segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Construindo o Brasil: A economia

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Ex nihilo nihil fit
Falência econômica, política e moral. Extremismo. Incomunicabilidade. Violência. Desde meados de 2016, com o auge da operação Lava-Jato e o impeachment da presidente Dilma Roussef por improbidade administrativa, é notável a interrogação que pulula na mente da acanhada parcela da nação brasileira que parece ter conservado um mínimo de prudência: como, diabos, chegamos até aqui? Ex nihilo nihil fit, diria Parmênides; nada surge do nada.


A economia
É amplamente reconhecido que o Estado brasileiro enfrenta problemas em praticamente todas as suas áreas de atuação: educação, saúde, combate à pobreza, economia. O que os desdobramentos recentes trouxeram à tona foi que a raiz desses problemas está na ineficiência generalizada decorrente da apropriação do aparato burocrático brasileiro por uma determinada elite.
Na teoria econômica existe uma figura que ilustra um tipo de relação no qual um determinado agente captura o aparato burocrático que tem como missão regular sua atividade. Tal situação é denominada captura regulatória, e ela ocorre quando determinado regulador – ANVISA, Banco Central ou polícia, para citar alguns – passa a ser controlado exatamente pelo agente que deveria regular – indústria farmacêutica, bancos ou bandidagem, para continuar com nossos exemplos.
Tal figura econômica explica perfeitamente a forma como se dão as relações dentro da sociedade brasileira: relações de captura regulatória. Se nosso Estado faliu, a coesão social acabou e o tecido social está esgarçado até o limite, isso se deve em grande parte à falência de nosso arcabouço institucional, que não está atendendo aquilo que se espera dele. Está capturado.
Embora a captura regulatória seja a expressão econômica clássica do patrimonialismo do estado brasileiro, ainda cabe perguntar: por que uma parcela da sociedade brasileira parece aceitar passivamente a posição de vítima, enquanto outra sente-se perfeitamente livre para perpetuar seus malfeitos?

Desigualdade econômica é desigualdade de poder
A sociedade brasileira é profundamente desigual. Porém, embora o aspecto econômico de nossa desigualdade seja frequentemente ressaltado – o Brasil possui um dos piores índices de Gini do mundo – existem outros aspectos da nossa desigualdade que precedem sua manifestação estritamente econômico. Destaca-se dentre esses a desigualdade de poder: apenas uma sociedade com grande assimetria de poder consegue coexistir com uma tal desigualdade econômica. Sucintamente, a população brasileira não reage à captura do poder público por agentes privados porque não tem poder para isso.
Contudo, qual é a concepção de sociedade que conduz à captura do estado brasileiro pelas suas parcelas privilegiadas, manifestando claro desamor pelo restante da sociedade? Por que o princípio do bem comum, presente na doutrina social da igreja, parece ausente na nossa organização social? Qual a mentalidade com que os próprios agentes privados se justificam diante da vida, isto é, qual o valor proclamado individualmente que poderia amparar uma tal posição diante da realidade?

A Origem
A origem desse desamor – bem como a explicação para nosso patrimonialismo – é uma compreensão redutiva do homem, que nunca é considerado em sua integralidade. Primeiramente, através do dualismo sacro-profano (corpo-alma) que alienou o homem da responsabilidade temporal (justificando a escravidão) e, mais recentemente, através do materialismo e do individualismo, que limitam a responsabilidade diante do mundo à preocupação com a própria comodidade.

O dualismo sacro-profano
Diante da dicotomia corpo-alma, uma parcela da Igreja no Brasil historicamente se posicionou e se percebeu exclusivamente como portadora da dimensão ultramundana: sua única missão seria salvar almas para a vida eterna. Como os pobres estariam "comprando o céu" ao participarem do sofrimento de Cristo, não haveria motivo para preocupar-se com a exploração e o abuso. É nessa concepção dualista do homem que a escravatura latino americana encontra sua justificação.
Daí nasce, inclusive, a falta de amor ao trabalho: a construção do mundo não seria coincidente, mas periférica para a salvação da alma.Perde-se a dimensão do trabalho como participação na natureza do Criador.

O Materialismo
A redução materialista pode ser sucintamente explicada da seguinte forma: à máxima econômica segundo a qual o homem responde a incentivos, sobrepõe-se outra, mais restritiva, segundo a qual o homem responde, exclusivamente, a incentivos econômicos ou materiais, sendo as posições que neguem a nova máxima categoricamente taxadas “insustentáveis”, “utópicas”. O homem jamais estaria disposto a abandonar o egoísmo e olhar para o lado. Entre duas cumbucas, escolho a mais cheia – a resposta é imediata e definitiva, ao inferno as considerações de ordem moral. Não há alternativa, a vida é assim... It's the economy, stupid!
Daí segue que consequências inevitáveis do materialismo são o utilitarismo ou o suicídio. No contexto supracitado, essa redução manifesta-se como captura regulatória.

