segunda-feira, 23 de julho de 2018

A amizade como fenômeno humano supremo

“Em nossa convivência humana tão cheia de erros e de sofrimentos podemos ser confortados somente pela fé não simulada e pela solidariedade dos verdadeiros amigos” (Agostinho, Cidade de Deus, 19,8).
O maior tesouro da vida é ter amigos. Quem encontrou um amigo, encontrou um tesouro diz o Eclesiastes (6, 14). Uma pesquisa de Harvard que acompanhou um grupo de pessoas durante 75 anos descobriu exatamente isso, ao mostrar que a felicidade e a saúde física e mental estão na qualidade das nossas relações pessoais, e não no dinheiro ou nos bens e talentos que alguém possa possuir [1]. Quem criou laços fortes com outros seres humanos é mais feliz e tem mais saúde. Ou seja, amar e ser amado, ter amigos, é o que traz maior felicidade à vida.
O que é a amizade?
Os filósofos gregos foram os primeiros no mundo ocidental a refletir sobre o que é a amizade humana (phìlia). As escolas filosóficas desde Pitágoras (571-497 a.C.) nasceram desse sentimento e formam-se entre pessoas que se tornaram amigas para buscar juntos a sabedoria e o conhecimento. Definem a amizade como o relacionamento doce e fiel entre pessoas ligadas por uma doação recíproca de bens materiais e espirituais.
Sócrates é o primeiro a fazer uma reflexão filosófica sobre a amizade. Para ele este sentimento nasce com a virtude (aretè). Só uma pessoa que busca exercitar a virtude, isto é, que busca o bem, a verdade e a beleza no meio das incertezas e dos limites humanos, experimenta a amizade.
Platão dedica uma obra sobre a amizade Lísis. Para ele, a amizade não é amor (eros), pois neste predomina o elemento passional (thèia mania), enquanto que naquela predomina o elemento racional. Ambas, porém, têm um mesmo fim: o bem. Aquilo que procuramos na amizade é o primeiro amor (pròton phìlon). Portanto é uma experiência autêntica enquanto permite subir juntos até ao Sumo Bem.
O verdadeiro amigo é pessoa virtuosa capaz de bastar a si mesma (autàrkes) e ter autodomínio (eukratès). Essas duas características da pessoa virtuosa podem ser explicadas como a pessoa que tem uma interioridade e unidade em si mesma e que se conhece razoavelmente e está em paz, de certa forma, consigo mesma. Além disso, é virtuoso quem aprendeu a dominar seus instintos e a saber usar a razão, não sendo escravo dos primeiros, mas livre para agir e buscar o bem, a beleza e a verdade. O autodomínio é a característica de quem adquiriu a capacidade de deixar a razão prevalecer sobre a instintividade; aprendendo a discernir (sabedoria) o que é bom, verdadeiro e belo e a não ser dominado pelos instintos animais. A pessoa virtuosa, portanto, é a pessoa ordenada.
Aristóteles dá à amizade uma conotação mais humana em respeito à dimensão transcendente de Platão para quem os amigos se unem para buscar juntos o Sumo Bem. Pois, para Aristóteles a amizade é imprescindível e a pessoa não pode prescindir dela. A amizade para ele se constrói sobre três motivos: o bem e duas características acidentais que são o prazeroso e o útil.  Só o bem pode oferecer a garantia de uma amizade verdadeira e autêntica, porque vivendo na dimensão do bem e a partir da experiência do bem, uma pessoa ama a outra por aquilo de bem que vê na outra. Assim, cada pessoa encontra a sua perfeição ao viver a experiência de amizade, e ao empenhar-se com seus amigos no exercício da virtude.
Depois de Aristóteles, outro filósofo fala de maneira detalhada sobre a amizade, Epicuro. Para ele a aquisição ou conquista da amizade é o maior de todos os bens que a sabedoria pode encontrar para a completa felicidade da vida (Epicuro, Máximas Capitais, 26). Nesse sentido a amizade, mesmo que nasça da conveniência, torna-se relacionamento educativo, ajuda recíproca, não só para satisfações materiais, mas também para alcançar a paz interior.
Com os estoicos, em especial Zenão, o conceito de amizade se amplia para adquirir o significado de irmandade universal entre as pessoas. O Estado ideal é aquele que abraça todas as pessoas que buscam juntas o bem comum.
No mundo latino Cícero escreve uma obra sobre a amizade Laelius De Amicitia onde insiste sobre o fato que a amizade é imprescindível e definida por sentimentos religiosos, civis e políticos. Não há nada de mais doce do que a amizade. Por outro lado, a amizade não é uma conquista fácil, mas requer um caminho lento porque tem necessidade de consolidar-se. As amizades que se iniciam como um raio, se revelam precárias e se transformam em hostilidade rapidamente.
Sêneca, outro filosofo latino, diz que a amizade permite que entre os amigos exista compartilha de todas as coisas; e que se deve viver para um outro se queremos viver para si mesmos. A amizade, diz ainda, é entre os sentimentos humanos aquele em que se experimenta o maior gosto pela vida e é o refúgio mais seguro nos momentos de dificuldade (Sêneca, Carta a Lucilio, Epist. 48, 1-3).
Assim sinteticamente podemos dizer que a amizade é um sentimento profundo que liga as pessoas quase como se fossem uma coisa só no sentir. A amizade está associada à virtude e não pode haver amizade entre pessoas que não buscam o bem, a beleza e a verdade. A amizade para ser comunhão entre duas pessoas, deve ser desinteressada; só então pode se tornar troca de dons.

Ana Lydia Sawaya

Notas:
[1] WALDINGER, Robert. Do que é feita uma vida boa? Lições do mais longo estudo sobre felicidade. TEDxBeaconStreet. Disponível em: <https://goo.gl/UWyLYy>. Acesso em 23 jul. 2018.
[2] SANT'AGOSTINO. L’Amicizia. Roma: Città Nuova, 2012.

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