passa, de separar o que é necessário daquilo que não o é. É o tempo de reajustar a rota da vida rumo a Ti, Senhor, e aos outros. E podemos ver tantos companheiros de viagem exemplares, que, no medo, reagiram oferecendo a própria vida. É a força operante do Espírito derramada e plasmada em entregas corajosas e generosas. É a vida do Espírito, capaz de resgatar, valorizar e mostrar como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espetáculo, mas que hoje estão, sem dúvida, a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiros e enfermeiras, trabalhadores dos supermercados, pessoal da limpeza, curadores, transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho.
Perante o sofrimento, onde se mede o verdadeiro desenvolvimento dos nossos povos, descobrimos e experimentamos a oração sacerdotal de Jesus: «Que todos sejam um só» (Jo 17, 21). Quantas pessoas dia a dia exercitam a paciência e infundem esperança, tendo a peito não semear pânico, mas corresponsabilidade! Quantos pais, mães, avôs e avós, professores mostram às nossas crianças, com pequenos gestos do dia a dia, como enfrentar e atravessar uma crise, readaptando hábitos, levantando o olhar e estimulando a oração! Quantas pessoas rezam, se imolam e intercedem pelo bem de todos! A oração e o serviço silencioso: são as nossas armas vencedoras.

«Por que sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?» O início da fé é reconhecer-se necessitado de salvação. Não somos autossuficientes, sozinhos afundamos: precisamos do Senhor como os antigos navegadores das estrelas. Convidemos Jesus a subir para o barco da nossa vida. Confiemos-Lhe os nossos medos, para que Ele os vença. Com Ele a bordo, experimentaremos – como os discípulos – que não há naufrágio. Porque esta é a força de Deus: fazer resultar em bem tudo o que nos acontece, mesmo as coisas más. Ele serena as nossas tempestades, porque, com Deus, a vida nunca morre.

O Senhor interpela-nos e, no meio da nossa tempestade, convida-nos a despertar e ativar a solidariedade e a esperança, capazes de dar solidez, apoio e significado a estas horas em que tudo parece naufragar.
O Senhor desperta, para acordar e reanimar a nossa fé pascal. Temos uma âncora: na sua cruz, fomos salvos. Temos um leme: na sua cruz, fomos resgatados. Temos uma esperança: na sua cruz, fomos curados e abraçados, para que nada e ninguém nos separe do seu amor redentor. No meio deste isolamento que nos faz padecer a limitação de afetos e encontros e experimentar a falta de tantas coisas, ouçamos mais uma vez o anúncio que nos salva: Ele ressuscitou e vive ao nosso lado. Da sua cruz, o Senhor desafia-nos a encontrar a vida que nos espera, a olhar para aqueles que nos reclamam, a reforçar, reconhecer e incentivar a graça que mora em nós. Não apaguemos a mecha que ainda fumega (cf. Is 42, 3), que nunca adoece, e deixemos que reacenda a esperança.

Abraçar a sua cruz significa encontrar a coragem de abraçar todas as contrariedades da hora atual, abandonando por um momento a nossa ânsia de omnipotência e possessão, para dar espaço à criatividade que só o Espírito é capaz de suscitar. Significa encontrar a coragem de abrir espaços onde todos possam sentir-se chamados e permitir novas formas de hospitalidade, de fraternidade e de solidariedade. Na sua cruz, fomos salvos para acolher a esperança e deixar que seja ela a fortalecer e sustentar todas as medidas e estradas que nos possam ajudar a salvaguardar-nos e a salvaguardar. Abraçar o Senhor, para abraçar a esperança. Aqui está a força da fé, que liberta do medo e dá esperança.

«Por que sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?» Queridos irmãos e irmãs, deste lugar que atesta a fé rochosa de Pedro, gostaria nesta tarde de vos confiar a todos ao Senhor, pela intercessão de Nossa Senhora, saúde do seu povo, estrela do mar em tempestade. Desta colunata que abraça Roma e o mundo desça sobre vós, como um abraço consolador, a bênção de Deus. Senhor, abençoa o mundo, dá saúde aos corpos e conforto aos corações! Pedes-nos para não ter medo; a nossa fé, porém, é fraca e sentimo-nos temerosos. Mas Tu, Senhor, não nos deixes à mercê da tempestade. Continua a repetir-nos: «Não tenhais medo!» (Mt 14, 27). E nós, juntamente com Pedro, «confiamos-Te todas as nossas preocupações, porque Tu tens cuidado de nós» (cf. 1 Ped 5, 7).

