domingo, 22 de fevereiro de 2015

Tributo de gratidão de Bergoglio a Giussani

Luigi Giussani (*15/10/1922 - +22/02/2005)

Completados 10 anos de falecimento de Luigi Giussani, publicamos texto do Cardeal Bergoglio, agora Papa Francisco: despertar o humano para que Deus figure como sentido.

Para o homem

Por Cardeal Jorge Mario Bergoglio (Papa Francisco)

Ao dar uma palestra durante a apresentação da edição espanhola do livro O Senso Religioso de Luigi Giussani, eu não estava simplesmente cumprindo um ato formal de protocolo ou demonstrando o que poderia parecer uma mera curiosidade profissional sobre um trabalho que traz como foco uma explicação da nossa fé [1]. Acima de tudo, eu estava expressando a gratidão que é devida a Monsenhor Giussani. Há muitos anos, seus escritos me inspiram a refletir e me ajudam a rezar. Eles me ensinam a ser um cristão melhor, e o que falei na apresentação foi para dar testemunho disso.

Monsenhor Giussani é um daqueles inesperados presentes que o Senhor deu à nossa Igreja após o Vaticano II. Ele fez com que muitos indivíduos e movimentos emergissem fora das estruturas e programas pastorais, movimentos que estão oferecendo milagres de vida nova dentro da Igreja. Em 30 de maio de 1998, na praça de São Pedro, o Papa [João Paulo II] encontrou-se publicamente com as novas comunidades e movimentos eclesiais. Foi um verdadeiro evento transcendente. Ele pediu especificamente para quatro fundadores – dentre os muitos movimentos – para darem seu testemunho. Entre eles, estava Monsenhor Giussani, quem, em 1954, o ano em que começou a ensinar religião em uma escola pública em Milão, iniciou o movimento Comunhão e Libertação, o qual está presente hoje em mais de sessenta países no mundo e é muito amado pelo Papa.
O Senso Religioso não é um livro exclusivamente para membros do Movimento, e nem mesmo apenas para cristãos ou pessoas que creem. É um livro para todos os seres humanos que levam sua humanidade a sério. Ouso dizer que, hoje, a questão primária que temos de encarar não é tanto o problema de Deus – a existência, o conhecimento de Deus –, mas o problema do humano, do conhecimento do humano, e encontrar nos próprios seres humanos a marca que Deus deixou, para assim sermos capazes de encontrarmo-nos com Ele.

“Fides et Ratio”
Por uma feliz coincidência, a apresentação do livro de Giussani foi realizada [em Buenos Aires, Argentina] um dia após a publicação da Encíclica Fides et Ratio do Papa João Paulo II, que começa com essa densa consideração:
Basta um simples olhar pela história antiga para ver com toda a clareza como surgiram simultaneamente, em diversas partes da terra animadas por culturas diferentes, as questões fundamentais que caracterizam o percurso da existência humana: Quem sou eu? Donde venho e para onde vou? Porque existe o mal? O que é que existirá depois desta vida? Estas perguntas encontram-se nos escritos sagrados de Israel, mas aparecem também nos Vedas e no Avestá; achamo-las tanto nos escritos de Confúcio e Lao-Tze, como na pregação de Tirtankara e de Buda; e assomam ainda quer nos poemas de Homero e nas tragédias de Eurípides e Sófocles, quer nos tratados filosóficos de Platão e Aristóteles. São questões que têm a sua fonte comum naquela exigência de sentido que, desde sempre, urge no coração do homem: da resposta a tais perguntas depende efetivamente a orientação que se imprime à existência. [2]
O livro de Giussani está em sintonia com a Encíclica: ele é para todas as pessoas que levam sua humanidade a sério, que levam essas questões a sério.
Paradoxalmente, em O Senso Religioso, pouco é dito sobre Deus e muito é dito sobre os seres humanos. Muito é dito sobre nossos “porquês”, muito é dito sobre nossas necessidades últimas. Citando o teólogo protestante Niebuhr, Giussani explica que “nada é tão pouco crível quanto uma resposta para uma pergunta que não foi feita” [3]. Dar voz àquelas perguntas do coração é uma das dificuldades da nossa cultura de supermercado – onde as ofertas são feitas a todos para abafar o clamor de seus corações. Esse é o desafio. Confrontado com o torpor da vida, com a tranquilidade oferecida (em ampla variedade de formas) a baixo custo pela cultura de supermercado, o desafio consiste em perguntar a nós mesmos as questões reais sobre o significado da nossa existência, e em responder essas perguntas. Mas se desejamos responder perguntas que não sabemos como responder, não ousamos ou não podemos formular, então caímos no absurdo. Para homens e mulheres que esqueceram ou censuraram seus “porquês” fundamentais e o ardente desejo de seus corações, falar sobre Deus acaba sendo algo abstrato ou esotérico ou um estímulo a uma devoção que não tem efeito em suas vidas. Você não pode começar uma discussão sobre Deus sem antes soprar as cinzas que sufocam as brasas ardentes dos “porquês” fundamentais.

