sábado, 11 de março de 2017

Brasil: uma história de pilhagem e de falta de amor ao trabalho


“Perde-se o Brasil, Senhor (digamo-lo em uma palavra) porque alguns ministros de Sua Majestade não vêm cá buscar nosso bem, vêm buscar nossos bens.”
As palavras de P.e Antonio Vieira pregadas em Salvador, em 1641, diante do Vice-Rei, Marques de Montalvão, possuem uma impressionante atualidade. Na continuidade do discurso, Vieira define a origem do mal que assombra o Brasil, a atitude de “tomar o alheio”. O alheio é o bem comum que não pode ser instrumentalizado em benefício de um único indivíduo. E usa a tradicional analogia da medicina do corpo para definir este mal como uma doença que acomete o coração da república e cria aquela desordem do corpo social e político que, por um lado, leva à impunidade (faltando a justiça punitiva) e, por outro, à injustiça (faltando a justiça distributiva). 
El-rei manda-os tomar Pernambuco e eles contentam-se com o tomar. Este tomar o alheio é a origem da doença. Toma nesta terra o ministro da justiça? Sim, toma. Toma o ministro da república? Sim, toma. Toma o ministro da fazenda? Sim toma. Toma o ministro do Estado? Sim, toma. E como tantos sintomas lhe sobrevém ao pobre enfermo, e todos acometem à cabeça e ao coração, que são as partes mais vitais, e todos os atrativos e contrativos do dinheiro, que é o nervo dos exércitos e das repúblicas, fica tomado todo o corpo, e tolhido de pés e mãos, sem haver mão esquerda que castigue, nem mão direita que premeie; e faltando a justiça punitiva para expelir os humores nocivos, e a distributiva para alentar e alimentar o sujeito, sangrando-o por outra parte os tributos em todas as veias, milagre é que não tenha expirado.
Aqui está um diagnóstico que evidencia como os males atuais do Brasil remetem a uma raiz longínqua em que as relações de poder e os vínculos sociais e econômicos entre os homens se configuraram numa forma “doentia”. Vieira retrata o estabelecer-se de uma relação predatória entre os homens, e entre os homens e as coisas, relação que se limita a “tomar o alheio” fora de qualquer vivência de interação, interesse, conhecimento, afeição, em síntese sem labor, sem trabalho, sem ação verdadeiramente humana. Diante desta alteridade (significada pelo “alheio”), “eles contentam-se com o tomar”. E, com efeito, num sistema econômico inteiramente baseado na mão de obra escrava, não poderia surgir nenhuma cultura de amor ao trabalho.
Nas origens da Idade Média, situação potencialmente similar foi superada pela presença da Igreja, que deu vida ao monaquismo beneditino e às corporações de artes e ofícios nas cidades. Nesses âmbitos, o trabalho era dignificado e a ação humana encontrava sua plenitude no valor sacramental, associada à oferenda do próprio Cristo e à ação de Deus, eterno trabalhador. Surgia também um modo comunitário, cooperativo de trabalhar. Inaugurava-se assim, uma nova lógica da ação humana. Desse modo, o trabalho dos monges e dos artesãos reconstruiu a Europa, após o desmoronamento do Império Romano. Com o tempo porém, estabeleceu-se na Europa uma progressiva separação entre o trabalho e a vida religiosa. E já no século XVI a Igreja passou a viver uma separação entre a dimensão terrena e a ultramundana e passou a conceber, para si mesma, a segunda dimensão como terreno de presença: sua missão passa a ser apenas salvar as almas tendo em vista a vida eterna, o além. Ao mesmo tempo, o mundo começou a ser governado por uma lógica desatenta a tudo isto marcada pelo advento do capitalismo e do colonialismo, e a própria Igreja adotou essa lógica, de modo acrítico, para cuidar do temporal. A essa redução não fugiram as ordens religiosas que se encarregaram da evangelização do Brasil. Foi assim, que, por exemplo, todas elas usaram mão de obra escrava nas fazendas de suas posses ou em suas casas para providenciar a própria manutenção, deixando para si o cuidado com o espiritual.  
Se for verdade o que é descrito na pregação de Vieira e de outros pregadores do período colonial, como o franciscano frei Antonio do Rosário, a saber, que os engenhos do Brasil eram o inferno nesta terra, um inferno perversamente criado e mantido por senhores católicos, em cujas moendas foram moídas as vidas humanas de milhões de escravos africanos (parafraseando o próprio frei Rosário), na maior parte dos casos com a conivência e a participação da Igreja, é claro que a abolição da escravatura no século XIX (por sinal, ocorrida tardiamente no Brasil), não seria suficiente para que o país conseguisse se purificar da perversidade do sistema econômico de exploração do trabalho para enriquecimento próprio, tecido em seu berço.
