quarta-feira, 2 de maio de 2018

O Estado, a ciência e o valor da pessoa: o caso de Alfie Evans


O pequeno Alfie Evans morreu no dia 28 de abril em Liverpool, depois de uma crise respiratória. No dia 9 de maio de 2016, Alfie Evans nasceu, em Liverpool, filho de Thomas e Kate James, na época respectivamente de 19 e 18 anos. Aos 14 de dezembro de 2016, a criança foi internada no Hospital Alder Hey devido a convulsões que lhe causavam sofrimento. Aos 3 de agosto de 2017, após meses de tentativas fracassadas de estabelecer um diagnóstico e consequente tratamento, os pais relataram que o hospital havia tomado a decisão de remover a ventilação por considerar a vida de Alfie de baixa qualidade. E aos 24 de agosto de 2017, Tom e Kate começaram a campanha do “Exército de Alfie”, procurando um hospital pronto para receber seu filho e um neurologista que pudesse fazer um diagnóstico. No dia 1 de dezembro de 2017, o hospital pediu à Corte Suprema para remover a ventilação. Para os médicos, “sua vida não faz sentido”... E aos 19 de dezembro, numa audiência pública na Divisão Familiar do Supremo Tribunal de Londres, o juiz Anthony Paul Hayden decretou que os aparelhos de ventilação artificial do Hospital deveriam ser desligados, pois segundo o Hospital Alder Hey o tratamento contínuo para a manutenção da vida “não seria do interesse de Alfie”. Os pais da criança, Tom Evans e Kate James lutaram em todas as instâncias do Judiciário para que o suporte artificial à vida de Alfie não fosse descontinuado e o bebê pudesse ser transferido para outro hospital, na esperança de ter sua condição diagnosticada com exatidão.  Mas médicos e juízes juntos sob o já citado pretexto de estarem agindo “no melhor interesse” de Alfie, decidiram dar ao menino, simplesmente uma sentença de morte. Não quiseram deixá-lo sair do hospital. Não quiseram fornecer a alimentação necessária para a sobrevivência da criança. Os juízes da Corte inglesa não aceitaram a oferta da Itália que concedeu a cidadania italiana a Alfie para que ele pudesse ser cuidado no Hospital Bambin Gesù em Roma. “No melhor interesse de Alfie”, assim justificaram. Nem sequer quiseram receber a Diretora do mesmo hospital que viajou para Liverpool afim de discutir com os médicos a possível transferência da criança. 
No protocolo de morte, tornado público antes da separação do ventilador, a equipe médica do hospital assim escreveu: “A partir desse momento a equipe médica continuará a observar a situação de Alfie e seu nível de conforto, e vai atender suas necessidades e as de sua família, com discrição, pronta para prestar solicitude e apoio”. E depois de respirar sozinho por alguns dias Alfie morreu por uma crise respiratória.
Conforme afirma Padre Paulo Ricardo, no caso de Alfie “não há porque se falar, portanto, nem mesmo de 'obstinação terapêutica'. Não chegaram a se esgotar sequer todas as possibilidades de tratamento médico. A decisão do Hospital Alder Hey e das mais altas instâncias do Judiciário inglês, que têm o caso nas mãos, é mais despótica do que se poderia pensar” [1]. Padre Paulo Ricardo aponta para as semelhanças com o caso Charlie Gard:  Charlie morreu por causa de uma condição genética rara e  transferi-lo para outro hospital e tentar outro tratamento poderia até não dar em nada; mas os pais tinham o direito de fazê-lo, e os médicos não tinham direito nenhum de impedi-los. Em casos como esse, a família deve ser a “primeira instância” responsável por uma decisão, não os juízes ou uma junta médica. Em ambos os casos, “o Estado tem tomado arbitrariamente das famílias o poder natural que elas detêm sobre as crianças”. De modo que certas classes de “especialistas” detêm a certeza do que é melhor para as pessoas; e se o parecer desses “especialistas” entra em choque com o desejo dos pais, o Judiciário vai se alinhando cada vez mais à tendência de se sobrepor às famílias em questões fundamentais para a vida e o futuro dos nossos filhos. 