Vaticano, 27 de março de 2020

Para acessar a íntegra da cerimônia: https://youtu.be/mnzTIGpYxdA

quarta-feira, 25 de março de 2020

O eco de uma outra Beleza (1)


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Às vezes, escutando a Nona Sinfonia de Beethoven, digo a mim mesmo: “Se todas as coisas pudessem ser ditas com a força da beleza com que Beethoven exprime os seus sentimentos!”.

Sem essa perfeição, como é possível falar de coisas imensamente mais profundas?

Essa torrente de notas que é a Nona Sinfonia, essa respeitável catedral de notas que enche o espaço com a imponência e a perfeição da sua beleza, não é nada mais que o eco de uma outra Beleza e Perfeição.

As notas da sinfonia de Beethoven são uma pequenina e frágil semente, símbolo do ímpeto grandioso que entrou no mundo através de uma semente que foi colocada no ventre de Nossa Senhora. É ali que a alegria se tornou “fato”; é ali que a urgência do homem, a sua busca de um destino de felicidade recebe uma resposta; é ali que a intuição humana de uma paternidade misteriosa é sustentada pela certeza de que tudo aquilo que o coração sugere tem um caminho definitivamente traçado. E como a semente das notas de Beethoven é imponente aos ouvidos de quem as escuta, assim também a semente colocada no seio de Maria é irresistível. É como um canto irresistível, que nada impedirá, destinado a preencher não apenas um instante de emoção estética, mas todas as expressões do eu humano e todos os movimentos da vida do povo humano, isto é, todas as expressões da história do homem.

Se fosse possível falar de certas coisas com a potência intuitiva e expressiva de um gênio como Beethoven! Mas cada um de nós pode fazer aquilo que consegue: como as nossas crianças balbuciam, assim também nós adultos balbuciamos entre nós as grandes coisas pelas quais somos feitos e às quais somos destinados. Porém, um pouco as intuímos: um pouco de Beethoven existe – mais ou menos – em cada um de nós. E também por isso, escutando as notas geniais da música de Beethoven, o coração sempre se incendeia em nós.

Nós somos como uma sinfonia, pequena diante daquilo que deveria ser, um pouco mesquinha, um pouco amedrontada, um pouco intimidada. E, no entanto, em relação à Nona Sinfonia (que, apesar da sua grandiosidade, não dura, é destinada a desvanecer), a nossa catedral, não de notas, é feita para preencher a história. Deste destino nós nos aproximamos obedecendo a uma tarefa, aderindo com a nossa liberdade à tarefa que nos é confiada. E que tarefa é essa? A tarefa da vida é a paternidade e a maternidade; isto é, chegar à maturidade do amor. A tarefa da vida é imitar o Pai continuando o canto de Jesus na história.

Luigi Giussani

Para ouvir, use o link abaixo, copiando e colando no seu navegador
https://www.youtube.com/watch?v=JOaI93Ob2B4



[1] CHIERICI, Sandro; GIAMPAOLO, Silvia (orgs.). Spirto gentil: um invito all’ascolto dela grande musica guidati da Luigi Giussani. Milão: BUR Rizzoli, 2011, p.116 e 117.

terça-feira, 24 de março de 2020

Emergência COVID-19: uma perspectiva na fenomenologia.



A solidariedade humana é muito importante, mas não é suficiente. Para sustentar a força espiritual temos necessidade de uma abertura à transcendência para poder ver as coisas humanas sub specie aeternitates. Não só podemos mas devemos voar alto e colocarmo-nos desde um ponto de vista superior: a morte é uma passagem que todos deveremos realizar e que dá valor à vida vivida na sua plenitude. Portanto, é necessário agir aqui, bem e imediatamente; fazendo o possível mas, em seguida, entregarmo-nos a algo que transcende, porque não estaremos para sempre aqui. Imanência e transcendência se encontram e se entrelaçam na experiência de cada um de nós.

Com grande afeto a todos vocês.

Angela Ales Bello

sexta-feira, 20 de março de 2020

Informativo Coronavírus | Província Marista Brasil Centro-Sul


Neste informativo, em parceria com a TV Evangelizar, o Professor e Consultor de Biologia do Grupo Marista Claudio Piechnik orienta, junto ao Irmão Vanderlei Siqueira, Diretor executivo da Rede de Educação Básica do Grupo Marista e ao Pe. Márcio Luiz Fernandes, Padre e Professor do curso de Teologia da PUCPR, boas práticas para evitar ainda mais a contaminação pelo COVID-19. Além disso, os entrevistados trazem orientações oficiais para prevenção em cerimônias religiosas e como irão manter os métodos de ensino no ambiente escolar.

https://youtu.be/MQ8M2a3ZWbE

quarta-feira, 18 de março de 2020

"Tudo contribui para aqueles que amam a Deus"


De um diálogo entre amigos que se ajudam a viver as circunstâncias presentes com realismo e esperança.

