quinta-feira, 29 de março de 2018

A misericórdia que reedifica

Para ajudar a celebrar a Semana Santa, propomos este texto de Luigi Giussani, comentando a peça As sete últimas palavras de Nosso Redentor na cruz, de Franz Joseph Haydn. "O Mistério que faz todas as coisas se mostrou na vida do homem como Amigo e Pai, numa modalidade historicamente definitiva, aquela pela qual Cristo veio."


Por Luigi Giussani


Pai, perdoa-lhes; porque não sabem o que fazem
Só Deus mede todos os fatores do homem que age: para nós existe somente o espaço da misericórdia. Assim, o homem Jesus, dirigindo-se ao Pai, disse: “Pai, perdoa-lhes; porque não sabem o que fazem”. Sobre a infinitésima margem da ignorância deles, Ele construía, morrendo, a Sua defesa, a defesa da fraqueza daqueles homens, do limite daqueles homens que O matavam. Esta foi a ocasião pela qual o Senhor, o Pai, tornou aquele ato deles início do mistério da Igreja.
O perdão cristão é imitação da luminosa e calma potência com a qual o Pai reconstrói o destino das suas criaturas, surpreendendo e ajudando o permanente e essencial desejo de bem de que são constituídas, e que atravessa todos os desastres da histérica autoafirmação, presunçosa e impaciente. Assim, o perdão é uma onipotência que reedifica sobre o último resto de consistência da liberdade: “Pai, perdoa-lhes; porque não sabem o que fazem”.
Sem misericórdia, sem perdão, não se pode fazer crescer, porque a um certo ponto se chega a condenar, diz-se: “Não há mais nada a fazer”, isto é, condena-se à morte. Ao invés, o Ser não é como o médico. O médico pode chegar a dizer: “Não há mais nada a fazer” e, justamente, porque para as suas possibilidades não há mais nada a fazer. Mas para o Ser não: ainda há o que fazer!
Cristo morreu para libertar-nos do nosso mal. No coração do marasmo humano, da fraqueza humana, um grito se levante a esta humanamente impossível libertação, mas possível a Deus: Senhor, tende piedade de mim!

Hoje estarás comigo no Paraíso
Diante da presença de Cristo se joga toda a nossa liberdade. O homem não consegue conceber ou imaginar um problema formalmente mais tremendo do que o anúncio original: Deus Se fez homem, está aqui e o chama: “Eis que estou convosco todos os dias, até o fim do mundo”. Posso ser o último dos homens, cheio de erros e de crimes, mas o olhar de Cristo me faz livre. Pensemos no homem que crucificaram junto dEle, por crimes e homicídios cometidos: “Senhor, lembra-te de mim, quando tiveres entrado no teu Reino!”. “Hoje estarás comigo no Paraíso”! Era um assassino! Mas que, num certo momento, deu-se conta de uma Presença diferente com a qual não morria mais, diante da qual emergia a extrema expressão da sinceridade da humildade: “Eu sou um nada, lembra-te de mim no teu Reino”. O outro assassino devia gritar, enfurecer-se e blasfemar para não se deixar arrastar pela onda simples da evidente diversidade. Devia opor algo alheio àquela evidente diversidade.
A grande objeção a este abraço é que o cristianismo não mantenha a promessa que Cristo tinha feito ao assassino crucificado com Ele: “Mecum eris in paradiso” e que antes tinha definido profeticamente como “o cêntuplo aqui”. E esta objeção nasce de um outro aspecto de nossa consciência: o medo do sacrifício. Se não tivermos medo do sacrifício, experimentaremos hoje, em cada momento, uma beleza maior, uma verdade maior nos nossos relacionamentos, com os homens e com as coisas, como profecia; como profecia vivida da grande esperança, da grande promessa com que Ele nos espera no final.