A inquietação do coração
O atual drama do mundo é resultado não apenas da ausência de Deus mas também, e, acima de tudo, da ausência de humanidade, da perda da fisionomia humana, do destino e identidade humanos, e de uma certa capacidade de explicar as necessidades fundamentais que habitam o coração humano. A mentalidade prevalente – e, deploravelmente, de muitos cristãos – supõe que há uma inviolável oposição entre razão e fé. Em vez disso – e aqui há outro paradoxo –, O Senso Religioso enfatiza que falar seriamente sobre Deus significa exaltar e defender a razão, descobrir seu valor e o jeito certo de usá-la. Esta não é a razão entendida como uma medida pré-estabelecida da realidade, mas razão aberta à realidade na totalidade de seus fatores, cujo ponto de partida é a experiência – é esse fundamento ontológico – e que desperta a inquietação do coração. Não é possível ampliar a pergunta sobre Deus calmamente, com um coração tranquilo, porque isso seria dar uma resposta sem pergunta. A razão que reflete sobre a experiência é a razão que usa um critério capaz de julgar a medida de todas as coisas contrária ao coração - mas “coração” tomado no sentido bíblico, isto é, como a totalidade das exigências inatas que todos têm, a necessidade de amor, de felicidade, de verdade, de justiça. O coração é o núcleo do transcendente “de dentro”, onde são plantadas as raízes de verdade, beleza, bondade e a unidade que dá harmonia a todos os seres. Nós definimos a razão humana neste sentido, e não no do racionalismo; esse laboratório-racionalismo, idealismo, ou nominalismo (este último muito na moda, atualmente) que pode fazer tudo, que alega possuir a realidade porque está de posse do número, da ideia, da lógica das coisas, ou – se quisermos ir mais longe – que alega possuir a realidade por meio de uma tecnologia absolutamente dominante, que nos ultrapassa no exato momento em que a usamos. Então caímos em uma forma de civilização que Guardini gosta de chamar de “a segunda forma de incultura” [4]. Ao invés disso, nós falamos de uma razão que não é reduzida, que não pode ser esgotada por um método matemático, científico ou filosófico. Cada método, na verdade, é adequado para à sua própria esfera de aplicação e ao seu objeto específico.

Certeza existencial
Em relação aos relacionamentos pessoais, o único método adequado para alcançar o verdadeiro conhecimento é viver, e viver juntos uma companhia viva que, através de múltiplas experiências e múltiplos sinais, nos permite chegar ao que Giussani chama de “certeza moral”, ou, melhor ainda, “certeza existencial” [5]. Este é o único método adequado porque a certeza não reside na cabeça mas na harmonia de todas as faculdades humanas, se estiver na posse, ao mesmo tempo, de todos os requisitos para uma certeza real e racional. Por sua vez, a fé é, precisamente, uma aplicação específica da certeza moral ou existencial, um caso específico de fé nos outros, nos sinais, evidências, convergências, testemunhos de outros. A fé não é contrária à razão. Como todos os atos tipicamente humanos, a fé é razoável, o que não implica que ela pode ser reduzida a mero raciocínio. É razoável mas não é um raciocínio.
Por que existem a dor, a morte, o mal? Por que vale a pena viver? Qual o sentido último da realidade, da existência? Que sentido faz trabalhar, amar, ficar envolvido no mundo? Quem sou eu? De onde vim, para onde vou? Estas são as primeiras e ótimas perguntas que os jovens fazem, e os adultos também - e não só os crentes, mas todos, ateus e agnósticos. Mais cedo ou mais tarde, especialmente em situações de grandes limites da existência, em face de um grande sofrimento ou grande amor, na experiência de educar os filhos, ou de ter um trabalho que aparentemente não faz sentido, essas perguntas inevitavelmente sobem à superfície. Elas não podem ser erradicadas. Eu disse que essas são perguntas que até agnósticos fazem, e eu gostaria de mencionar aqui - prestando-lhe uma homenagem - um grande poeta de Buenos Aires, um agnóstico, Horacio Armani. Qualquer pessoa que lê seus poemas encontra uma sábia exposição de perguntas que esperam por uma resposta.