"Ana, é verdade. Esta afirmação continua válida. Mais do que tudo, esta situação está obrigando a todos a viver de modo diferente, que é uma oportunidade para parar e pensar como levávamos a vida e o dia a dia, o que estava no centro - e uma oportunidade para recolocar no centro as coisas mais verdadeiras. Se você me perguntar, já me peguei por vários momentos olhando meu dia agora com um certa gratidão curiosa e pacífica, pela oportunidade de viver certas coisas e de certo modo que não estavam mais no meu horizonte, porque eu tinha construído uma vida onde elas não tinham espaço. 

É claro que há apreensão pelo futuro, pois a situação objetivamente é de crise, e haverá perdas e sofrimento, mas precisamos ter fé de que aí se esconderá algo para o destino de cada um. E mesmo que o amanhã seja diferente da nossa imagem dele - porque esta situação aguda deixará consequências mais duradouras, eu acho - devemos ter fé na maior criatividade de Deus, que vê tudo, e que sabe melhor que nós - “uma sabedoria que não é a nossa” diria Miguel Manara. 

Esperar a novidade com alegria e fé, como descrevia Gustavo Corção na “Descoberta  do Outro”. Livres diante de um futuro que agora, mais do que antes, não terá sido tão completamente engendrado por nós."

terça-feira, 17 de março de 2020

O bonito depoimento de uma brasileira residente em Roma


Caros amigos,
Essa é nossa segunda semana de quarentena coletiva em Roma. Primeiro foram as escolas e muita gente passou a trabalhar em casa, deixar as crianças com os avós não é uma opção. Fomos orientados a não sair e evitar lugares fechados e aglomerados.

Até que essa semana o governo “fechou” a Itália.

Agora somos autorizados a sair apenas para trabalhar (os que ainda saem para trabalhar), fazer compras ou ir para o hospital. Nada mais.
A natação e a capoeira das crianças estão fechadas, o dentista desmarcou a consulta do meu filho e sábado não vai ter o jogo do campeonato de futebol dele, a cia aérea cancelou minha passagem para Madrid, também não vai ter o show da Gal, a faculdade avisou que tampouco tem data para a próxima prova. As escolas já trabalham com a possibilidade de seguirem fechadas até maio.
O país inteiro fechou.

Nós também nos fechamos nesse novo arranjo doméstico porque eu ainda tenho que estudar, Gui ainda tem que trabalhar e Gael tem o cronograma da escola para cumprir. A professora tem nos orientado remotamente sobre o conteúdo de cada dia e nos vemos professores dos nossos filhos, ás voltas com o neolítico e os verbos auxiliares. Não sei o que seria de nós sem o Google.
Anita se encarrega de dar o toque de fim de mundo colocando a casa abaixo enquanto eu mando ela deixar Gael terminar o compiti de italiano.

Passamos o dia de pijama. Vi uma vizinha receber o correio de luvas, ninguém mais pega o mesmo elevador, sobe um vizinho de cada vez, é o protocolo.

Ontem fui ao mercado. Na rua, as poucas pessoas usavam luvas cirúrgicas e, na falta de máscara, lenço ou cachecol cobrindo o nariz. Fila na porta, todos respeitando a orientação de manter distância uns dos outros, a entrada contingenciada, mais gente fora do que dentro do mercado. Cinco de cada vez.
Ninguém reclama.
Pela primeira vez em 6 anos não sou a única com carrinho lá dentro, os italianos, em geral, só compram o que podem carregar, mas agora estão fazendo dispensa e já faltam alguns produtos nas prateleiras. Um corredor para cada pessoa, ninguém se esbarra, o alto-falante fica repetindo para respeitarmos a distância mínima. Na volta pra casa, reparo o comércio fechado, os poucos cafés abertos espaçaram as mesas mas estão desertos. Estamos todos isolados em casa.

Ontem, depois do anúncio da OMS decretando a pandemia, outros países começaram a adotar as mesmas medidas para deter o avanço do vírus que, por menos letal que seja, contamina tanto que mata muito. Na maioria dos casos, idosos e pessoas com imunidade baixa e doenças pregressas. Mas não só elas.