Mãe, eis aí teu filho
O amor que Cristo tem pelos homens é cheio de todas os seus componentes humanos: simpatia, ternura, generosidade, serviço, comoção, com aquela vibração humana que torna Jesus próximo de todos e conquista os seus corações.
Esta humanidade nos aparece a partir dos relatos dos Evangelhos como capaz de uma afeição que, embora seja para todos, não é genérica, pelo contrário, justamente ao exprimir uma preferência se abre e manifesta uma profundidade de amor. Muitas vezes os evangelistas acentuam as predileções de Jesus, como sinais de uma humanidade verdadeira: do jovem rico, do qual Marcos nota: “Jesus fixou nele o olhar, amou-o...”, a Lázaro, cujas irmãs dirão a Jesus: “Senhor, aquele que tu amas está enfermo”. E isso era tão verdadeiro que quando Jesus chegou diante de sua tumba ficou comovido e perturbado, e o evangelista João nos diz: “Jesus pôs-se a chorar. Observaram por isso os judeus: ‘Vede como ele o amava!’”. Do mesmo modo, era evidente a preferência pelo evangelista João que, por exemplo, durante a última ceia juntos, antes da morte de Jesus, estava reclinado ao Seu peito; o mesmo João ao qual Jesus volta o olhar da cruz para confiar-lhe Sua mãe: “Quando Jesus viu sua mãe e perto dela o discípulo que amava, disse à sua mãe: ‘Mulher, eis aí teu filho’. Depois disse ao discípulo: ‘Eis aí tua mãe’. E dessa hora em diante o discípulo a levou para a sua casa.

Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?
Ele nos salva enquanto assume sobre Si todos os nossos pecados. A Liturgia diz: “Agora se cumpre o desígnio do Pai: fazer de Cristo o coração do mundo”. Assim que “Aquele que não conheceu o pecado, Deus o fez pecado por nós [como se o Mistério do Pai tivesse concentrado sobre Ele todos os pecados do mundo], para que nele nós nos tornássemos justiça de Deus”. Para que nós pudéssemos nos tornar justos diante do Mistério, o Mistério tratou Cristo como pecado, como se o pecado fosse Ele. De fato, “Cristo remiu-nos da maldição da lei, fazendo-Se por nós maldição, pois está escrito: Maldito todo aquele que é suspenso no madeiro”. “Pois também Cristo morreu uma vez pelos nossos pecados – o Justo pelos injustos – para nos conduzir a Deus. Padeceu a morte em sua carne, mas foi vivificado quanto ao espírito”.
Cristo, que não tinha pecado, foi feito pecado por nós. Todos os pecados dos homens – “concentrados” no Seu coração que morre e grita: “Meus Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” – tornaram-No “o pecado”. Assim, Ele crucificou na Sua morte todos os pecados de todos os homens; que já estão perdoados, no sentido que agora toda a ascese – a dinâmica da purificação – é deixar vir à tona, deixar que se manifeste em nós – hoje, na jornada em que estamos, na ação em que nos empenhamos – aquilo que desde já é possível porque já foi realizado: que Ele Se torne forma da nossa vida, do nosso pensar, da nossa decisão e do nosso agir.
O nosso grande delito, o pecado por excelência, é não comunicar a humanidade nova que nos foi dada. Não existe pecado mais grave que não a comunicar. É abandonar Cristo, deixá-Lo sozinho gritando ao mundo: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”.

Tenho sede
O Mistério que faz todas as coisas Se mostrou na vida do homem como Amigo e Pai, numa modalidade historicamente definitiva, aquela pela qual Cristo veio. “Tenho sede”, disse Jesus, “Eu vim lançar fogo à terra, e que tenho eu a desejar se ele já está aceso?”. Cristo nos faz participantes da Sua obra: o fogo do qual fala o Senhor é o libertar-se e o manifestar-se da verdade do mundo: o seu mistério.
Assim, o homem pecador é tornado colaborador da Redenção, como diz o grande poeta Péguy em O pórtico do mistério da segunda virtude:
“Deus, que é tudo, teve qualquer coisa a esperar, dele, desse pecador. Desse nada. De nós. Ele foi posto, a esse ponto, ele situou-se a esse ponto, nesse pé de ter de esperar, de aguardar desse miserável pecador.” 
“Quer dizer depende de nós
[...]
Que o infinitamente mais não tenha falta do infinitamente menos,
Que o infinitamente tudo não tenha falta do infinitamente nada.
[...]
Que o perfeito não tenha falta do imperfeito.
[...]
Que o infinitamente grande não tenha falta do infinitamente pequeno
[...]
Que o eterno não tenha falta do perecível.
[...] de nós depende que o Criador
Não tenha falta da sua criatura.” 

