quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Desmoronamento e ressurgimento: um olhar cristão para as vicissitudes do tempo presente

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A história humana segundo a compreensão judaico-cristã e bíblica chama-se historia salutis, ou história da salvação. De acordo com essa tradição, a trajetória do ser humano sobre a Terra revela um progresso contínuo. O que significa que, entre quedas, desvios, destruições, guerras e a presença do mal que age sempre impelindo o ser humano ao nada e à mentira com a possibilidade de destruição total de si e de tudo o que existe sobre a Terra, há uma contínua evolução em direção ao bem. Possível pela ação misericordiosa de Deus que sempre derrama graças e age nos corações dos homens de boa vontade e pela presença na natureza humana de um impulso livre para o bem, pois o ser humano foi feito à imagem e semelhança de Deus. Por isso, este tem em sua natureza a imagem de Deus que pode sempre reconhecer, se quiser, dentro do dinamismo da sua liberdade.
Com Cristo, acrescenta-se uma ulterior compreensão da historia salutis, ou seja, o “como” esse desenrolar-se da história acontece. A encarnação de Deus revela que a relação entre o divino e o humano se sucede dentro de um dinamismo de desmoronamento e ressurgimento. Este homem-Deus encarna em si o dinamismo de toda a trajetória humana sobre a terra: morrer e ressurgir, ser destruído e renascer. A destruição é resultado da presença do mal e o ressurgimento é resultado da presença da graça de Deus. No ser humano agem, portanto, estas duas forças – a dos demônios e a da graça –, além da própria razão e liberdade, como diziam os antigos monges do deserto. São Paulo afirma que essas duas forças sobre-humanas não têm peso igual, pois “onde abunda o mal, superabunda a graça” [1]. Por isso, a história pode ser chamada de história da salvação.
Estamos vivendo um momento em que a quase totalidade das pessoas reconhece ser um período particularmente dramático, onde o desmoronamento de uma civilização é evidente. Trata-se, para os olhares mais atentos, do desmoronamento de uma cultura. Que cultura? Para explicá-la sinteticamente nada melhor do que utilizar as palavras de um filósofo do século XIX que foi considerado por muitos como o profeta dos tempos modernos, Friedrich W. Nietzsche (1844-1900):
§125: Nunca ouviram falar de um louco que, em pleno dia, acendeu uma lanterna, correu para a praça do mercado e se pôs a gritar incessantemente: “Procuro Deus! Procuro Deus!”? Estando reunidos na praça muitos daqueles que, precisamente, não acreditavam em Deus, o homem provocou grande hilaridade. “Será que se perdeu?”, dizia um. “Será que se enganou no caminho, como se fosse uma criança?”, perguntava outro. “Ou estará escondido?” “Terá medo de nós?” “Terá emigrado?” “Terá partido para sempre?”, assim exclamavam e riam todos ao mesmo tempo. O louco saltou para o meio deles e trespassou-os com o olhar. “Vou dizer-lhes para onde foi!”, gritou! “Quem o matou fomos todos nós, vocês mesmos e eu! Os seus algozes somos nós todos! E como o fizemos? Como conseguimos esvaziar todo o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós, quando soltamos a corrente que ligava esta terra ao sol? Para onde se dirige ela agora? Para onde vamos nós? Para longe de todos os sóis? Não estaremos a precipitar-nos para todo o sempre? E a precipitar-nos para trás, para os lados, para a frente, para todos os lados? Será que ainda existe um em cima e um em baixo? Não andaremos errantes através de um infinito nada? Não sentimos o sopro do espaço vazio? Não está mais frio? Não, surgem noites cada vez mais noites? Não teremos de acender lanternas em pleno dia? Será que ainda não ouvimos o ruído que fazem os coveiros que enterram Deus? Ainda não nos terá chegado o cheiro da decomposição divina? Porque até os Deuses se decompõem! Deus morreu! Deus permanece morto! E nós matamos! [...] Quem nos limpará desse sangue? Qual água nos lavará? Que solenidades de desagravo, que jogos sagrados haveremos de inventar? A grandiosidade deste ato não será demasiada para nós? Não teremos de nos tornar nós próprios deuses, para parecermos apenas dignos dele? Nunca existiu ato mais grandioso, e, quem quer que nasça depois de nós, passará a fazer parte, mercê deste ato, de uma história superior a toda a história até hoje!”. Aqui o louco calou-se e fitou de novo os seus ouvintes; também eles se calaram e o olharam espantados. Ele, por fim, lançou ao chão a lanterna, que se desfez em pedaços e se apagou. “Cheguei cedo demais”, disse então, “o meu tempo ainda não é este. Este acontecimento extraordinário há de vir ainda, transita ainda, não chegou ainda aos ouvidos dos homens. É preciso tempo para o relâmpago e o trovão, é preciso tempo para a luz dos astros; os atos, mesmo depois de serem executados levam tempo para serem vistos e entendidos”. [...] Conta-se ainda que o louco entrou nesse mesmo dia em várias igrejas e aí cantou o seu Requiem eternam deo. Expulso e interrogado, dizem que se limitou a responder: “Para que servem estas igrejas se são os túmulos e os monumentos funerários de Deus?” [2].