Um jornalista italiano, Andrea Zambrano, publicou a carta de condolências enviada aos pais pelo Hospital Alder Hey: “O pequeno Alfie acaba de receber o mais grotesco e sádico dos pêsames. Ele chega diretamente da direção do hospital Alder Hey, que teimosamente queria, provocou e obteve sua morte. Uma declaração que não pode deixar de ser hipócrita e diabolicamente provocativa: 'Queremos expressar nossas sinceras condolências à família de Alfie neste momento extremamente doloroso. Todos nós expressamos sentimentos de proximidade a Alfie, Kate, Tom e toda a sua família e nossos pensamentos estão com eles. Esta tem sido uma jornada devastadora para eles e pedimos que sua privacidade e a privacidade da equipe de Alder Hey sejam respeitadas'”. Zambrano comparou esta carta com um documento de 1943. Em 1943, o psiquiatra nazista Ernst Illing assim se dirigiu aos pais de uma das crianças assassinadas por departamentos especiais para crianças, criados pelo Terceiro Reich, encarregados de eliminar as crianças deficientes da infância: “Devo comunicá-los do meu pesar em informá-los que a criança morreu em 22 de janeiro de 1943 devido à inflamação do trato respiratório (...). Ele não havia feito nenhum progresso durante a sua estadia aqui. Certamente nunca teria sido útil para a sociedade e precisaria de cuidados vitalícios. Sejam confortados pelo fato de que vosso filho teve uma morte doce”. Tratava-se do programa de seleção eugênica da sociedade que caracterizava o nazismo. Um programa que, em nome da raça nórdica e perfeita e do darwinismo social (que por sinal nasceu na Inglaterra, assim como a eugenia social de Francis Galton), levou à morte mais de 5.000 crianças que tinham sido diagnosticadas com distúrbios de retardo mental ou síndrome de Down, microcefalia e hidrocefalias, malformações dos membros ou lesão medular, paralisia cerebral etc.
O relato de 1943 fala de uma criança que morreu de complicações respiratórias e nele também ocorre o tema do fracasso do progresso clínico. Mas o que é perturbador é o tema da utilidade social daquela criança. O mesmo termo que ocorre hoje com a decisão do juiz sobre a inutilidade da vida de Alfie Evans e, portanto, o conceito de melhor interesse que ativou o protocolo de morte para Alfie. O médico nazista informa aos pais que a criança “teve uma morte doce”; assim como o protocolo de Alfie fala em “nível de conforto” [2].
Diante dos limites da ciência médica em proporcionar conhecimentos e tratamentos para um mal desconhecido, entra em jogo o “Estado total” — o Estado que está “para além do bem e do mal”, idealizado pelo filósofo inglês Thomas Hobbes, e a respeito do qual Hannah Arendt comenta em sua obra Origem do totalitarismo que não necessariamente aconteceria de forma ditatorial, mas também em regimes aparentemente democráticos. A esse Estado compete a decisão última sobre a vida e a morte dos seus súditos. Nesse sentido, a história de Alfie Evans é um grave e doloroso sinal de alerta. 
Cabe-nos reafirmar, com decisão, nos nossos ambientes, o fato de que existe algo no ser humano que não pode ser reduzido aos determinismos das circunstâncias, mas “é relação direta com o infinito” e este é o fundamento de sua liberdade [3]. Pois, “sem a defesa do relacionamento com Deus, o homem está à mercê da concepção útil ao poder”. Assim, “o antipoder é o amor: e o divino é a afirmação do homem como capacidade de liberdade, isto é como irredutível capacidade de perfeição, de alcançar a felicidade, como irredutível capacidade de chegar ao Outro, Deus”. Por isto, só o amor é a justa medida para o ser humano e a garantia de sua dignidade. É isso que Cristo veio fazer: trazer-nos o Amor. E como precisamos Dele!

Notas:
[1] EQUIPE CHRISTO NIHIL PRAEPONERE. Alfie Evans: a mais nova vítima do Estado total. Disponível em: <https://padrepauloricardo.org/blog/alfie-evans-a-mais-nova-vitima-do-estado-total>. Acesso em 28 Abr. 2018.
[2] ZAMBRANO, Andrea. La Nuova Bussola Quotidiana. Disponível em: <http://www.lanuovabq.it/it>. Acesso em 28 Abr. 2018)
[3] GIUSSANI, Luigi. O senso religioso. Brasília: Universa Editora, 2009, pp. 142-143.

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