terça-feira, 19 de março de 2019

"Há tempos são os jovens que adoecem"


Dizia Renato Russo em sua música:
A medida da maldade
Há tempos são os jovens que adoecem
Há tempos o encanto está ausente
E há ferrugem nos sorrisos
E só o acaso estende os braços
A quem procura abrigo e proteção
Meu amor, disciplina é liberdade
Compaixão é fortaleza
Ter bondade é ter coragem
Lá em casa tem um poço mas a água é muito limpa
Guilherme, um dos jovens assassinos de Suzano era filho de dois dependentes químicos e vivia aos cuidados do avô com dois irmãos menores. Tinha abandonado a escola e gastava muitas horas no final da tarde com seu amigo jogando videogames violentos, e provavelmente fazia parte de um grupo da obscura dark web onde transitam fóruns virtuais de traficantes de armas – esse mercado tragicamente florescente no contexto brasileiro atual. 
Esse fato chocante nos coloca uma pergunta: O que aconteceu com o nosso país, conosco e com as nossas famílias? Trata-se de uma crise educacional. 
Algumas considerações de Hannah Arendt nos ajudam a entender alguns elementos do processo histórico que levou a essa situação. Ao analisar a crise da educação nos EUA, aonde um ideal utópico de educação inspirado em Rousseau, colocou em cheque e minimizou a autoridade dos adultos (família e professores), assinala que “ao emancipar-se da autoridade dos adultos, a criança não foi libertada e sim sujeita a uma autoridade muito mais terrível e verdadeiramente tirânica, que é a tirania da maioria”. A criança fica “jogada a si mesma, ou a tirania de seu próprio grupo”. A autora assinala que a reação das crianças a esta situação, somente poderia ser “ou o conformismo, ou a delinquência juvenil e frequentemente uma mistura de ambos”. Privada da relação com uma figura educativa de autoridade, a criança não consegue desenvolver sua própria pessoa e sua liberdade. De fato, para que haja liberdade, o ser humano, ao seu nascer, precisa ser acolhido e amado, precisa de ser inserido em uma dinâmica relacional. Numa perspectiva cristã, esta é a expressão do ser humano ser imagem-e-semelhança de Deus-Trindade.  

Nesse sentido, o educador católico José Eduardo Ferreira Santos, ao refletir sobre a visão de educação de L. Giussani reafirma, como este, que 
o problema principal da sociedade moderna está na educação dos jovens, pois é através deles se constrói uma sociedade. E isso é o contrário do que o Brasil está fazendo. A educação verdadeira promove a unidade entre as pessoas, que cada vez mais vem sendo substituída por visões que valorizam apenas as competências, o mercado e a colonização cultura. Se educar é um risco, o que significa educar?
Para ele, a educação hoje não leva em consideração a pessoa humana na sua integralidade, “com suas exigências, desejos e a busca infinita de realizações”. Nessa perspectiva, Santos afirma que é preciso “favorecer o senso de pertencimento e a recuperação das tradições populares no âmbito da educação formal” o que, de certo modo, está na contracorrente homogeneizadora da pós-modernidade, onde a transitoriedade dos jovens e a perda dos referenciais ancestrais, leva-os ao desenraizamento”. Acerca do desenraizamento, Santos cita Bauman: 
[os jovens] estão se movendo porque foram empurrados – tendo sido primeiro desenraizados do lugar sem perspectivas por uma força sedutora ou propulsora poderosa demais e muitas vezes misteriosa demais para resistir. Para eles, essa angustiante situação é tudo, menos liberdade. 
Num famoso romance em que vislumbra a crise de sentido que acometerá a juventude ocidental a partir do fim do século XIX, Dostoievski assinala as razões profundas desse desenraizamento: a perda da relação com o Outro, como Deus. O romancista escreve que, para o ser humano, “é necessário saber e acreditar em cada momento que há em qualquer parte do mundo uma felicidade perfeita e calma, para tudo e para todos” e que “a lei da existência humana consiste em que o homem pode sempre inclinar-se perante o infinitamente grande” (...) “se privássemos o homem disso, este não quereria viver e morreria desesperado”.  
Nós cristãos sabemos que contra esse desespero mortal que vimos na tragédia de Suzano onde jovens se tornaram homicidas de si mesmo e dos outros, há somente um remédio: o encontro com Jesus Cristo. Que através do dom da nossa vida de cristãos, possamos dar concretude às vozes propositivas e aos lugares onde se encarna para os homens a maternidade da Igreja. Mas o que é a Igreja se não o lugar onde se pode experimentar o que diz Renato Russo no fim da canção: “Meu amor, disciplina é liberdade, compaixão é fortaleza, ter bondade é ter coragem”? E ainda, “lá em casa tem um poço” em que “a água é muito limpa”.
Onde a pessoa é ensinada a pertencer? O primeiro lugar de pertencimento é a família, aquele âmbito em que cada ser humano é recebido como “novo início do mundo” (Arendt). Que com a nossa ação e companhia, possamos ajudar as famílias, sobretudo aquelas que vivem em condição de pobreza. Que os pais que trabalham, fiquem atentos ao engano da sociedade de consumo, pois muitas vezes uma vida mais simples e econômica pode significar mais tempo gasto com os filhos.

Referências
Arendt, H. (1952/2003). Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectivas, pp. 230-231; p. 274.
Bauman, Z. (2001), Comunidade: A Busca por Segurança no Mundo Atual. São Paulo: Jorge Zahar, p. 101.
Dostoievski, F. Os demônios. São Paulo: Editora 34, p. 642.
Giussani, L. (2004). Educar é um risco. Bauru: EDUSC.
Santos, J. F. (2009). Considerações pedagógicas a partir de Luigi Giussani. Revista Pedagógica - Unochapecó 11(23).
Dado Villa-Lobos / Marcelo Bonfá / Renato Russo. Há tempos são os jovens adoecem. ·

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