quarta-feira, 7 de junho de 2017

A mentira e a redução materialista: há saída?

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No último ano, um objeto voador cruzou a atmosfera terrestre trazendo ares de novidade nunca experimentados desde a última aparição do Halley. Seu nome: pós-verdade. Tal qual o cometa, porém, que já passara próximo a terra alguns milhares de vezes, o tal fenômeno tinha de novidade apenas a aparência e a capacidade de confundir os incautos. Os demais, esses já o conheciam de longa data pelo seu nome de batismo: mentira. Sabiam, também, que ela estava na origem de todas as crises atuais e que sua condenação se multiplicava na mídia. E, no entanto, ela segue no epicentro dos telejornais, sendo sua maior vítima o próprio homem. Se é fato sabido que uma vida na mentira trará apenas sofrimento e que sua convivência com a felicidade é impossível, como é possível que alguém escolha conviver com seu próprio algoz? Afinal, quem poderia ser tão burro a ponto de fazer uma escolha dessas?
A resposta é simples: o abandono da via da verdade – a convivência com a mentira – não se inicia pela hipocrisia mais pungente, pelo ato criminoso mais abjeto, pelo cinismo mais estarrecedor. Pelo contrário, inicia-se quase como engano, imperceptivelmente, inadvertidamente, através do abandono de uma visão justa acerca do humano, em prol de uma visão insuficiente e redutiva. A mãe de todas as mentiras é a mentira sobre si mesmo. A crise moderna é mera consequência dessa redução original do humano.
Do ponto de vista econômico, a mais atual dessas reduções de que o ser humano é vítima é a redução materialista. Essa se manifesta da seguinte forma: à máxima econômica segundo a qual o homem responde a incentivos, sobrepõe-se outra, mais restritiva, segundo a qual o homem responde, exclusivamente, a incentivos econômicos ou materiais, sendo as posições que neguem a nova máxima categoricamente taxadas “insustentáveis”, “utópicas”. O homem jamais estaria disposto a abandonar o egoísmo e olhar para o lado. Entre duas cumbucas, escolho a mais cheia – a resposta é imediata e definitiva, ao inferno as considerações de ordem moral. Não há alternativa, a vida é assim... It's the economy, stupid!
De tal posição segue, naturalmente, a destruição da confiança e o esfacelamento do tecido social. Com o homem reduzido a lobo do homem, as instituições, agora falidas, não são mais instrumentos do bem comum, mas meras construções vazias, castelos de cartas através dos quais os lobos-alfa, detentores do poder, controlam o restante da alcateia, menos favorecida mas nem por isso menos perversa. Sem verdade não há sociedade.
Que exemplo melhor desse modus operandi do que o caso JBS? Nem bem terminou a confissão, já incorre em outro crime, dessa vez contra o sistema financeiro: conhecendo o tamanho do próprio delito e o montante desviado, sabe o impacto que a própria delação terá sobre os indicadores econômicos. Diante disso, vende reais e compra dólares – aposta contra o país que ajudou a destruir. A operação – caso claro de insider trading – é duplamente condenável, podendo ser explicada com o seguinte paralelo: primeiramente eu recruto uma gangue para furtar a fiação elétrica do meu bairro.  Quando eventualmente capturado, faço uma delação premiada, entregando meus comparsas. Minha confissão me garante a liberdade mas, nem bem escapei da condenação, vendo minha casa antes que meus crimes se tornem públicos – afinal, o comprador não sabe a quantas anda a rede elétrica da região. Quando minha infeliz contraparte porventura descobrir que minha casa não tem eletricidade, eu a compro de volta pela metade do preço. E, no processo, ganho duas vezes: primeiro na fiação roubada, depois na transação com a casa após o crime. E a confiança social vai pelo ralo.
De suma importância e reveladora da redução materialista, no entanto, é a posição que assume o presidente da empresa do caso relatado acima: verdugo e vítima. Verdugo, porque sobrecarrega o tecido social até ao limite, destrói os laços de confiança, ataca o sistema financeiro – enfim, faz um enorme mal social... –, mas também vítima: o mal que faz, o faz sobretudo a si mesmo. Não consegue sair da vida de crime. Não é livre, não pode viver em paz. Nem bem sai da Lava-Jato, já é réu em dois processos: um pela CVM, outro pela SEC americana. Ao reduzir tudo ao material, não está nunca satisfeito, depende do dinheiro para ser feliz. Condena-se a si mesmo a essa eterna escravidão. Perde duas vezes: além de não ser feliz – porque a mentira não entrega a felicidade prometida – é, também, reduzido a escravo. Não consegue escapar à teia materialista, vê-se condenado a procurar a felicidade naquele objeto incapaz de satisfazer o infinito desejo que traz dentro de si. Vive amarrado à sua tristeza, obrigado a viver como ladrão, nas trevas, no escuso, no ambíguo.
Outro exemplo possível da redução materialista é a dinâmica que assumiu a discussão previdenciária. Da reforma, precisamos: o dinheiro simplesmente não basta no atual sistema de benefícios. Não há para todos, faltará cedo ou tarde: para nós ou para nossos filhos. Com a destruição da confiança e da teia social, no entanto, o resultado é o jogo do empurra. Por que meus benefícios e não os de outrem? A minha aposentadoria, não! Se o caldo é pouco, minha cumbuca primeiro! Pouco importa se o sistema vai quebrar, pelo menos não serei eu o prejudicado. Não fazem todos assim? Não é assim que funcionam as coisas?
Situações como as acima não deixam dúvida de que se faz mister combater a corrupção, acabar com os privilégios, moralizar o país. Mas nada disso será possível enquanto não entendermos a raiz do atual problema: existe uma mentira original – consequência do materialismo moderno – que envenena as relações do homem com a realidade, tornando-a distante, estranha. No limite, sua inimiga, porque promete uma felicidade impossível e entrega apenas escravidão. Por isso, o maior gesto político é, nesse momento, o resgate de uma visão acerca do humano que o considere em toda sua infinita estatura: dentro de cada um existe uma promessa infinita, mas cuja realização é plenamente possível! Só disso pode nascer a capacidade de reconstrução do tecido social, a começar pelo mais cotidiano: a educação dos filhos, da comunidade. Através da retidão no trabalho e com a coisa pública. Sobretudo, pelo resgate da capacidade de confiar – prova maior de maturidade.
Essa é a promessa que o cristianismo se propõe a cumprir: “confiai, porque no fundo de tudo se encontra uma grande positividade. Eu venci a morte. Eu vos darei repouso. Estarei convosco todos os dias, até o fim do mundo”. E qual a forma como Cristo se propõe a cumprir essa promessa? Através da sua Igreja. Essa deve ser a forma a determinar nosso agir: nunca sós, nunca de maneira voluntarista, mas através da comunidade cristã, com a Igreja, como parte do corpo de Cristo.


Daniel Fachin Soares

Notas:
[*] MICHELAGELO. Schiavo che si ridesta. Mármore, 1525, Galeria da Accademia, em Florença.

2 comentários:

  1. Ótima reflexão. Basear a vida na mentira é um esforço insano, maligno, escravizante. Todos os dias o cristão luta com sua consciência para discernir verdade e falsidade em seu coração. Cristo é a Verdade, e ela nos abre Caminho e nos dá Vida.

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