quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

É a ausência de um ideal que produz confusão

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Indiscutivelmente estamos vivendo tempos difíceis, e muitos são os sinais disso neste início de 2017. Diante das circunstâncias, podemos ser dominados por um senso de impotência e de desesperança que abriria as portas para a passividade e a indiferença.
Mas, o que nos cabe é, na verdade, compreender as razões da atual situação e trabalhar para uma mudança profunda no que diz respeito às raízes dos males que afloram hoje.
Uma entrevista concedida por Luigi Giussani, no já longínquo 1992, referente à situação italiana daquela época, conserva hoje uma extraordinária atualidade e sua leitura pode ser iluminadora para o nosso presente. O texto integral da entrevista encontra-se num livro publicado no Brasil em 2001, O eu, o poder, as obras [1].
Nele, o sacerdote italiano afirma que o país lhe parece “um revolvimento de terra, um terremoto, onde quem empurra mais consegue livrar-se de mais pedras que entulham o terreno. É uma situação civil em que não há um ideal adequado, não há nada que ultrapasse o aspecto utilitarista. Um utilitarismo buscado sem qualquer perspectiva ideal” [2]. E, conclui: “Isso não vai durar. O temor é de que isso desencadeie conflitos sem fim” [3]. O panorama contemporâneo do Brasil evidencia esta questão: por exemplo, estamos assistindo a graves conflitos no sistema prisional, decorrentes em grande parte da omissão dos políticos e da sociedade civil diante dos problemas relacionados a este sistema. Essa omissão por sua vez deve-se à prevalência, nos últimos anos, de uma lógica utilitarista, individualista e consumista em todos os níveis da sociedade; e de um endêmico sistema de corrupção que destruiu a vida política do país.
De onde vem este clima social e sua potencial carga destruidora? Giussani (2001) assinala que a causa profunda disso é o fato de que “nada foi proposto a todas essas gerações de homens, exceto uma coisa: a preocupação utilitarista de seus pais” [4], que consiste, sobretudo, na afirmação “do deus dinheiro ou a segurança de uma vida abastada. De uma vida sem riscos, feita somente de coisas, sem risco algum”. Essa foi uma posição decorrente talvez até de um desejo aparentemente bom de “tornar menos difícil a vida dos próprios filhos”. Mas é preciso reconhecer que “é preciso um ideal, uma esperança” [5], para poder realizar o desejo de uma vida boa. É preciso um horizonte.
Apesar do cenário ruim, Giussani (2001) afirma que a esperança deriva do fato de que, paradoxalmente, observa-se dentro deste contexto “pessoas com uma sensibilidade rara, difícil de se encontrar. É um fato ocasional e transversal. Esperamos que estas pessoas possam dar o que têm. Assim conseguiríamos conter, limitar os danos” [6]. O fundador de Comunhão e Libertação refere-se também a experiências de “alguns judeus e alguns muçulmanos que parecem ser os mais próximos da sensibilidade que pode ir além do seu próprio horizonte” [7]. Pois o causa, a raiz da crise, para ele, se encontra justamente no “Ocidente cristão”. E está ligada a um “problema de educação”: no catolicismo ocidental, “não foi transmitido o método para se captar o núcleo dos valores, sua razão última, a gênese. E as consequências que os valores podem ter” [8]. Pois, fundamentalmente, “é a ausência de um ideal que produz confusão” [9]. A confusão, ainda segundo Giussani (2001), ocorre “quando a pessoa não admite haver nela uma parte de traição, de falta de vontade de perseguir o ideal que cada um carrega consigo (para os cristãos é o reconhecimento do pecado original)” [10]. Quando ocorre esta negação, a pessoa “não é mais autêntica, não é mais verdadeira em nenhuma relação. Porque esquece a verdade existencial inicial, isto é, que a mesquinhez, a própria miséria, a preguiça, a maldade ofuscam o coração do homem, que é constituído pelo ideal. O pecado original é um mistério sem o qual não entendemos mais nada” [11].  O Ocidente quis cancelar este mistério “porque aceitá-lo significaria ter de admitir o Salvador” [12].
Mas quando existe um ideal de vida humana, inevitavelmente ele suscita o interesse das pessoas “que, de qualquer forma, se reconhecem amigas e colaboradoras em vista do ideal de uma humanidade melhor e que também procuram encontrar os instrumentos para realizar esse ideal. Isso é um povo” [13]. E o mundo, hoje, odeia os cristãos, “porque afirmam que o ideal não é um princípio abstrato, mas um bem presente em um povo que faz história” [14].
A presença dos cristãos na sociedade, no mundo de hoje, é condição para que o encontro com o ideal seja possível a todos os homens. A omissão desta presença condena o mundo a permanecer em sua confusão.
 
Notas:
[*] ANTHONISZ, Cornelis. A Queda da Torre de Babel, 1547. Disponível aqui.
[1] GIUSSANI, Luigi. Povo e poder (pp. 211-224). In: GIUSSANI, Luigi. O eu, o poder, as obras: contribuição de uma experiência. São Paulo: Cidade Nova, 2001.
[2] Giussani, 2001, p. 211.
[3] Giussani 2001, p. 211.
[4] Giussani 2001, p. 212.
[5] Giussani 2001, p. 212.
[6] Giussani 2001, p. 211.
[7] Giussani 2001, pp. 212-213.
[8] Giussani, 2001, p. 214.
[9] Giussani, 2001, p. 214.
[10] Giussani, 2001, p. 214.
[11] Giussani, 2001, p. 215.
[12] Giussani, 2001, p. 215.
[13] Giussani, 2001, p. 215.
[14] Giussani, 2001, p. 216.

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