A flor no asfalto é a solidariedade. Não vejo, entre as pessoas de meu convívio, pânico de ficar doente ou medo pelas nossas crianças que, ao que parece, não são páreo para o coronavírus. Mas estamos todos cuidando de quem não tem defesas suficientes para ele. Eu cuido do morador de rua que dorme no frio, embaixo da marquise do meu prédio, das senhorinhas que cumprimento no mercado, do senhor da loja de molduras. E, aqui em Roma, essas pessoas viraram a prioridade de todos. Pensamos coletivamente numa onda de cuidado com o outro, esse desconhecido, que eu nunca tinha vivido antes. As crianças aprenderam a “tossir nos cotovelos” e o fazem até em casa. Foram ensinadas que são estratégicas para conter a ameaça.

É triste, mas também é bonito, sabem?

Como escreveu por aqui meu amigo Francesco, não há saída que não passe pela reconstrução paciente de uma resposta coletiva aos desafios. Talvez seja didático estarmos vivendo, todos, ao mesmo tempo, essa crise. Fica evidente que o engajamento de cada um de nós, pessoa a pessoa, é a melhor, se não a única, defesa diante a pandemia. Ninguém pode dar-se ao luxo de ser negligente. Acho que ficaremos com um aprendizado importante depois que tudo isso passar.

Também pela primeira vez testamos uma nova organização do trabalho. Ao mesmo tempo pessoas do mundo todo estão trabalhando de casa, empresas e repartições com carga horária e staff reduzidos. Talvez esteja sendo estabelecido um novo paradigma. Ainda não sabemos qual será o saldo, a história nos ensina que evolução nem sempre é progresso. Mas eu, que não posso evitar a esperança, acredito que tiraremos proveito desses dias de isolamento, quando não podemos sequer nos abraçar, tocar e beijar. E, apesar disso, acredito que esse vírus também possa desencubar a humanidade em nós.

Mas faremos esse balanço depois.

Por hora, lavem as mãos, ensinem as crianças, cuidem dos idosos e, se puderem, amigos, fiquem em casa. E mandem seus funcionários para casa. Não viajem. É preciso identificar e curar os que contraíram a doença antes que ela se espalhe. O vírus já está aí, no nosso Brasil, não o subestimem. Cobrem das autoridades, não acreditem em quem diz que “é só uma gripe”, - eu já fui essa pessoa - não é! Não paguem para ver porque o preço é a vida dos mais frágeis entre nós. As teorias conspiratórias só distraem até que os médicos comecem a escolher quem, entre os necessitados, irão entubar. Até que morra a avó de um amiguinho dos nossos filhos. Até que o colega de trabalho safenado fique entre a vida e a morte numa UTI.
O momento não é de pânico, mas de cuidado e responsabilidade. E união e solidariedade.

Essa mensagem é também um agradecimento pela preocupação e carinho que tenho recebido nos últimos dias. Muito obrigada, aqueceu meu coração nesse inverno que ainda persiste por aqui. Mas estamos todos diante o mesmo desafio, meus caros, é preciso assumir esse compromisso.

Há um mês a China era longe, há três semanas a Lombardia também era. Quando começou a quarentena eu também me revezava, junto com outras mães e pais, nos grupos de WhatsApp, entre o desespero de ter que encaixar as crianças, de repente, nos compromissos dos dias úteis e os memes - como nós, os italianos também reagem com bom humor às adversidades. Hoje, em Roma, já não podemos ignorar que o mundo diminuiu e que hoje somos todos vizinhos.

Desejo que meus conterrâneos não deem chance para a doença no calor de nossa terra.

Cuidem-se. Uns dos outros. Fiquem firmes. Sairemos melhores dessa.