O Resgate
Portanto, a crise da sociedade brasileira é devedora do nosso passado: a escravidão seria a expressão máxima de um regime em que não existe um ideal de bem comum a ser perseguido, apenas a pilhagem e a sobrevivência do mais apto. Mas também é fruto de um certo espírito dos tempos que se expressa a partir do tríduo materialismo-utilitarismo-individualismo. Por isso, qualquer gesto de reconstrução hoje deve partir do resgate de uma visão do humano que o considere em toda sua estatura: cada homem é vínculo com o infinito e não mero objeto de  consumo ou usufruto pelo mais forte.
A solução do problema é extremamente complexa e pressupõe uma mudança em muitos âmbitos além da economia: o âmbito educativo, o âmbito da cultura... A dimensão do desafio – grande demais para qualquer pessoa – ressalta o grande valor da humildade nesse momento: o pobre, humilde é aquele aceita tudo com gratuidade, como dom. O humilde – de humus, terra – é aquele que faz parte da terra, não está acima, não submete, não oprime. Etimologicamente, é a mesma origem da palavra homem – humus –, aquele que é criado a partir da terra. O humilde é, nesse sentido, o mais homem, o máximo da humanidade, aquele que melhor compreende aquilo que é. Ele não se engana, é moral: não finge governar um fenômeno que o transcende. É com essa humildade que devemos nos colocar a serviço da reconstrução do país.
Buscar seguir e atuar conforme ao ideal do Bem Comum proposto pela Doutrina Social da Igreja pressupõe pressupõe essa humildade  pessoal. Nos cabe identificar quais são os principais aspectos em que pela "herança" que nos foi transmitida, podemos colaborar ativamente à construção de um Brasil melhor. Mas com a consciência de que nossas ações são "tentativas irônicas" e adquirem seu pleno sentido somente se se inscreverem num horizonte maior. Para nós católicos é o horizonte da Igreja, da catolicidade. E, neste sentido de catolicidade, devemos estar atentos a todas aquelas contribuições de pessoas e atores sociais que, como nós, se fazem presentes no Pais buscando com autenticidade atuar na direção do Bem Comum. Pobre de espírito é quem se reconhece pertencer a algo maior, quem é capaz de dobrar-se diante do Infinitamente Grande, usando a expressão de Dostoiévski. Capaz portanto de agir mas também de ter consciência que toda ação (desde nosso trabalho cotidiano até a ação politica) deve ser constantemente reconhecida e avaliada neste Horizonte, diante de um Outro de cuja Ação participamos, sempre aproximadamente...
Jesus Cristo veio ao mundo para chamar a atenção do homem para o fundo de todas as questões, para a sua estrutura fundamental e para a sua situação real.(...) Não é tarefa de Jesus resolver os vários problemas, mas chamar a atenção para a postura com a qual o homem, mais corretamente, pode procurar resolve-los. Cabe a cada homem empenhar-se nesse trabalho, que existe exatamente em função daquela procura. O conceito cristão de existência humana prevê que jamais a comunidade humana aderirá integralmente com a sua liberdade à condição apontada por Jesus. Por isto, a vida da humanidade neste mundo será sempre dolorosa e confusa. Mas a tarefa daqueles que encontraram Jesus Cristo, a tarefa da comunidade cristã, é realizar o mais possível a solução dos problemas humanos com base no chamado de Jesus. (...) Reconhecer a Cristo (fé) gera assim uma atitude existencial característica, pelas qual o homem é um caminhante ereto e incansável rumo a uma meta ainda não alcançada, certo do futuro, porque completamente apoiado na sua Presença (esperança); no abandono e na adesão a Jesus Cristo floresce uma afeição nova para com tudo (caridade) que gera uma experiência de paz, a experiencia fundamental do homem em caminho. [1]
É nesse sentido que afirma o Cristo no sermão da montanha: "bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus"; porque  o pobre de espírito (humilde) é o único que não se perde no meio do caminho, enganado com falsas promessas de poder. "Bem-aventurado" porque "tem o coração ancorado nas verdadeiras alegrias", isto é, espera a correspondência completa ao mistério percebido que se cumprirá na eternidade, no "reino dos céus". O humilde é bem-aventurado porque não recorre a subterfúgios, não pára no meio do caminho, distraído por falsos brilhantes, mas é moral, leal à experiência original, livre de pretensões e preconceitos. Somente humildemente ancorados na boa nova cristã seremos capazes de cumprir o imenso desafio educativo que se apresenta.

Notas
[*] Imagem do site Pragmatismo Político (clique aqui)
[1] GIUSSANI, L. Na origem da pretensão cristã. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003, pp. 141-142.

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