Outro filósofo, Martin Heidegger (1889-1976), destaca, ao comentar este trecho, que Nietzsche não se refere meramente ao ateísmo comum, mas à negação da existência de qualquer coisa além da natureza física, visível e mensurável. “A ‘morte de Deus’, portanto, significa o desaparecimento da dimensão da transcendência, a anulação total dos valores ligados a ela, a perda de todos os ideias” [3]. Esta perda também pode ser encontrada, como afirma Nietzsche, em tantas igrejas e experiências religiosas (e este é o mal pior). Em outros escritos publicados como Fragmentos Póstumos enfatizava ainda:
o que estou relatando é a história dos dois próximos séculos. Descrevo o que virá, o que não poderá vir de outra forma: o advento do niilismo. [...] Esse futuro manifesta-se numa infinidade de sinais, esse destino anuncia-se por todas as partes; todos os ouvidos já sintonizam essa música do futuro. Já há muito tempo toda a nossa cultura europeia agita-se com uma tensão torturante que aumenta a cada década, como se se encaminhasse para uma catástrofe: inquieta, violenta, impetuosa. [4]

Passou-se um século, e temos que admitir que Nietzsche tinha razão: duas guerras mundiais e totalitarismos com muitos milhões de mortos, o crescimento da desigualdade, pobreza e fome como nunca antes vistos na história, o terrorismo... Mas isso é tudo? Não há nada acontecendo além disso? Um olhar atento que escrutina a vida presente pode nos revelar algumas novidades surpreendentes. A realidade é sempre surpreendente e imprevisível à razão humana. Quem poderia esperar que alunos de 12-17 anos tenham tomado quase duzentas escolas, organizadamente, dando um banho de moral, civilidade, mas, sobretudo, desejo de viver, como aconteceu em SP em 2015 para garantir um ensino de qualidade? Quem os comandou? Não foram eles mesmos? A fatalistamente chamada “juventude perdida”? Outro exemplo que pode ser apontado como o ressurgimento de uma nova cultura é a preocupação mundial com a ecologia e as mudanças climáticas. Os resultados do evento de Paris para diminuir a temperatura global, as pesquisas por alternativas aos combustíveis fósseis não podem ser um outro exemplo? Mas ainda não chegamos ao motivo principal deste artigo. Para que este ressurgimento ainda pouco visível possa ser mais evidente é preciso treinar o olhar. Observemos as pessoas. Há pessoas fazendo coisas extraordinárias à nossa volta. No meio do desmoronamento de povos e massas, há pessoas, ONGs, cientistas, jovens inventores, voluntários, famílias, crianças pobres, homens corajosos. Há pessoas que olham para o sol que nasce cada dia e dizem com simplicidade: “Olha aí, ele nasceu de novo hoje!” “E não fui eu quem o fez nascer...” Fazemos o convite para esse treino.  E este é o motivo principal deste artigo.

Ana Lydia Sawaya

Notas:
[*] Imagem extraída de http://imguol.com/c/noticias/c9/2015/11/17/17nov2015---o-sol-nascente-ilumina-o-ceu-acima-da-torre-de-uma-igreja-em-viena-na-austria-1447775358152_956x500.jpg.
[1] Cf. Rm 5, 20.
[2] Cf. NIETZSCHE, F. O insensato. In: NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
[3] REALE, G. Prólogo. In: REALE, G. O saber dos antigos: terapia para os tempos atuais. São Paulo: Ed Loyola, 2011, pp. 23-24.
[4] HEIDEGGER apud REALE (2011), p. 19. Refere-se ao terceiro volume, tomo II (11[411]).

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