A resposta total
O ser humano não pode ficar satisfeito com respostas parciais ou reduzidas que o force a censurar ou negligenciar algum aspecto da realidade. Na verdade, nós até podemos negligenciar algum aspecto da realidade, mas, quando o fazemos, estamos fugindo dela. Nós precisamos de uma resposta total que compreenda e salve o horizonte inteiro do eu e de nossa existência. Possuímos dentro de nós um anseio de infinito, uma tristeza infinita, uma nostalgia – a nostos algos, nostalgia, da Odisséia – que só é satisfeita por uma resposta igualmente infinita. O coração humano revela-se sinal do Mistério, isto é, algo ou alguém que é uma resposta infinita. Fora do Mistério, as exigências de felicidade, amor e justiça nunca encontram uma resposta que satisfaça plenamente o coração humano. A vida seria um desejo absurdo se essa resposta não existisse. Não apenas o coração humano em si é um sinal, mas toda a realidade. O sinal é algo concreto, ele aponta em uma direção, ele indica algo que pode ser visto, que revela um significado, que pode ser experienciado, mas se refere a outra realidade que não pode ser vista; caso contrário, o sinal seria sem sentido.
Por outro lado, para interrogar a si mesmo em face desses sinais, é necessária uma extrema capacidade humana, a primeira que nós temos como homens e mulheres: a de maravilhar-se, a capacidade de ficar maravilhado, como Giussani chama, em última análise, de coração de criança. O início de toda filosofia é o maravilhamento, e apenas o maravilhamento conduz ao conhecimento. Note-se que a degradação moral e cultural começa a surgir quando a capacidade de se maravilhar é enfraquecida, cancelada, ou quando ela morre. O ópio cultural tende a cancelar, enfraquecer, ou matar essa capacidade de maravilhamento. Papa Luciano [João Paulo I] disse uma vez que o drama do cristianismo contemporâneo reside no fato de terem colocado as categorias e normas no lugar do maravilhamento. Mas o maravilhamento vem antes de todas as categorias; é o que me leva a procurar, a me abrir; é o que faz a pergunta - não uma pergunta verbal ou conceitual – possível para mim. Se o maravilhamento me abre uma pergunta, a única resposta é o encontro; e apenas com um encontro minha sede é saciada. E nada mais sacia tanto.

Notas
[1] O presente texto foi originalmente publicado como BERGOGLIO, Jorge Maria. For man. In: BUZZI, Elisa (Ed.). A generative thought: an introduction to the works of Luigi Giussani. Montreal: McGill Queens University Press, 2003, pp. 79-83. Traduzido para o português por Marcela Alves Silva.
[2] JOÃO PAULO II. Fides et Ratio, 1.
[3] NIEBUHR, Reinhold. The nature and destiny of man. v. 2: Human destiny. Londres: Nisbet, 1943, p. 6.
[4] GUARDINI, Romano. El ocaso de la Edad Moderna. In: GUARDINI, Romano. Obras. v. I. Madrid: Cristiandad, 1981, pp. 121-134. Cf. o texto “Cuando el progreso se transforma en caos”, pp.101-104. (NdT)
[5] Cf. GIUSSANI, Luigi. O senso religioso. Brasília: Universa, 2009, pp.38-43.

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