Tudo está consumado
Que os nossos dias sejam investidos, desde a manhã, pela certeza de Cristo ressuscitado, pela certeza que tudo, verdadeiramente tudo, está consumado e que, portanto, a vida seja uma participação da cruz. É ali que “tudo está consumado”. Seja a participação da cruz uma alegria segura: a Ressurreição! É esta a nossa certeza: que tudo na nossa vida seja investido desta certeza, de modo que ela (no mundo, não fora do mundo, mas no mundo: portanto nas provações, nos desacordos, nas dores, nas reticências, nas retomadas...) seja determinada, ultimamente, por aquilo em que a cruz desemboca, naquilo e por aquilo em que a cruz foi prometida: a Ressurreição.

Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito
Do momento em que Cristo foi pregado numa cruz e gritou: “Pai, por que me abandonaste?” – que é o grito de desespero mais humano que jamais se tenha ouvido no ar da terra – e depois disse: “Perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” e, enfim, gritou: “Nas tuas mãos entrego o meu espírito”, daquele momento, desde quando aquele homem foi deitado, esticado e pregado na cruz, a palavra sacrifício tornou-se o centro, não da vida daquele homem, mas da vida de todo homem. O destino de todo homem depende daquela morte. Do momento em que aquele homem morreu na cruz, a palavra sacrifício se tornou uma palavra gigante e revelou – como quando o sol se levanta – que toda a vida de todos os homens é tecida de sacrifícios, é cheia de arrepios de sacrifício, é como dominada pela necessidade de sacrificar: é impossível evitar o sacrifício e sobre tudo incumbe o maior que se possa conceber, que é morrer.
Mas há um ponto na história no qual o sacrifício começou a se tornar interessante, ou seja, relacionado com o interesse do homem, o seu destino: quando Cristo morreu na cruz, para que os homens pudessem ser salvos da morte e as coisas salvas da corrupção, de se tornar vermes, pequenos, numerosos.
A cruz de Cristo revelou, de um lado, o domínio que o sacrifício tem sobre a vida de todos os homens; de outro lado, que o seu significado não é necessariamente negativo, pelo contrário, é misteriosamente positivo: é a condição para que os homens alcancem o seu destino: “Com a tua cruz salvaste o mundo”, com a tua Cruz, ó Cristo, salvaste o mundo.
Jesus na cruz, antes de dar o último suspiro, fez Seu o início do salmo que dita a expressão mais completa do ânimo humano, aquela profundidade misteriosa pela qual o homem se enxerta, se une a Deus, porque é Sua criatura: “Em vossas mãos entrego o meu espírito; livrai-me, ó Senhor, Deus fiel” (Sl 30,6).

Notas
[1] CHIERICI, Sandro; GIAMPAOLO, Silvia (orgs.). Spirto gentil: um invito all’ascolto dela grande musica guidati da Luigi Giussani. Milão: BUR Rizzoli, 2011, pp. 535-541. Traduzido sem revisão dos autores por Fábio Henrique Viana.
[2] PÉGUY, Charlés. O Pórtico do Mistério da Segunda Virtude (Trad. H. B. Ruas). Lisboa: Grifo, 1998, p. 115.
[3] PÉGUY, Charlés. O Pórtico do Mistério da Segunda Virtude (Trad. H. B. Ruas). Lisboa: Grifo, 1998, p. 96-97.

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