quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Brumadinho e Flamengo: o que é o bem comum para a sociedade brasileira?


Este ano iniciou-se com eventos trágicos: a tragédia de Brumadinho, absurda reproposição do que ocorreu em Mariana em 2015, escancara perspectivas sombrias para o futuro. A situação de várias áreas de risco no território nacional; a ganância do sistema da mineração que desde o período colonial submete o Brasil à pilhagem mais desregrada, à qual se sobrepõe o mais recente predomínio da dimensão financeira e a decorrente e trágica inversão de valores. A morte dos dez jovens no container do Flamengo, chamado Ninho do Urubu, evidencia o modo perverso como se "fabricam" os jogadores para o futebol nacional e internacional, em função dos interesses de ganho dos clubes e de trocas economicamente rentáveis e com total descuido de seu bem estar e de suas vidas. No país, ao menos 1.774 pessoas morreram desde 2007 em acidentes aéreos, desabamentos, incêndios e naufrágios que poderiam ter sido evitados ou, ao menos, atenuados se regras tivessem sido seguidas, fiscalizações feitas corretamente e os alertas respeitados, como registrou o jornal O Globo, recentemente [1].  A segurança das pessoas é considerada pelas empresas como um custo a ser reduzido. Segundo o Procurador José Adércio Leite, que participa das investigações sobre o rompimento das barragens de Mariana e Brumadinho, o poder público não fiscaliza [2]. E, por outro lado, os princípios fundamentais da segurança dessas operações não são obedecidos pelas empresas.  
O descaso e descuido com o valor da vida humana é um problema antigo no Brasil, desde os tempos da escravidão. Mas hoje isto é escancarado aos olhos de todos e se realmente o objetivo em jogo é a construção da Res-publica em termos democráticos, não bastam a emoção e a comoção imediata do pós-tragédia; nem o simples alarde nas redes sociais. É preciso do exercício da cidadania. De outro modo, o esquecimento e a distração tomam conta. E esquecimento e distração são coniventes com o mal. 

É a hora mesmo, e não pode mais tardar, em que as pessoas e a sociedade brasileira como um todo se devem perguntar acerca de que tipo de valor/valores efetivamente lhe interessam: o valor do ganho fácil e a promessa do consumo; ou o valor da vida humana? E esta é a hora de exigir do Estado e, especialmente do novo governo - que fez de sua bandeira, durante a campanha, o restabelecimento da justiça e do bem estar da população -, de efetivamente se fazer promotor do Bem-comum.
Mas, em primeiro lugar, como cristãos que somos, precisamos resgatar a memória deste ideal - o Bem-comum - que nos foi ensinado pela Doutrina Social da Igreja; de modo que esse ideal molde nossas ações, principalmente nosso modo de trabalhar. E, a partir disto, as circunstancias atuais nos convidam a um exercício responsável da cidadania, que supere as tentações do individualismo, do espiritualismo, do fechamento. As comunidades cristãs, como as demais comunidades e movimentos sociais, são comunidades intermédias cuja atuação é fundamental para promover a democracia real e uma cultura da vida. Disto brota a garantia do bem das pessoas e da sociedade. Os fatos atuais tornam mais evidente que qualquer omissão neste nível nos torna coniventes com um sistema que não afirma o valor do ser humano, aliás contribui ativamente à sua destruição. Pois, de qualquer forma, a afirmação plena do ser humano somente se torna possível num horizonte que o reconheça como criatura, e que conceba a ação (e o trabalho) não como senhorio absoluto sobre os outros e sobre as coisas. Isto somente é possível na aceitação da dependência última de um Mistério maior: como escrevia Dostoiévski, “a lei da existência humana consiste em que o homem pode sempre inclinar-se perante o infinitamente grande. Se privássemos disso o homem, este não quereria viver e morreria desesperado” [3].       

Notas:
[1] Cf. https://oglobo.globo.com/brasil/acidentes-que-poderiam-ter-sido-evitados-ou-atenuados-mataram-mais-de-1700-pessoas-23443551.
[2] Cf. https://www.oantagonista.com/brasil/no-brasil-o-pessoal-empurra-com-barriga/
[3] DOSTOIÉVSKI, F. Os demônios. São Paulo: 34, pp. 179-180.

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