Na história humana, as feridas que o mal provocou na vida dos povos se emendam com um longo caminho de redenção. Mas a condição primeira é que haja memória; e não esquecimento. E que pela memória, um povo realize um juízo que implica numa maneira nova de se colocar e construir. Pelo juízo, podem ocorrer novos inícios na história, conforme Hannah Arendt. Para isso, serve também a consciência histórica, o conhecimento histórico, como afirma Paul Ricoeur. Mas, se o passado e suas feridas são enterrados por uma amnésia coletiva e por uma superficial atitude de superação, se não há memória e juízo, estas feridas continuarão brotando na terra do presente, e alimentando seus efeitos perversos para o futuro. Nesse sentido, os efeitos do sistema escravocrata secular na história do Brasil são mais profundos e mais perversos do que os dos vinte anos de recente ditadura militar. Não basta evidentemente uma leitura superficial da história conforme a que vigora nos manuais escolares, segundo a qual a responsabilidade de tudo isto foi de Portugal. Evidentemente, foi sim, mas os senhores de engenho, eram também, em grande parte, brasileiros; e seus descendentes continuam sendo hoje os proprietários de grandes fortunas e terras no Brasil, e boa parte deles também exerce atividade política.
Além disso, a concepção de trabalho que hoje vigora nos diversos níveis da sociedade é de uma obrigação a ser cumprida para poder ter em troca a liberdade de consumir, de divertir-se. O início da semana é um horror e os feriados, o fim almejado; enfim, o ideal consumista. A propósito, pesquisas têm mostrado que o brasileiro é um povo que poupa muito pouco. Não seria este também um resquício da concepção do trabalho de um escravo, que em troca de sua mão de obra espera apenas pela sua manutenção por parte de seu dono, sem ter a participação ao sentido da obra que sua mão constrói?
Retomando a metáfora de Vieira, a doença não está curada e ela continua agindo e se espalhando no corpo... E então, por que maravilhar-se de todo o sistema de corrupção endêmico que a Lava Jato está evidenciando? Pela falta de uma cultura do trabalho, consolidada ao longo de séculos, o Brasil carrega ainda hoje uma ferida profunda que continua sangrando: os fenômenos atuais de corrupção, a pilhagem política (e em todos os níveis do funcionalismo público), são o sinal grave de sua permanência. É preciso cuidar disso. É preciso enfrentar o problema. A esse propósito afirma a encíclica de São João Paulo II, Laborem Exercens, escrita em 1981: 
É MEDIANTE O TRABALHO que o homem deve procurar-se o pão quotidiano e contribuir para o progresso contínuo das ciências e da técnica, e sobretudo para a incessante elevação cultural e moral da sociedade, na qual vive em comunidade com os próprios irmãos. E com a palavra trabalho é indicada toda a atividade realizada pelo mesmo homem, tanto manual como intelectual, independentemente das suas características e das circunstâncias, quer dizer toda a atividade humana que se pode e deve reconhecer como trabalho, no meio de toda aquela riqueza de atividades para as quais o homem tem capacidade e está predisposto pela própria natureza, em virtude da sua humanidade. Feito à imagem e semelhança do mesmo Deus no universo visível e nele estabelecido para que dominasse a terra, o homem, por isso mesmo, desde o princípio é chamado ao trabalho. O trabalho é uma das características que distinguem o homem do resto das criaturas, cuja atividade, relacionada com a manutenção da própria vida, não se pode chamar trabalho; somente o homem tem capacidade para o trabalho e somente o homem o realiza preenchendo ao mesmo tempo com ele a sua existência sobre a terra. Assim, o trabalho comporta em si uma marca particular do homem e da humanidade, a marca de uma pessoa que opera numa comunidade de pessoas; e uma tal marca determina a qualificação interior do mesmo trabalho e, em certo sentido, constitui a sua própria natureza.
O trabalho, portanto, é inerente ao ser humano; e não uma opção. Quem dispensa o trabalho perde em humanidade; quem usa o trabalho do outro omite-se do próprio empenho com o real, da possibilidade de deixar seus traços na história e de criar.
O trabalho não é tomar o alheio, mas é cuidar do alheio, ou seja, de uma parte da realidade ao nosso alcance: o médico cuida da saúde e da vida dos doentes; o professor cuida da educação e da instrução dos alunos; o pedreiro cuida da construção do prédio; quem trabalha em casa cuida de uma família e da casa para que todos possam viver com dignidade ali. 
Por isso, o amor ao próprio trabalho e a posse do significado e do valor daquilo que se realiza com o próprio trabalho, está na base da mudança que o Brasil almeja. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário