terça-feira, 24 de julho de 2018

A amizade no Cristianismo


Nos Solilóquios, Agostinho escreve: “Razão: mas eu te pergunto: por que desejas que os homens que tu amas vivam junto contigo? Agostinho: para procurar juntos em plena concórdia a nossa alma e Deus. Assim será fácil para quem encontrou primeiro a verdade conduzir os outros sem dificuldade” [1].
A amizade verdadeira favorece a reflexão pessoal, a interioridade e o relacionamento interpessoal e comunitário. A interioridade torna-se o fundamento do estar junto para buscar a verdade em colaboração e concordância um com o outro. Por isso, é preciso que os amigos cultivem a interioridade, o estar consigo mesmo, como único modo para conhecer-se a si mesmo. Para isso é preciso que existam momentos para estar longe da bagunça das coisas e liberar-se das coisas sensíveis (ver, ouvir, falar, ter sensações físicas) e para estar em silêncio.
Quem percorre esse caminho junto com o amigo, permite que a amizade se abra a um relacionamento que supera a esta e a uma experiência de comunidade de irmãos que gera uma comunhão mais íntima entre as pessoas, de forma que todos se tornam discípulos de um único mestre, Cristo. Esta é a amizade cristã. O relacionamento do eu com o outro se torna relacionamento do eu com os outros que unidos tornam-se relacionamento com o único Outro, Cristo.
E é assim que nasce uma comunidade eclesial e nasceu a comunidade apostólica. A amizade torna-se cada vez mais caridade. Entre os amigos se insere o Espírito Santo. O coração dos amigos se alarga e da precariedade dos relacionamentos de simpatia apenas instintiva passa-se a estar juntos para se ajudar a conduzir a vida à descoberta de Cristo, através da busca constante e obstinada dos dotes e talentos de cada amigo.
Mas a amizade como relacionamento humano é precária. Agostinho diz, ao refletir sobre isso: “Você pode estar totalmente seguro de Deus. Mas do ser humano, ao contrário, ninguém pode estar sabiamente seguro... Uma coisa é amar o ser humano, outra é colocar nele a própria esperança” [2]. Mas se Deus é o autor da amizade, é também o seu fundamento: “se você aprecia, gosta das pessoas, ama-as em Deus pois elas são mutáveis, mas nEle elas podem se fixar estavelmente, ao passo que sem Ele pereceriam” [3].
Quem está unido a Deus é livre da instintividade desmedida e interesses egoístas. É dessa forma e só assim que a amizade com outra pessoa se realiza no amor que partindo da Trindade chega à comunidade dos cristãos. Portanto, a amizade como relacionamento humano tem sempre o seu valor, mas se quiser ter estabilidade precisa da caridade. É a caridade que carrega em si a paciência para suportar os defeitos dos amigos e não só, ajuda-los a realizar cada vez mais plenamente os seus dotes e qualidades.
“Ama verdadeiramente o seu amigo quem ama Deus no seu amigo” [4].
“Existe para nós uma paz enquanto acreditamos de amar-nos um ao outro, mas nem mesmo essa paz é plena porque não conseguimos ver os pensamentos do coração um do outro. No paraíso, porém, nada ficará oculto dos nossos corações” [5].
A amizade cristã é uma realidade dinâmica que se aperfeiçoa enquanto se vive, goza das conquistas alcançadas, não para ficar parada ali, mas para receber ainda mais força para ir para frente. Por isso, a amizade cristã tende à perfeição.
As exigências da amizade são: amor recíproco, liberdade, comunhão, desinteresse, confiança, lealdade quando for necessário corrigir e interioridade.
O amor é querer agir sempre para o bem do outro. É fazer de tudo para o bem do outro. A amizade só pode existir e cresce na medida que cresce a confiança, e para isso é preciso convivência e confidência. As confidências e o espaço de convivência são os instrumentos que geram, aos poucos, a amizade. Esse caminho é certo e seguro quando há fé, pois, esta confere à amizade uma maior estabilidade. A fé permite que nos lembremos sempre da nossa fragilidade e da presença de Deus-homem, nosso salvador. É também através da fé que sei que Deus está também presente como Salvador vivo e eficaz no coração do amigo.
A amizade só é possível se posso ser livre e franco com meu amigo. Para isso é preciso acreditar no amigo, ter fé nele, e isso será sempre um risco, pois a fé no amigo pode nos revelar surpresas, a amizade pode esfriar e acabar por tantos motivos. Mas vale a pena enfrentar esse risco. A fé, a amizade, a liberdade, são bens tão grandes que justificam essa aventura, que exatamente por causa do risco, torna-se exaltante.
A condição para tudo isso é que cada um viva e cultive a interioridade e a oração pessoal; porque é no interior da pessoa que habita a verdade. A descoberta dessa verdade será o ponto de referência para duas pessoas que vivem um relacionamento estreito entre si pelo vínculo da caridade. É o cultivo da interioridade que permite o separar-se dos escândalos do mundo, da dispersão das coisas, da solidão e da incomunicabilidade tão presentes no nosso cotidiano hoje em dia. É no cultivo da interioridade que se descobre Deus na profundidade de cada pessoa (aquele que é o mais íntimo do meu íntimo). Só essa descoberta permite realizar o caminho da plenitude da alegria; a sabedoria que mostra que Deus é totalmente outro. É esse cultivar a interioridade que também nos revela a verdade de nós mesmos e nos coloca a nu diante da nossa consciência, nos mostra os nossos medos e fragilidades. Para isso é preciso coragem e fé em Deus presente em nós e em nosso interior. Se tivermos a coragem de nos vermos a nu, curaremos nossas doenças. 
Ter um amigo que me corrige é como o remédio que por vezes é amargo, mas depois me cura. Muitas vezes são mais úteis os inimigos que lutam contra nós do que os amigos que tem medo de nos corrigir. Os amigos verdadeiros, o são, na medida que se sentem no dever de nos corrigir. Por isso, a adulação é inimiga da amizade. A correção com caridade deve ser ora doce, ora severa, mas nunca inimiga de alguém.
“Ame e faça o que quiser; se você se calar, cale-se por amor; se você falar, fale por amor; se você corrigir, corrija por amor; se perdoar, perdoe por amor; que esteja em você a raiz do amor, pois dessa raiz não pode nascer outra coisa que não seja o bem” [6].
O mundo é um cosmo (ordem), harmonia ordenada, assim o chamaram os filósofos gregos; relação de tudo com tudo. A comunhão, portanto, é a grande aspiração da vida. O que desejam os amigos verdadeiros se não ser uma coisa só com o amigo, sempre unidos e cada vez mais? Da mesma forma, o Estado ideal é aquele em que os cidadãos se unem sempre mais num ideal comum e tendo uma meta comum de bem a realizar. A unidade, portanto, é o fundamento da toda a realidade criada e imita a unidade divina. O princípio de tudo é o amor entre 3 pessoas, Pai, Filho e Espírito Santo. Cada coisa criada é feita de acordo com a imagem da Trindade. Por isso a amizade é o segredo da vida.

Ana Lydia Sawaya

Notas:
[1] SANT'AGOSTINO. L’Amicizia. Roma: Città Nuova, 2012. Cf. Sol. 1, 12, 20-13,22.
[2] De Cath. Rudibus, 25, 49.
[3] Confissões, 4, 12, 18.
[4] Sermão 336, 1.
[5] In Jo. ev. Tr. 77,3-4
[6] In epist. Jo. Tr. 7,8

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