quinta-feira, 5 de março de 2020

Eu estou convosco, estou à vossa disposição



No dia 4 de março de 2020, padre Luigino (Luís) Valentini realizou sua última e definitiva Viagem para a casa do Pai.
A vida toda ele viveu em longas viagens atravessando o Oceano, sobretudo entre Itália e Brasil. Ao Brasil, ele, missionário italiano, chegou em 1970 para servir a Igreja numa paroquia da periferia de São Paulo (São Mateus). E ao Brasil, à Igreja do Brasil, ao povo brasileiro e especialmente as suas crianças, dedicou a vida inteira.
Padre Luís, no Brasil apelidado Gigio, era um filho de dois mundos: nascido em Porto San Giorgio, na Itália, no dia 16 de julho de 1935, se tornou em 2016 cidadão honorário da cidade de São Paulo no Brasil, pelo reconhecimento de suas atividades educativas. Com efeito, no Brasil construiu creches, reforços escolares, casas de acolhida e oficinas de artesanato. E construiu laços de caridade entre Itália, Brasil e Argentina, para sustentar essas obras, educando assim à caridade tantas pessoas que de longe e de perto contribuíram: trabalhando nelas ou contribuindo à manutenção por meio do apoio econômico. Dentre elas, todas criadas nas regiões periféricas das grandes metrópoles brasileiras, lembramos: em São Paulo, a Associação Menino Deus que atende 1070 pessoas contando com o  Centro de Educação Infantil Menino Deus, creche que atende crianças de 1 a 4 anos; o Projetinho acolhedor que atende meninos de 5 anos; dois centros para crianças e adolescentes (6 a 14 nos); um centro para a Juventude (de 15 a 17 anos); um Núcleo de Convivência para Idosos; uma unidade de Alfabetização de adultos; um curso de beleza e um curso de moda. Em Brasília, a Associação Mãe dos Homens atende 154 crianças de 2 a 4 anos. Em Belo Horizonte, as Obras Educativas Padre Giussani atendem 769 pessoas na forma de creches, escolas e associação esportiva. Na Argentina, a Fundación cultural y Educastiva Nuestra Señora de Lujan atende cerca de 300 pessoas. Uma obra análoga em Camaçari, importante cidade industrial perto de Salvador, também já está em funcionamento. Além de ter dado vida a estas obras, padre Luís acompanhava, visitava sistematicamente e buscava apoios para cada uma delas.
Padre Gigio se fazia presente também na vida das pessoas que encontrava como amigo, conselheiro, sacerdote; contagiava com seu entusiasmo e envolvia em sua aventura missionária. Por isto, ele era profundamente amado por todos os que o encontravam, no Brasil e na Itália. O encontro com ele mudou a vida de inúmeras pessoas. Como escreveu um deles, “nenhum de nós seria o que é sem aquela semente que continua a germinar, incansavelmente jovem dentro de nós, seguindo um Mistério que ‘renova a juventude’, como era evidente em Pe Luigi”.[1]  “Este modo de ser, cheio de vida e de entusiasmo, comunicava-se a quem estava próximo dele, e também nós, jovens, vivíamos o mesmo entusiasmo e com o mesmo ímpeto missionário”, escreveu outro, que o acompanhou quando jovem em sua missão no Brasil[2]. 
No campo intelectual, a contribuição de padre Valentini no Brasil se destacou, por ter sido um dos pioneiros da introdução da Fenomenologia no Brasil com sua tese de doutorado e com sua participação na fundação do Centro Fenomenológico junto a Pontifica Universidade Católica de São Paulo.[3]
Na vida da Igreja, padre Luís buscou a seiva para alimentar sua ação missionária: a arquidiocese de Fermo a que pertencia, o Movimento Comunhão e Libertação, que ele contribuiu ativamente para introduzir em sua terra natal e no Brasil, a Congregação do Amor Misericordioso e na amizade com figuras que se destacaram na vida do catolicismo contemporâneo.  Através das vicissitudes belas ou difíceis de sua vida, como ele mesmo declara em sua autobiografia: “A Misericórdia foi uma realidade presente em toda a minha vida” (2017, p. 21) [4]
O que o animava nesta dedicação incansável? Ele mesmo nos diz em seu depoimento:
“A nossa fraqueza não nos define, não nos derrota; a nossa fraqueza é superada pela força de Deus, pela força de Jesus Cristo que venceu a morte, venceu a coisa mais terrível que existe; e nos diz: Eu estou convosco, estou à vossa disposição”.
Hoje o sabemos definitivamente participe da vida de Cristo vitorioso sobre a morte.




[1] VALENTINI, Luigi. Além do mar. Além do Homem. São Paulo: Companhia Ilimitada, 2017, p. 101).
[2] Idem, p. 102.
[3]VALENTINILuigino. Idéia de horizonte e mundo na fenomenologia Husserliana. Estudos psicologia. (Campinas) [online]. 1997, vol.14, n.3, pp.49-56.; Valentini, L. O Caminho Fenomenológico do Fazer. São Paulo: Edições Companhia Ilimintada, 1988.
[4] VALENTINI, Luigi. Além do mar. Além do Homem. São Paulo: Companhia Ilimitada, 2017.